Estilo não está à venda nas gôndolas do
supermercado. Estilo rejeita lugares-comuns, chavões, clichês. Estilo sempre
procura por novas rotas, por caminhos pouco percorridos. Estilo ignora o sabor
plastificado das aulas de escrita criativa. Estilo expressa um enredo sem
tropeços, com linguagem límpida, acessível. Estilo significa criar personagens
fortes, complexos, verossímeis. Estilo, enfim, traduz uma maneira inconfundível
de ser/estar no mundo.
A literatura produzida por Giovana
Madalosso pode (e deve) ser alvo de várias discussões. A única acusação fora de
contexto é a ausência de estilo. Tendo a condição feminina como articuladora da
História, das histórias, ela consegue misturar drama e comédia na dose exata –
nem para deixar a euforia dominar, nem para deprimir. O desejo, a culpa, o
medo, a frustração, os homens – aquilo que parece vertigem se transforma em literatura.
O romance Tudo Pode Ser Roubado tem
como espinha dorsal o roubo de um livro. Uma primeira edição de O Guarani, de
José de Alencar. Em um leilão, um professor universitário, desses que não
possuem um tostão furado, teve um momento de sorte e conseguiu comprar o livro.
Um milionário, desses que não sabem o que fazer com o dinheiro que acumulam no
banco, quer ser o proprietário dessa raridade bibliográfica. Tentou negociar com
Cícero, o professor. Não foi feliz. O desejo se multiplicou.
Entram em cena, três personagens muito
interessantes. Em primeiro plano, a narradora/protagonista, que nasceu em Lages
(aparentemente uma cidade interiorana e pouco desenvolvida). Embora seu nome não
se apresente para os leitores, um dos personagens coadjuvantes a chama de “Rabudinha”.
Sem grandes vaidades ou ambições, Nunca fui de querer muita coisa, disposta a
satisfazer suas necessidades primárias (alimentação, moradia, sexo) com o
mínimo, complementa a renda mensal com pequenos furtos. No básico, mantém a
serenidade de quem conhece os mistérios da existência: Trabalho de garçonete
desde os dezenove anos, quando decidi que não queria me esfolar pagando uma
faculdade para acabar ganhando mais ou menos a mesma coisa. Ao contrário da
maioria dos garçons, da maioria dos clientes, da maioria das pessoas, eu não
sou consumida por nenhum desejo. Não quero ser atriz, nem cantora, nem modelo,
nem designer, nem protética, nem cuspidora de fogo, nem milionária, nem
porcaria nenhuma. Estou bem assim.
Logo atrás da Rabudinha surgem Biel e
Tiana, a compor a figuração, a produzirem acontecimentos capazes de “roubar a
cena”. Biel não passa de um golpista de terceira classe, desses que vivem de
expedientes pouco recomendáveis como explorar mulheres carentes ou servir de
capacho para quem possa financiar cama, comida e roupa lavada. Além do cigarro
e do uísque, claro. É ele quem faz a intermediação para que o livro possa ser roubado.
Na definição da narradora (...) ele não era um coroa misterioso, nem um
elemento avesso ao sistema. Ele era apenas um sujeito imaturo, com tudo de bom
e de ruim que isso acarreta.
Tiana foi feita em outra forma.
Literalmente. A dona do brechó, onde a narradora/protagonista vende as roupas, calçados
e acessórios que rouba, é uma transgênero. As duas, Tiana e Rabudinha, são, digamos,
melhores amigas. Isso significa que também se desentendem, que pedem desculpas,
que cultivam os altos e baixos da amizade: Cheguei com o blazer como um
namorado chega com flores depois de uma briga. O bordado colorido na mão, os
olhos baixos, o rabo entre as pernas.
Cenário montado, cabe fazer as
engrenagens se movimentarem. Querendo reunir negócio com prazer, Rabudinha
ambiciona deixar Cícero sem fôlego e, simultaneamente, ter alguma (ou muita) diversão sexual. Acredita que, depois de levar o sujeito para
a cama, encontrar o livro será fácil. O problema é que ele se mostra imune aos
inúmeros truques de sedução. Essa é uma das partes mais divertidas do romance,
desconstrução do mito machista, exposição sem piedade das fraquezas masculinas. Homem, mesmo quando se mostra diferente, é tudo igual.
Com dicção peculiar, Tudo Pode Ser Roubado também revela
diversas facetas da cidade de São Paulo que não cabem em cartão postal. Hotéis
vagabundos, festas milionárias, amores frustrados, autoengano, cocaína, mendigos, prostituição, noites que
nunca acabam, dias que sequer existirão, taxistas que sonham em ser
saxofonistas, a diversidade se multiplicando em cada espaço de uma cidade que devora os seus habitantes. São Paulo se desdobra em muitas São Paulo, um abismo em cada esquina, um parque de diversões em cada rua. (...) a verdade sobre uma cidade
é esta: o que sobra de cada um depois que as luzes dos escritórios se apagam. E
aqui, como todo mundo sabe, o que sobra é pouco, um emocional talhado pelos
excessos, um terreno propício para as patologias se instalarem.
Concluída a leitura, o leitor fica extasiado com o conteúdo – alta qualidade, linguagem
fluída, senso crítico, amostras frequentes do poder corrosivo do humor. E ligeiramente frustrado com as páginas finais,
visto que algumas questões ficaram em aberto. Faltou o “toque de Midas”, reunir
os penduricalhos em um “gran finale”.
P.S: Uma das melhores frases do romance expressa
parte da dor de Tiana, que foi espancada por um namorado: Sou vaidosa demais
para sair por aí vestindo um hematoma.
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