Os reencontros são situações que
possibilitam (com algumas dificuldades) voltar o olhar para o passado cada vez
mais distante e (se é que isso é possível) recuperar lembranças que estavam
destinadas ao esquecimento. O primeiro contato com A Ilha do Tesouro, de
Robert Louis Stevenson, aconteceu quando eu tinha uns oito ou nove anos. Faz
tempo! Possivelmente reli o livro alguns anos mais tarde, na coleção
terra-mar-e-ar, mas não tenho certeza.
Nos últimos anos procurei por uma edição
com o texto integral. Estranhamente, não encontrei. A Ilha do Tesouro se
tornou um livro raro. Nas livrarias virtuais há algumas edições adaptadas. Nos sebos
físicos, nenhuma notícia. Provavelmente a modernidade não combina com esse tipo
de literatura romântica. Quem é que quer saber das peripécias de um garoto que
vai em busca de um tesouro quando pode se distrair com videogames ou “blockbusters”
cinematográficos?
Robert Louis Stevenson (1850-1894) |
Inesperadamente, a cerca de um mês, encontrei
um exemplar. Edição portuguesa de 2011, capa dura, ilustrações de Louis Rhead e tradução de Fernanda Palmeirim.
Li (ou melhor, reli) em dois dias. Foi bom. Muito bom. Inclusive naquilo que
causa estranheza. A indiscutível prova de que estamos separados de Portugal
pela língua aparece no texto através de palavras como lugre, pequeno-almoço, charneca,
garrido, moitão, linguareiro, fixe, relvado ou de expressões como passar
alguém pela quilha ou fazer aguada. Em todos esses casos (e em vários
outros) recorri ao(s) dicionário(s). Conhecer uma meia dúzia de vocábulos nunca
fez mal a ninguém.
Em relação ao texto, muitas surpresas. No
meu imaginário, a história era outra. E muito diferente. Com mais peripécias,
com mais heroísmo, com menos descrições. A imaginação introduz no enredo cenas
que não estão lá. Long John Silver (e o seu papagaio, Capitão Flint) parecia
ser mais aterrorizante, mais cruel. Não o é. Trata-se de um sujeito ambicioso,
mas que também consegue calcular suas chances quando a balança do destino
começa a pender para o outro lado. E a sua fuga nas últimas páginas revela –
por vias travessas – o quanto do mal costuma ficar impune (principalmente nos
casos em que há algum tipo de “arrependimento” dos pecados).
O texto está dividido em seis partes (trinta
e quatro capítulos). O narrador geral da história, Jim Hawkins, relembra, a
pedido de Trelawney e de Livesey, alguns dos episódios da grande aventura que eles viveram juntos. Do
ponto de vista estrutural, existe uma ruptura nos capítulos XVI, XVII e XVIII,
quando o médico Livesey assume o papel de narrador, relatando fatos que estão
fora do alcance de Hawkins. No mais, trata-se de uma narrativa com começo, meio
e fim – nessa ordem – e um narrador (quase) onisciente e (quase) onipresente.
Os acontecimentos iniciam de forma
despretensiosa. O pai de Jim Hawkins é proprietário de uma estalagem, Admiral
Benbow, na costa sudoeste da Inglaterra, provavelmente perto de Bristol. Um
dos hóspedes, Bill Bones, passa os dias olhando para o mar através de um velho
telescópio de latão. Depois que o dia escurece, ele volta à estalagem e bebe
todo o rum que aguenta. Entre um gole e outro, atormenta os hóspedes e os
visitantes. O único que não se sente amedrontado por esse encrenqueiro é o
médico – que o adverte sobre os malefícios do alcoolismo. Em determinado
momento, aparecem na estalagem alguns “amigos” de Bill. Essas visitas somadas
com a saúde debilitada do marinheiro resultam em um ataque apoplético.
O que se segue é parte divertida, com direito
a todos os clichês da literatura de aventuras: mapa do tesouro, viagem a bordo
do Hispaniola, a tripulação se transformando em piratas, perigos
inimagináveis, tiroteios, doenças tropicais, uma confusão atrás da outra, tudo em
um andamento vertiginoso – para não permitir que o ritmo se esfarele.
Parte do prazer do texto está em perceber
as mudanças comportamentais de Hawkins (hawk, falcão em inglês). O
adolescente que participa da caça ao tesouro amadurece. Tornou-se outro. E é esse
outro que aceita colocar no papel os acontecimentos que vivenciou. Então,
quando descreve algumas de suas ações, o faz com senso crítico, condenando a
impetuosidade, a falta de razão prática, o correr perigo desnecessariamente. Ao
mesmo tempo, exalta a coragem e o senso de honra. Essa ambiguidade permite uma
imagem humana para um personagem de papel. Em relação à fragilidade humana, há outra
questão axial: a ausência de limites. Não se trata de um elemento psicológico relacionado
com o fato dele ser órfão de pai e negar a autoridade. O problema é
outro. A vontade de ser herói – apesar de não saber exatamente como vai
conquistar esse galardão – o torna egoísta. As decisões mais importantes da
narrativa são tomadas isoladamente, sem consulta prévia aos demais
participantes da jornada, sem a mínima compreensão do que está afetando aos
outros.
Evidentemente, tudo termina bem (apesar
dos vários mortos). O tesouro é encontrado, os bandidos são derrotados e as
páginas finais estão encharcadas de um moralismo cínico – que perdoa o roubo perpetuado
por Long John Silver e condena o desapego econômico de Ben Gunn. Deixando de
lado esses senões, o que importa é que, como todo clássico, o livro escrito por
Robert Louis Stevenson está repleto de tesouros – e é através da leitura que
os encontramos.
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