Morrer pela causa certa é a coisa mais
humana que podemos fazer, diz a líder dos replicantes rebeldes para o também replicante Joe (Officer KD6-3.7), em cena emblemática de Blade Runner 2049 (Dir. Denis
Villeneuve, 2017), uma espécie de sequência do clássico Blade Runner (Dir.
Ridley Scott, 1982), que, por sua vez, é vagamente inspirado na narrativa Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip Kindred Dick (1928-1982).
O paradoxo se manifesta instantaneamente. Replicantes são androides, ou melhor, são seres bio-humanos, que evoluíram dos
robôs da série Nexus. Eles imitam os
humanos, e foram criados para, grosso modo, servir de mão de obra descartável.
Cabe-lhes obedecer, sem colocar em dúvida as tarefas que recebem – nada muito
distante da situação vivenciada pelos escravos entre os séculos XV e XVII.
A existência de Joe (Ryan Gosling) obedece a esse
postulado. Encarregado pela polícia de Los Angeles de caçar e exterminar alguns
tipos de replicantes, frutos de uma tiragem mais recente e que estão causando
“problemas”, ele procura cumprir objetivamente todas as missões que lhe são
designadas. No entanto, se há bastante movimento na vida profissional de Joe, no
aspecto particular impera o vazio – exceto nos momentos em que ele interage com
a imagem de Joi (Ana de Armas), uma espécie de namorada virtual (e que só
existe na forma holográfica).
Ocorre um curto-circuito emocional depois
que Joe mata um replicante, Sapper Morton (Dave Bautista) – e em vários níveis. Dentro
de uma caixa, que estava enterrada perto de uma árvore, são encontradas várias
informações sobre as mutações que estão ocorrendo com os replicantes – e que,
de uma forma ou de outra, colocam em risco o poder humano. Como ocorre nas
sociedades totalitárias, não há espaço para a diversidade. Torna-se necessário eliminar quaisquer focos
de resistência ao padrão unificador.
Essa mudança de parâmetros coloca sob os
holofotes uma questão essencial. Os replicantes não possuem subjetividade. Eles
não compartilham daqueles elementos singulares que distinguem os indivíduos
(valores, crenças, opiniões, lembranças). Então, como explicar a rebelião que
está em curso? Como entender que alguns replicantes tenham adquirido consciência
de que a vida está revestida de um valor inestimável? Máquinas são máquinas – exceto
nos casos em que a inteligência artificial seja autônoma para produzir um novo
nível de inteligência.
(Nota 1: quem discordar dessa tipo de pensamento deve ler Homo Deus: uma breve história do amanhã, de Yuval Noah Harari, onde as previsões sobre a composição da sociedade futura são aterradoras.)
Simultaneamente, Joe recupera uma lembrança
da infância. Um pequeno cavalo esculpido em madeira se transforma em uma espécie de “Madeleine” (tema proustiano) ou “Rosebud” (de Cidadão Kane. Dir. Orson Welles, 1941). Esse caso
exemplar de autoengano se revela decisivo para o andamento narrativo. Aquele que deveria se comportar como inumano vê
o passado relampejar diante de seus olhos como elemento primordial da existência.
De maneira completamente fora do controle de seus fabricantes, o androide adquire
consciência de está se tornando humano e que a sua vida – a partir desse
instante – está em perigo.
Acrescenta-se o fato de que Joe não sabe
(e não tem condições de saber) de que essa memória não é sua. Ela faz parte de
um implante. Então, entre o acreditar que está destinado a executar uma tarefa
singular para o destino de todos e, logo depois, se desiludir com a descoberta
de que tudo o que acredita (e o motiva) é uma farsa, a vida de Joe se torna
intensa, imensa, maravilhosamente preenchida por uma experiência real,
verdadeira, humana.
Em um mundo distópico, caracterizado por
grandes espaços desertos, ruínas urbanas e grandes avanços tecnológicos, Blade
Runner 2049 (assim como a versão de 1982) trava um diálogo constante com o
faroeste – gênero cinematográfico especular/espetacular da colonização estadunidense e
constantemente reproduzido por Hollywood. As cenas de ação do filme
(tiroteios, lutas físicas) estão atreladas ao mito do herói e,
consequentemente, ao maniqueísmo (a divisão entre o bem e o mal sempre foi a
maneira mais fácil de relativizar qualquer ação humana). A vantagem de Blade
Runner 2049 está exatamente em se afastar desse esquema dualista, através do desafio
intelectual. As dúvidas que o filme suscita são mais interessantes do que as respostas
que apresenta.
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