Um fato extremamente raro na atualidade:
um livro que celebra – sem medo – a masculinidade. Diante dos avanços do
feminismo, do reconhecimento dos direitos das comunidades homossexuais e dos
mecanismos de cerceamento instituídos pelo politicamente correto, está cada vez
mais difícil falar/escrever sobre alguns dos sentimentos que atormentam a
heterossexualidade (e que – milhares de vezes – são confundidos com todos os
defeitos da falocracia). Não faltam acusações (misoginia, misantropia,
homofobia) quando a discussão se concentra nos sentimentos que movimentam o
mundo (em crise?) dos homens. Muitos artistas contemporâneos (principalmente
escritores e cineastas) preferem esconder essas emoções e tratar o assunto da
forma mais superficial possível.
Os sete contos de Homens sem Mulheres,
de Haruki Murakami, constituem interessantes exercícios de solidão em tempos de
distanciamento afetivo. Muitos dos personagens escolhem o isolamento (físico,
psicológico) porque têm medo de enfrentar os sentimentos mais profundos – e que
costumam atormentar naquela “hora neutra da madrugada”, na feliz expressão de
Rubem Braga. Ao mesmo tempo, entoam uma espécie de hino às fraquezas dos homens – ratificando a velha tese de que o mundo masculino não resiste ao
viver (com e) sem as mulheres. Além disso, são poucos os que conseguem
escapar do ridículo, depois de levar a um bom pontapé na bunda (o adensamento da
angústia de Kafuku, em Drive My Car, ao descobrir que sua falecida
esposa tinha se relacionado sexualmente com vários homens, assusta).
Haruki Murakami e a sua coleção de discos de jazz (vinil). |
São sete histórias tristes. Quase sem
brilho. Protagonizadas por viúvos, divorciados, homens traídos (pelas mulheres,
pela sorte, por escolhas não muito felizes). Todos eles estão miseravelmente
apaixonados. Por várias razões não desejam reconstruir o que se perdeu. No
máximo aceitam viver macerando o amargor de ter arruinado a melhor parte de
suas vidas por algum motivo qualquer. Reprimir é um verbo bastante conjugado pela masculinidade.
Perder uma mulher é perder todas as
mulheres. Assim nos tornamos homens sem mulheres, afirma, em tom melancólico,
um dos narradores. Em outro conto, construindo a simetria inesperada, surge a
imagem demolidora: Ele teve um encontro com uma mulher por quem estava
apaixonado, juntaram os corpos, se despediram, e depois veio uma profunda
sensação de perda. Uma sensação asfixiante.
Cada um dos personagens de Homens sem
Mulheres parece dizer que não importa o quanto encontre satisfação no
prazer sexual, o vazio se faz presente. Sempre falta alguma coisa. Habitualmente,
os homens insistem em negar a existência daquela palavra minúscula, quatro
letras, que começa com “a”.
Várias abordagens aparecem de forma repetida,
confirmando que o livro foi construído com variações do mesmo tema. A que está mais presente é a música, que surge
em todos os instantes e situações (seja nas descrições intimas, seja em lugares
públicos). Do jazz ao rock, dos clássicos até o pop. No autobiográfico Kino,
o dono do bar ouve, quase que em looping, o disco de piano solo de Art Tatum. Além
disso, seus clientes são contemplados com audições de Coleman Hawkins, Billie
Holiday, Errol Garner e Buddy Franco. Em Drive My Car, Kafuku gosta de ouvir os
quartetos de corda de Beethoven (ele também ouve rock estadunidense dos anos
70: Beach Boys, Creedence,...). Em Yesterday, impossível não associar a
narrativa com a canção dos Beatles. O cirurgião plástico Tokai (de Órgão Independente)
toca piano. No conto homônimo ao título do livro, há referências a Gorillaz,
Black Eyed Peas, Henry Mancini (“Moon River”), Percy Faith (“Theme from a
Summer Place”), músicas de elevador, uma salada interminável, onde a trilha
sonora parece não ter identidade ou talvez seja uma metáfora para uma vida sem
rumo.
As referências literárias são
inumeráveis. Hemingway, Kafka, Mil e Uma Noites, Tchekhov. E estão presentes em
cada página do livro, multiplicando-se exponencialmente. Muitas vezes se
escondem no subtexto, nas citações cifradas que somente “o leitor ideal” consegue
encontrar ou associar com a historiografia literária. Em diversas cenas, alguns
personagens aparecem com um livro na mão.
