No entrecruzamento de duas formas
artísticas, o ruído se torna inevitável. Entende-se ruído por algo que incomoda,
por alguma coisa que parece estar no lugar errado (e está!). No caso específico
do “casamento” entre literatura e o cinema, por exemplo, o barulho se tornou
uma constante. Em alguns momentos, o filme destrói o livro; em outros, o filme
está vários degraus acima do texto. E ainda há os casos em que o resultado
final sequer se parece com a narrativa que serviu de inspiração. Alfred
Hitchcock tinha uma tese curiosa sobre essa ligação amorosa: livros ruins é
que dão filmes bons. Muitos comentaristas de cinema rejeitam esse pensamento.
A realização cinematográfica depende mais da técnica do que do roteiro, dizem,
lembrando que uma direção frouxa causa maiores danos do que alguma “liberdade
poética” que possa ser utilizada no desenvolvimento fílmico. O estadunidense Gore
Vidal divergia violentamente dessa ideia. Em um ensaio clássico, Quem faz o
cinema? (incluído no livro De Fato e de Ficção), defende a ideia de que o
roteirista é mais importante que o diretor e que a carpintaria estrutural de
uma história supera quaisquer artifícios artísticos que possam surgir no set de
filmagem ou na mesa de edição. O pessoal da literatura – que defende a sacralidade
do texto original – não concorda com essas duas hipóteses. Embora aceitem o
corte de algumas cenas, ficam furiosos com os enxertos e são irredutíveis
contra qualquer alteração na espinha dorsal do enredo.
Em um mundo onde todos se decepcionam (porque
estão, simultaneamente, certos e errados), o ponto comum está na concordância
de que a literatura e o cinema trabalham com linguagens diferentes e que a
fidelidade absoluta inexiste em qualquer adaptação.
Recentemente, um romance de espionagem foi adaptado pelo cinema. Imediatamente, o livro se tornou um best-seller. Não há como impedir as ligações perigosas que o capitalismo produz nas relações de consumo. O divertido, nessa história, está em um fato básico: os dois produtos são de péssima qualidade. O livro, Red Sparrow, escrito por Jason Matthews, em 2013, foi publicado no ano seguinte no Brasil com um título estranho: Roleta Russa. Parece que algum gênio do marketing acreditou que “Pardal Vermelho” (ou Russo) não era uma opção aceitável. Com o lançamento do filme, publicaram uma segunda edição da narrativa, agora com um nome mais fácil de ser consumido pelo público que se deixa conduzir pelo entretenimento: Operação Red Sparrow. Logo abaixo do título, um slogan publicitário (revelando a ausência de escrúpulos editoriais e econômicos): Pronta para seduzir, treinada para matar.
A crítica especializada em cinema detestou
o filme. Parece que sobram cenas de nudez e faltam qualidades artísticas em
atores e equipe técnica.
Sobre o livro, cabe destacar inúmeros
problemas de redação (ou de tradução) e o desperdício de uma boa ideia. A história de uma
bailarina que, em função de um “acidente” de trabalho, precisa se tornar uma
espécie de Mata Hari contemporânea poderia resultar em uma boa narrativa. Infelizmente
o castelo desaba. Na ânsia febril de demonstrar que as equipes de espionagem
estadunidenses são mais competentes que as russas, a protagonista (Dominika
Egorova) vai sendo devorada lentamente por um narrador “professoral” que, em nome de "valores" superiores, decreta as diferenças entre o bem e o mal.
Treinada pela Sluzhba Vneshney Razvedki,
SVR (Serviço de Inteligência Estrangeiro), organismo que substituiu o Komitet
Gosudarstvennoi Bezopasnosti, KGB (Comitê de Segurança do Estado), Egorova
recebe ordens de seduzir Nathaniel (Nate) Nash, agente da Central Intelligence
Agency, CIA. Deve descobrir a identidade de um alto funcionário russo que está
passando informações confidenciais ao inimigo. Por sua vez, o estadunidense é
induzido a agir com o mesmo propósito – alguns segredos militares estão sendo
entregues aos russos. Arma-se um jogo de gato e rato, onde se torna difícil
definir quem é quem. Essa tensão sofre um incremento quando surge em cena a atração amorosa e sexual.
Longe de ser uma versão de Romeu e
Julieta, o romance perde a essência logo depois. Lá pela metade da narrativa, Dominika aceita ser uma informante da CIA – inconformada com diversos acontecimentos se transforma em uma traidora. A morte de uma amiga serve de "gatilho" para a decisão, que não requereu grandes dramas de consciência. Nesse momento, o entretenimento literário passa a ser uma ferramenta de doutrinação ideológica. Em
outras palavras, todas as 423 páginas do romance estão alicerçadas em um único propósito: afirmar que os estadunidenses são superiores – no campo da ética, da
técnica e da inteligência – aos russos.
Essa “verdade” é enunciada a todo
instante. Mesmo quando se apresenta como contradição. Basta confrontar os
informantes. Enquanto o General Vladimir
(Volodia) Korchnoi, se mostra cuidadoso, astuto e confiável, a Senadora
Stephanie Boucher, prima pela arrogância, pela rebeldia e pela falta de cuidado
com a segurança. O maniqueísmo destrói qualquer verossimilhança. Os russos são
cruéis, utilizam assassinos profissionais, torturam, mentem e não se detém diante de quaisquer obstáculos. Os americanos se comportam de igual maneira, mas com uma diferença
fundamental: segundo o narrador, lutam pela “democracia” e pela “liberdade”. Rir
dessas bobagens parece ser o único procedimento aceitável para o leitor que
possui algum senso crítico.
O clima de guerra fria, ressuscitando os
anos 60 e 70, faz com que todos os elementos narrativos importantes evaporem
nas páginas finais do livro. Sobra apenas a barbárie. Dominika, que parecia ser
o protótipo da mulher que consegue superar os empecilhos causados pelas
atividades masculinas, se transforma em fantoche das ações políticas. A
decepção se instala.
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