Mi Buenos Aires querido, / cuando yo te
vuelva a ver, / no habrá más penas ni olvido, canta Carlos Gardel, certamente
idealizando uma cidade que nunca existiu – exceto ficcionalmente. Igualmente
ficcional é a Buenos Aires de Manuel Vázques Montalbán.
Há diferenças significativas entre uma e
outra visão. A segunda, embora seja uma criação “ad hoc”, está muito próxima da
realidade geográfica, social e política. Definitivamente, não é uma fotografia
para publicar em rede social. Quando José Carvalho Larios, mais conhecido como
Pepe Carvalho, sintetiza a cidade através da trilogia tangos, desaparecidos,
Maradona, descontada a ironia ferina, percebe-se que a intenção narrativa não
é a de negar a História – mas sim de enfrentá-la.
O Quinteto de Buenos Aires foi
publicado em Espanha em 1997 (em 2000 no Brasil). E, na medida em que isso está
ao alcance de um romance policial, trata-se de uma narrativa centrada na demolição
da argentinidade (mudando uma peça aqui, outra ali, também poderia ser a
aniquilação da brasilidade). A linha base do enredo é singela: Pepe Carvalho é
contratado para descobrir o paradeiro de seu primo, Raúl Tourón, que está na
capital portenha. Depois, deve convencê-lo que deve voltar para Barcelona, Espanha,
onde, ao lado seu pai, Evaristo Tourón, estará em segurança. A primeira tarefa
é relativamente fácil. A segunda, quase impossível – Raúl retornou ao terceiro
mundo, depois de muitos anos, para um ajuste de contas com o passado – quer se vingar
de sócios desonestos, prantear o luto pela morte da esposa e encontrar a filha
desaparecida.
Manuel Vásquez Montalbán (1939-2003) |
Pepe Carvalho, no intervalo entre uma e
outra etapa desse trabalho, precisa enfrentar vários desdobramentos. Algumas complicações
surgem quase que espontaneamente. O passado político da Argentina atinge a
todos os que estão em cena – os braços tentaculares do poder costumam asfixiar aqueles
que ousam desafinar a ordem geral.
As cenas de corrupção permeiam a
narrativa – que se passa no governo de Carlos Menem. Lograr os outros resume a
atividade comercial que movimenta aqueles que possuem algum tipo de projeção
social. Diante da possibilidade de colocar as mãos em qualquer quantia, cabe ao
indivíduo decidir se participará do acordo ou se ficará de fora. Pactuar é o
eufemismo adotado nessas ocasiões. A tradução desse impasse – produzido pelo
capitalismo predador – pode ser resumida em vários assassinatos e em diversos
momentos de violência explícita. Nada que pareça destoante do propósito concreto – embora seja sempre assustador.
O contraponto a essa selvageria aparece
na figura de um policial honesto, que quer cumprir com o dever custe o que
custar. O inspetor Óscar Pascuali, como compete aos homens da lei, não consegue
entender qual é o jogo de que participa – e, evidentemente, há um preço
a pagar por esse proceder. Suas atividades estão restritas (em muitos momentos)
ao observar passivo dos acontecimentos. Ou seja, ele sempre chega atrasado aos
lugares onde ocorrem os eventos mais importantes da narrativa – e tenta
corrigir esse desacerto gerando mais violência. É a figura mais patética de
todo o romance. E isso não quer dizer pouca coisa. Há uma multidão de
personagens nas 458 páginas de O Quinteto de Buenos Aires. Alguns deles fogem
do estereótipo que povoa a literatura policial. Como definir um empresário que
abandona tudo (negócios, família), assume a homossexualidade e resolve se
dedicar à proteção de mendigos, vagabundos, aidéticos e viciados de todas as espécies? Além disso, o grande plano do sujeito é a invasão (de forma
pacífica) das Ilhas Malvinas (Falklands Islands) para construir alguns falanstérios,
onde abrigará os seus “marginais”. A figura mais sinistra, o Capitão, de quem
ninguém sabe o nome exato, surge como um espectro maligno. Remanescente do
grupo de militares que participou dos governos ditatoriais (1976-1983), se
utiliza das informações que obteve em sessões de tortura para manter algum
poder. Como os tempos são “outros” – e o passado foi anistiado – faz inúmeras
alianças com empresários e políticos. Também se pode considerar como singulares
a dançarina de boate que estuda latim, o boxeador que se suicida por amor, o chef
de cuisine Drumond, o propriétaire du restaurant Lucho Reyero e um farsante
que se diz filho legítimo de Jorge Luis Borges. Ao lado de todos esses
excêntricos surge don Vito Altofini, o sócio argentino de Pepe Carvalho: Um
homem de uns sessenta anos, cabelos prateados pela luz fluorescente e fixados
com brilhantina um tanto ordinária, excessivamente bem vestido, embora se
perceba que o terno não é novo, que a camisa já foi lavada várias vezes; de qualquer
modo, as abotoaduras reluzem, assim como o alfinete da gravata, os sapatos e os
dentes.
Região central de Buenos Aires |
A reunião de toda essa gente esquisita resulta em
uma imensa e tresloucada confusão. A trama principal vai sendo deslocada para o
acostamento, como se fosse acessória, e os temas secundários vão tomando conta
da narrativa. A procura pelo primo desaparecido parece não importar muito – há
bastante divertimento em Buenos Aires, uma cidade repleta de argentinos
deprimidos.
Uma das chaves do romance aparece em uma
declaração de don Vito Altofini: A arte me apaixona. Há açougueiros que são
artistas, em qualquer ofício se pode ser artista. Aqueles que sobreviveram ao
horror promovido pela ditadura argentina vivem em crise de identidade, não sabem
se conseguem explicar o mundo através da arte ou da carnificina. Nesse sentido,
ninguém se espanta quando a esposa do Capitão, entorpecida de álcool e passado,
ao ouvir um barulho, exclama: Um tiro. Foi um tiro. Quem vocês mataram dessa
vez?
No capítulo derradeiro, “Assassinatos no
Clube dos Gourmets”, a comédia-pastelão se completa. O que até então era uma
narrativa comedida, na medida do possível cada coisa em seu lugar, se
transforma em sucursal do inferno – mas, é preciso esclarecer, uma filial muito
engraçada. Vários assassinatos (alguns absolutamente ridículos), uma tentativa
de suicídio, uma tentativa de homicídio, um cardápio gastronômico fantástico. O
epilogo de todo esse horror repete a conhecida liturgia: enquanto os mandantes
dos crimes permanecem incólumes, os empregados precisam se
justificar na delegacia mais próxima.
O Quinteto de Buenos Aires é
entretenimento de excelente qualidade.
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