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terça-feira, 24 de dezembro de 2024

UM DITADOR NA LINHA

 


O Secretário Geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Iosif Vissarionovich Dzhugashvili (1878-1953), no dia 23 de junho de 1934 (sábado), telefonou para o escritor Boris Leonidovich Pasternak (1890-1960). Queria saber o que o escritor pensava sobre o poeta Osip Emilyevich Mandelstam (1891-1938). Nervoso, Pasternak desconversou e respondeu que o conhecia pouco: Somos diferentes, Camarada Stalin. Consta que, aborrecido por não ter obtido a resposta esperada, Stalin teria encerrado a conversa afirmando: Você é um péssimo camarada, camarada Pasternak.

Essa é uma das treze variações do assunto mais comentado em Moscou, no final do verão de 1934. Ismail Kadaré (1936-2024) examinou o assunto em Um Ditador na Linha (São Paulo: Companhia das Letras, 2024. Tradução de Bernardo Joffily). Mais do que tentar esclarecer as relações entre o poder e a arte, entre a amizade e o medo, o livro propõe separar as intrigas do que realmente aconteceu. No entanto, isso esbarra em muitas dificuldades. Os relatos são divergentes: ou escapam do verossímil ou estão contaminadas por interesses particulares.

Qual é o elemento mais estranho nessa história? O número do telefone. Ele foi criado especialmente para essa conversa. Somente essa. Depois foi desligado. Ficou mudo para todo o sempre, supostamente para impedir que o teor exato do diálogo fosse revelado. Ou para impedir a existência de outra ligação.   

Quem tornou pública a existência da conversa? Foi Pasternak ou alguém do governo? Algumas das versões apontam para Pasternak. Outras são derivadas de rumores que se multiplicaram com o passar do tempo e que, por inúmeras razões, não permitem verificar se estão corretas ou se são apenas fofocas de segunda mão. Por exemplo, quando Isaiah Berlin (1909-1997) morou em Moscou, Pasternak contou para ele a história do telefonema, mas o fez de tal forma que o desfecho não é conclusivo: Nesse ponto, ao contar o episódio, Pasternak embarcou mais uma vez num de seus grandes voos metafísicos sobre os momentos cósmicos decisivos na história do mundo. Em outro trecho, Isaiah Berlin acrescenta: O episódio evidentemente o afligiu de maneira muito profunda. Repetiu para mim a versão que acabo de relatar em pelo menos duas outras ocasiões e contou a história a outros visitantes, embora, aparentemente, de formas diferentes. Pelo relato de Isaiah Berlin, Pasternak tentou salvar Mandelstam – inclusive porque solicitou a intervenção do editor do jornal Izvestia, Nikolai Ivanovich Bukahin (1888-1938). Não é a versão mais confiável.  

Pasternak traiu Mandelstam (que já estava preso)? Essa é a dúvida crucial. E é quase insolúvel, porque não responde à questão principal: por que Stalin telefonou para Pasternak? Será que o líder soviético esperava alguma palavra de solidariedade para Mandelstam? Se isso acontecesse, não seria motivo suficiente para também mandar encarcerar Pasternak? Para complicar, existe a possibilidade de Pasternak ter conhecimento do poema que Mandelstam escreveu contra Stalin. Seria esse o motivo da cautela? Naqueles tempos difíceis, manter a liberdade implicava em nunca discordar da política cultural (e ideológica) do Estado.

Cada uma das pessoas que conta a história do telefonema acrescenta um elemento a mais, uma possibilidade diferente, embora quase todos concordem que talvez fosse possível salvar Mandelstam. Bastava Pasternak dizer as palavras certas. Ele não disse.

Sintomaticamente, o telefonema criou a suspeita de que Pasternak tinha contatos com o alto escalão do Estado. Quem estava em apuros recorria a ele: Por que [Sergey Pavlovitch] Brobov [1889-1971] enviou a sua esposa a Pasternak? Julgaria de fato que o outro faria por ele o que não fizera por seu amigo Mandelstam? E, por fim, acreditaria que Stalin daria ouvidos à intervenção do poeta? Ao longe, mas se aproximando com rapidez, está o mito de Fausto (... quando se tratava de escritores renomados, pensava-se bastante nesse pacto, embora se falasse raramente dele). Em outro tom, mas encaixado na mesma situação, Vsevolod Emilevich Meyerhold (1874-1940) aconselhava, para quem quisesse entender a situação, a leitura de Macbeth. São conjecturas que não ajudam a decifrar o enigma, mas abrem espaço às mais diversas interpretações. 

Em paralelo, surge a história da Albânia (e da Letônia) – que, de certa forma, foi (ou ainda, é) uma província distante da Mãe Rússia. Com a devida ressalva de que esse parentesco, consequência da II Guerra Mundial, se aproxima de uma ferida que não cicatrizou. Aos países pequenos, assim como para aquelas pessoas que se afastam das diretrizes do Estado, qualquer deslize pode levar à ruína.   

 

Ismail Kadaré (1936-2024)

P.S.: Para conferir o texto de Isaiah Berlin, ver:

BERLIN, Isaiah. Conversas com Akhmatova e Pasternak. In: Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 530-557.


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