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terça-feira, 17 de abril de 2018

ROLETA RUSSA


No entrecruzamento de duas formas artísticas, o ruído se torna inevitável. Entende-se ruído por algo que incomoda, por alguma coisa que parece estar no lugar errado (e está!). No caso específico do “casamento” entre literatura e o cinema, por exemplo, o barulho se tornou uma constante. Em alguns momentos, o filme destrói o livro; em outros, o filme está vários degraus acima do texto. E ainda há os casos em que o resultado final sequer se parece com a narrativa que serviu de inspiração. Alfred Hitchcock tinha uma tese curiosa sobre essa ligação amorosa: livros ruins é que dão filmes bons. Muitos comentaristas de cinema rejeitam esse pensamento. A realização cinematográfica depende mais da técnica do que do roteiro, dizem, lembrando que uma direção frouxa causa maiores danos do que alguma “liberdade poética” que possa ser utilizada no desenvolvimento fílmico. O estadunidense Gore Vidal divergia violentamente dessa ideia. Em um ensaio clássico, Quem faz o cinema? (incluído no livro De Fato e de Ficção), defende a ideia de que o roteirista é mais importante que o diretor e que a carpintaria estrutural de uma história supera quaisquer artifícios artísticos que possam surgir no set de filmagem ou na mesa de edição. O pessoal da literatura – que defende a sacralidade do texto original – não concorda com essas duas hipóteses. Embora aceitem o corte de algumas cenas, ficam furiosos com os enxertos e são irredutíveis contra qualquer alteração na espinha dorsal do enredo.

Em um mundo onde todos se decepcionam (porque estão, simultaneamente, certos e errados), o ponto comum está na concordância de que a literatura e o cinema trabalham com linguagens diferentes e que a fidelidade absoluta inexiste em qualquer adaptação.
 
Recentemente, um romance de espionagem foi adaptado pelo cinema. Imediatamente, o livro se tornou um best-seller. Não há como impedir as ligações perigosas que o capitalismo produz nas relações de consumo. O divertido, nessa história, está em um fato básico: os dois produtos são de péssima qualidade. O livro, Red Sparrow, escrito por Jason Matthews, em 2013, foi publicado no ano seguinte no Brasil com um título estranho: Roleta Russa. Parece que algum gênio do marketing acreditou que “Pardal Vermelho” (ou Russo) não era uma opção aceitável. Com o lançamento do filme, publicaram uma segunda edição da narrativa, agora com um nome mais fácil de ser consumido pelo público que se deixa conduzir pelo entretenimento: Operação Red Sparrow. Logo abaixo do título, um slogan publicitário (revelando a ausência de escrúpulos editoriais e econômicos): Pronta para seduzir, treinada para matar.

A crítica especializada em cinema detestou o filme. Parece que sobram cenas de nudez e faltam qualidades artísticas em atores e equipe técnica.

Sobre o livro, cabe destacar inúmeros problemas de redação (ou de tradução) e o desperdício de uma boa ideia. A história de uma bailarina que, em função de um “acidente” de trabalho, precisa se tornar uma espécie de Mata Hari contemporânea poderia resultar em uma boa narrativa. Infelizmente o castelo desaba. Na ânsia febril de demonstrar que as equipes de espionagem estadunidenses são mais competentes que as russas, a protagonista (Dominika Egorova) vai sendo devorada lentamente por um narrador “professoral” que, em nome de "valores" superiores, decreta as diferenças entre o bem e o mal.

Treinada pela Sluzhba Vneshney Razvedki, SVR (Serviço de Inteligência Estrangeiro), organismo que substituiu o Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti, KGB (Comitê de Segurança do Estado), Egorova recebe ordens de seduzir Nathaniel (Nate) Nash, agente da Central Intelligence Agency, CIA. Deve descobrir a identidade de um alto funcionário russo que está passando informações confidenciais ao inimigo. Por sua vez, o estadunidense é induzido a agir com o mesmo propósito – alguns segredos militares estão sendo entregues aos russos. Arma-se um jogo de gato e rato, onde se torna difícil definir quem é quem. Essa tensão sofre um incremento quando surge em cena a atração amorosa e sexual.

