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sexta-feira, 24 de junho de 2022

O DISCURSO DA EXCLUSÃO

 

A deusa grega Atena (Minerva, para os romanos)

Santa Catarina foi objeto da atenção nacional recentemente. Uma das partes envolvidas concedeu entrevista a um jornal de circulação estadual. Deixando de lado os principais pontos da conversa, há um trecho que deveria despertar a atenção de alguns leitores:                         

 (...) Passo os finais de semana lendo. Tenho uma biblioteca caríssima, eu compro livros importados... Eu estudo para isso (...)

Ao destacar as horas de estudo e a possível capacidade de interpretação dos textos relacionados com o exercício profissional, a pessoa que estava respondendo as perguntas exerceu, sem nenhum pudor, o carteiraço – fenômeno autoritário que se caracteriza pela célebre sentença: você sabe com quem está falando?

Nessa situação, como o interlocutor desconhece os predicados de quem deseja mostrar que está em outro nível, aquele que acredita ter incontornável importância descreve (com visível prazer) a interminável lista de cargos, funções, ocupações, incumbências, compromissos e responsabilidades que acumulou ao longo do que imagina ser uma vida de conquistas e vitórias. A intimidação é o principal propósito da exaustiva enumeração.

Ao mencionar a biblioteca, metáfora do saber e do estudo, o discurso parece dizer, sem dizer, mas com vontade de dizer, que existe a ascendência do conhecimento específico sobre o conhecimento vulgar (embora ninguém saiba exatamente qual pode ser a diferença entre um e outro). Desta forma, coloca em evidência o seu lugar de fala e, simultaneamente, determina o espaço do Outro. Em outros tempos costumava-se dizer que alguns indivíduos deveriam saber como se portar em cada circunstância. De uma forma mais específica, o carteiraço quer impor o posicionamento social e, simultaneamente, a exclusão.

Ao separar a sociedade em dois segmentos distintos (os que estão em posição dominante e os demais), o discurso aponta para um tipo de superioridade que costuma ser acolhido como natural. Principalmente quando está escudado em cargos públicos e títulos acadêmicos. Basta exibir a identificação funcional e esperar pela vassalagem.

Como adição, a declaração reforça a separação social através da eficiência econômica. O uso da expressão caríssima, que, obviamente, não se refere ao carinho ou ao afeto pelo conhecimento, está ligado à precificação do saber. A biblioteca (local em que as informações estão armazenadas) é percebida como mercadoria – que somente está ao alcance dos consumidores que possuem condições financeiras para comprar livros importados.

Os livros importados (e as diversas teorias exógenas que abordam) significam uma melhor preparação para a análise e o poder de decisão em casos concretos? Duvidosa percepção do contexto – exceto se estiver escorada em um projeto de poder. E que visa bloquear quaisquer possibilidades de contestação, porque supõe contemplar a verdade ou, na pior das hipóteses, o melhor sofisma. 

Por trás desse tipo de procedimento, existe o inevitável desvio da atenção através do vitimismo. Ao sugerir que – para conseguir o êxito profissional – é necessário sacrificar a vida particular e renunciar aos prazeres mundanos, induz a proposição de que a aquisição do saber se assemelha ao martírio. Esse pensamento, que equivale ao uso do cilício, retoma algumas práticas que fariam sucesso na Idade Média.

Por fim, o uso de argumentos escorados na meritocracia (eu comprei livros caríssimos, eu passo os finais de semana estudando) faz da violência psicológica (o carteiraço) outro tipo de repressão – que almeja obter o mesmo efeito da violência física.

 

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