Música, gatos e livros são as melhores companhias
para quem decide substituir o afeto humano por algo mais tangível, menos
doloroso. Movido por uma espécie de romantismo tardio, Tanimura, narrador e testemunha
presencial dos fatos em Yesterday e Órgão Independente, costura com leveza
e fluidez duas histórias trágicas. Na primeira, o que incomoda é o desejo. Ou
melhor, a falta de desejo. Aki Kitaru se recusa a fazer sexo com sua namorada, Erika Kuriya. Algo inexplicável o detém. Em nome da amizade, quer que Tanimura
se interesse por Erika – o arranjo não funciona, mas abre as portas para que a
mulher faça uma escolha importante. Um dia, talvez depois de descobrir que não
controla a situação, Kitaru vai embora – para sempre. Sem grandes explicações. Na
segunda narrativa, o desejo também distribui as cartas. Mas, de forma
diferente. O cirurgião plástico Tokai tinha cinquenta e dois anos, e nunca foi
casado. Não teve sequer a experiência de morar com uma mulher. Convicto que
não foi feito para a vida conjugal, se satisfazia com casos rápidos,
principalmente com mulheres que tinham outros relacionamentos (maridos,
namorados). E certo dia, sem esperar, ele se apaixonou. Como uma raposa
esperta que por descuido cai em uma armadilha. Embora o conto faça uma
releitura de um clichê, homem velho que se envolve com mulher jovem, o desfecho
assusta. Ao ser informado que o relacionamento havia terminado, Tokai entra em
estado de inanição. A tristeza o devora, viver não significa mais nada.
Haruki Murakami, em certo momento, antes
de se tornar um escritor profissional, foi proprietário de um bar. Ele transformou em ficção parte dessa história. O
enredo de Kino (que é o nome do protagonista) transita entre o realismo e a alucinação (desfecho). Depois de
se separar da esposa, Kino resolve abrir um bar. Sem se preocupar com o
faturamento, passa os dias lendo e ouvindo jazz. Como companhia, uma gata
cinzenta de rua, que o adotou. Era uma fêmea com um belo rabo comprido.
Parecia ter gostado de uma prateleira meio escondida no canto do bar e dormia
enrolada ali. Um dos fregueses habituais, Kamita, passa as noites lendo e
bebendo (primeiro, cerveja; depois, uísque). Um dia, acontece um incidente.
Dois fregueses, provavelmente bêbados, começam a discutir. Quando Kino ia
interferir, Kamita entra na conversa e promove a expulsão dos sujeitos. Se esse
episódio está relacionado com o que se segue, faltam as necessárias conexões. De qualquer
forma, algum tempo depois, Kino se envolve com uma cliente. Nada muito
significativo, mas... No outono, a gata desapareceu. E começaram a aparecer
algumas cobras nas proximidades do bar. Depois Kamita recomenda-lhe fechar o
bar. – Você não é uma pessoa que consegue fazer algo errado por vontade
própria. Sei muito bem disso. Mas, neste mundo, às vezes, não basta não fazer algo errado. Tem coisas que se
aproveitam dessa brecha. O restante da narrativa flerta com elementos
persecutórios, com delírios e com o estranhamento. A ausência afetiva se
pronuncia como um elemento de dor.
Em um pequeno quarto escuro no profundo interior de Kino, a mão quente de alguém foi estendida e tentou pousar sobre a dele. Com os olhos fortemente cerrados, Kino sentiu o calor dessa mão e sua espessura macia. Era algo de que ele se esquecera havia muito tempo. Era algo que fora afastado dele havia muito tempo. Sim, estou magoado. Muito, profundamente, Kino disse a si mesmo. E chorou. Nesse quarto escuro e profundo.
Em Sherazade, provavelmente o melhor
conto do volume, o protagonismo se desloca na direção do feminino. Por algum
motivo, Habara precisa ficar confinado em um lugar chamado House. Suas
necessidades são atendidas por uma mulher (que ele chama de Sherazade), que o
visita duas vezes por semana. Ela é encarregada de comprar mantimentos, livros,
revistas, CDs e DVDs. E, a partir da segunda semana que Habara estava na
House, ela passou a convidá-lo para a cama como se fosse uma coisa natural. Depois
do sexo, imitando o personagem literário clássico, ela gosta de contar para ele
algumas histórias. A mais incrível se refere a uma obsessão juvenil. Sherazade
(na época, adolescente) estava apaixonada por um colega de escola. Como sói
acontecer em casos similares, o rapaz sequer percebe esse interesse. Certo
dia, Sherazade faltou à aula sem avisar e foi à casa desse rapaz, que ficava a
cerca de quinze minutos a pé da casa dela. Descobriu o lugar onde estava
escondida a chave. Entrou na casa e foi ao quarto do rapaz. Roubou um lápis. Quer
dizer, trocou o lápis por um absorvente (que escondeu em uma gaveta). Dez dias
depois, repetiu o ato. Demorou mais de trinta minutos. Roubou um pequeno escudo
de futebol (deixou alguns fios de cabelo). Percebeu que estava ficando viciada em entrar
na casa dos outros. Na terceira vez, roubou uma camiseta – ao sentir o cheiro
do rapaz, impregnado na roupa, ficou sexualmente excitada. Excitação que se
repete, muitos anos depois, quando conta essa história para Habara. Doze dias
depois, quando Sherazade foi à casa dele pela quarta vez, a fechadura da porta
havia sido trocada por uma nova. (...) A chave não estava mais sob o capacho. Algo
havia acontecido. Provavelmente as invasões foram descobertas. A experiência
não pode mais ser repetida. Com o passar do tempo, a paixão de Sherazade diminuiu e,
por fim, desapareceu. Ouvir essa história não foi bom para Habara, que foi tomado
pela sensação de incompletude: – Acho que nunca passei por uma experiência tão
especial como essa – ele disse. Depois que Sherazade vai para casa (ela é
casada), Habara é tomado pelo medo:
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