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segunda-feira, 6 de junho de 2022

O INVASOR (texto modificado)

 


O edifício em que moro está situado ao lado de um terreno baldio. Isso significa, entre outras coisas, duas grandes preocupações. Mais cedo ou mais tarde, haverá a inevitável construção de algum prédio, o inferno em forma de barulho incessante. A segunda é mais prosaica: insetos.

As visitas sempre foram pacificas nos últimos quatro anos: formigas, joaninhas, mosquitos, aranhas. A vida se manifestando de diversas formas. Confesso que usei citronela algumas vezes, mas foi mais para manter distância dos animais do que para lhes causar mal. O meu budismo falsificado impede atos sanguinários.

Algum tempo atrás, o apartamento em que moro foi invadido por um grilo (não sei se era um indivíduo do modelo Acheta domesticus ou Gryllus Assimilis). Fui à procura do ortóptero. Queria solicitar que se retirasse. A sua presença não era bem-vinda. Mestre da camuflagem, o sujeito se manteve em lugar incerto e não identificado. Durante duas noites produziu o desconforto que não desejo ao meu pior inimigo (desejo, sim, mas a boa educação recomenda fingir que não).

Fui forçado a fechar a porta da cozinha e a janela do banheiro para tentar abafar o ruído. Simultaneamente, promovi intensas expedições de procura na cozinha e na área de serviço. Esquadrinhei milimetricamente essas áreas. Quando, finalmente, o encontrei, não tive piedade. Providenciei a sua volta ao habitat natural. A paciência (que é pouca) não permitiu outro desfecho.

Dois dias depois a tortura recomeçou. Não sei se era o causador da primeira irritação ou algum outro. Desta vez, o som parecia vir da região embaixo da pia. O fato é que ele não queria sair do armário.

Fui procurar uma maneira de resolver o mal-estar (ah, os eufemismos!). A internet é a nova Barsa. As indicações sobre o procedimento básico que deve ser adotado nessas ocasiões são inúmeras. Uma das mais recomendadas consiste em colocar melaço em um prato. O animal é atraído pela guloseima e morre afogado. Descartei esse doce barbarismo.

A ilustre Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD), ao saber que eu poderia, em caso de desespero, ter as piores intenções com o bicho, afirmou que não se deve fazer mal aos membros da família das gryllodeas. Isso atrai o azar – disse. Talvez ela esteja certa. Na China, esses seres irritantes são considerados sinal de sorte.

Enquanto não conseguia decidir o que fazer, aconteceu algo que não sei explicar adequadamente. Aquele que estava incomodando sumiu. Suspeito (mas sem convicção) que essa ausência esteja relacionada com o cheiro da cera líquida que a AALD passou no chão do apartamento.

De qualquer forma, o problema desapareceu. Por pouco tempo. A reincidência não demorou três meses. Roçaram o terreno baldio. O grilo (provavelmente outro) foi despejado de sua residência. Para resolver o problema de moradia, procurou por novo endereço. Fui escolhido para hospedá-lo. Não gostei dessa notícia. Durante a noite, com a lanterna do celular ligada, fiz nova busca. Estava cricrilando na sacada. Sem pudor ou crise de consciência, pratiquei o verbo defenestrar (jogar pela janela). O silêncio se transformou em sinônimo de alívio.   

Convicto que o meu castelo (metafórico), em algum momento, será atacado por novos invasores, aguardo-os (quase em pânico).

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