Longe de ser uma versão de Romeu e Julieta, o romance perde a essência logo depois. Lá pela metade da narrativa, Dominika aceita ser uma informante da CIA  inconformada com diversos acontecimentos se transforma em uma traidora. A morte de uma amiga serve de "gatilho" para a decisão, que não requereu grandes dramas de consciência. Nesse momento, o entretenimento literário passa a ser uma ferramenta de doutrinação ideológica.  Em outras palavras, todas as 423 páginas do romance estão alicerçadas em um único propósito: afirmar que os estadunidenses são superiores – no campo da ética, da técnica e da inteligência – aos russos.

Essa “verdade” é enunciada a todo instante. Mesmo quando se apresenta como contradição. Basta confrontar os informantes.  Enquanto o General Vladimir (Volodia) Korchnoi, se mostra cuidadoso, astuto e confiável, a Senadora Stephanie Boucher, prima pela arrogância, pela rebeldia e pela falta de cuidado com a segurança. O maniqueísmo destrói qualquer verossimilhança. Os russos são cruéis, utilizam assassinos profissionais, torturam, mentem e não se detém diante de quaisquer obstáculos. Os americanos se comportam de igual maneira, mas com uma diferença fundamental: segundo o narrador, lutam pela “democracia” e pela “liberdade”. Rir dessas bobagens parece ser o único procedimento aceitável para o leitor que possui algum senso crítico.

O clima de guerra fria, ressuscitando os anos 60 e 70, faz com que todos os elementos narrativos importantes evaporem nas páginas finais do livro. Sobra apenas a barbárie. Dominika, que parecia ser o protótipo da mulher que consegue superar os empecilhos causados pelas atividades masculinas, se transforma em fantoche das ações políticas. A decepção se instala.

 TRECHO ESCOLHIDO

 

No balé, os alunos mais experientes sabem tanto de anatomia, articulações e lesões quanto um médico. Insuflado pelos hormônios e os ardores do sexo, Konstantin esperou pacientemente até sua vez de formar par com Dominika. Certo dia, numa sala apinhada de alunos, ele fazia um pas de deux com sua parceira quando pisou forte no calcanhar dela durante uma ponta, fazendo que o pé vergasse para frente. Dominika desabou no chão no mesmo instante e se encolheu de tanta dor, as cores sangrando à sua frente. Foi levada à enfermaria sob o olhar assustado das colegas que praticavam a barra – Sonya era a mais pálida de todas. Ao olhar para ela antes de sair, Dominika intuíra toda a verdade ao ver a expressão de culpa, o miasma cinzento que a envolvia numa espiral invisível aos demais. Seu pé agora era um volume preto e roxo que se dobrava para trás, grotesco, e a dor, lancinante, irradiava para a perna.

 

– Fratura-luxação de Lisfranc no mediopé – sentenciou o médico.

 

Após uma série de exames ortopédicos, uma cirurgia de emergência e uma bota de gesso até a altura do tornozelo, Dominika foi dispensada da academia. Num piscar de olhos sua carreira de bailarina havia chegado ao fim. Os comentários de que ela seria a próxima Ulanova ficaram no passado. As professoras, os preparadores e os mestres de balé já nem olhavam mais para ela.

 

Àquela altura Dominika já aprendera a represar sua inclinação para a fúria, mas agora não havia o que fazer. Era pedir demais. Num momento de histeria, cogitou denunciar Konstantin e Sonya pela sabotagem. Não havia dúvidas que eles também seriam dispensados assim que a armação viesse à tona. Mas no fundo ela sabia que nao seria capaz disso. Dominika ainda contemplava o próprio futuro, atordoada, quando recebeu o telefonema da mãe.  

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