Algumas tragédias – descontado o oximoro
– são muito divertidas. Evidentemente, nesse tipo de circunstância, o exercício
literário (transformar o limão em limonada) deve utilizar um tom menos
dramático e, se possível, bem-humorado. O segredo está aí.
O romance Manual de Demissão, de Julia
Wähmann, cumpre com esse objetivo. Ao se concentrar em um episódio cada vez
mais comum nas relações contemporâneas de trabalho, o desemprego, J. (a narradora
e protagonista) realiza – de forma minuciosa – um exame do corpo de delito. No
seu relato, a “crise” (viga-mestra de todas as desculpas administrativas) serve
de escudo para o sucateamento das relações laborais. Depois da inevitável
conversa com alguém do Departamento Pessoal (sempre uma pessoa calma e
simpática), depois de cumprir com todos os rituais referentes ao desligamento da
empresa, sobra a ausência de chão embaixo dos pés. Nada restabelece o
equilíbrio. Em alguns casos, e não são poucos, a compensação surge como
variável da Síndrome de Estocolmo: (...) saudades da vida regrada, com ordens,
de um chefe a quem me reportar, cercada de colegas da minha categoria que
compartilhavam não só as cadeiras giratórias baratas e os ácaros, mas também um
piso salarial e um ticket alimentação que nos permitia comer verduras cheias de
agrotóxicos e frangos cheios de hormônios nos restaurantes xexelentos do Centro
da cidade.
Não precisando mais ir para a empresa
pela manhã, restam alguns obstáculos quase intransponíveis. A visita ao
sindicato, para acertar os termos da demissão, caracteriza uma experiência antropológica
digna de pesquisa de campo com aborígenes da Polinésia. Estranhamento total com
usos e costumes. Evidentemente, o pior ainda está para vir. O descompasso se
torna uma brincadeira infantojuvenil no momento de ir ao banco receber o Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou o seguro-desemprego. As dificuldades
praticamente brotam do ar. As filas são imensas, o tempo de espera exige
paciência, o atendimento é deficitário. O melhor remédio para suportar essas
provações é... Um livro do Roberto Bolaño. Aquele com o maior número de
páginas.
Invariavelmente, o atendimento acontece
em horário próximo ao término do expediente. Além disso, o funcionário percebe
que alguma informação documental está errada. Voltar no dia seguinte é a alternativa
– quando a cena se repete. A exceção a
esse episódio kafkaniano ocorre quando a loucura ameaça dar tchauzinho para o
distinto público: J. abriu a torneira lacrimal e ameaçou o inicio de um
processo de desidratação O funcionário, assustado com esse recurso patético, a
ajudou a solucionar o problema. Uma pequena vitória em uma guerra perdida.
Para muitos dos colegas de demissão, o
aeroporto se transformou na porta de saída. Saída de emergência, cenário de
aventuras, histórias de exílios. Portugal à vista, poderia ter dito o
comandante do avião repleto de brasileiros desiludidos com a situação econômica,
política e social do país: Era incrível, o mundo parecia uma narrativa do
Saramago em que todos são acometidos por um mal súbito, sem aviso prévio, sem
explicação, e, diante do absurdo da situação, partem para Lisboa, que já tinha
mais gente conhecida que o meu próprio bairro.
Para aqueles que ficaram em terras
brasilis, sobrou, em quantidade cavalar, angústia e depressão. A ajuda
anestésica de vários comprimidos de Dormonid (adquiridos no mercado negro dos
remédios) se impõe. Nos momentos mais
suaves, cervejas e vinhos também contribuem para a construção de uma atmosfera lúdica
e menos assustadora.
Ah, para não dizer que não se falou de
flores, o bundão do namorado de J. também atravessou o oceano, casou, teve
filho e foi feliz. O cara construiu uma história de contos de fada (que J.
acompanhou, on line, como parte do ritual de autoflagelação).
Como termina essa bagunça? Não termina.
Não há possibilidade de terminar. Cada demissão transforma o indivíduo em
ruína. O estrago é irreparável. Não há possibilidades de reverter esse
desastre. A vingança é um prato que se come frio, dizem. Mas, na história do
mundo, seguimos sentados à mesa, em frente a travessas fumegantes, a esperar.
Manual de demissão foi construído como um imenso monólogo, a escassa comunicação entre os personagens está incorporada nos blocos narrativos. O texto, ágil e de fácil leitura, está dividido em 23 capítulos – cada uma das interrupções do discurso serve de pausa para que o leitor possa respirar e refletir sobre o que está sendo narrado. Todos os capítulo possuem título (ditados populares, clichês de autoajuda). Os personagens secundários (e que aparecem de maneira furtiva no texto) são designados por letras do alfabeto (A, B, C, D, E, F, G). A exceção é a narradora, J., que quebra a ordem alfabética.
Salve Manual de Demissão – texto ficcional imprescindível para quem quer se preparar para o futuro. Depois de algumas reformas no setor trabalhista, promovidas pelo governo vigente, o desemprego em massa deixou de ser uma hipótese remota e se transformou em ameaça diária. Acabou a diversão!
Manual de demissão foi construído como um imenso monólogo, a escassa comunicação entre os personagens está incorporada nos blocos narrativos. O texto, ágil e de fácil leitura, está dividido em 23 capítulos – cada uma das interrupções do discurso serve de pausa para que o leitor possa respirar e refletir sobre o que está sendo narrado. Todos os capítulo possuem título (ditados populares, clichês de autoajuda). Os personagens secundários (e que aparecem de maneira furtiva no texto) são designados por letras do alfabeto (A, B, C, D, E, F, G). A exceção é a narradora, J., que quebra a ordem alfabética.
Salve Manual de Demissão – texto ficcional imprescindível para quem quer se preparar para o futuro. Depois de algumas reformas no setor trabalhista, promovidas pelo governo vigente, o desemprego em massa deixou de ser uma hipótese remota e se transformou em ameaça diária. Acabou a diversão!
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