Era época dos dias escuros de gelo e neblina em Bordeaux. Susane, obscura advogada, é contratada para defender Marlyne, autora de triplo infanticídio (os filhos tinham seis anos, quatro anos e seis meses, respectivamente). O marido, Gilles Principaux, alega não gostar do advogado da família – então ele e a esposa optaram por procurar outro profissional.
Susane carrega dentro de si alguns fantasmas, um deles a conduz aos seus dez anos, quando pode (ou não) ter acontecido algo que ela bloqueou, mas que muitos anos depois ainda a atormenta. A isso se soma o ressentimento contra o seu pai, as discordâncias com a mãe, a tentativa de resolver o problema de documentação de Sharon, a empregada (imigrante das Ilhas Maurício), e Lila, a filha do ex-marido, projeção do relacionamento amoroso fracassado.
O narrador onisciente do romance optou pela aspereza ficcional, com pouca fluência, que parece não querer avançar, várias páginas procurando por desvios. Nesse ritmo, o texto vai sendo conduzido para lá e para cá, sem permitir que se saiba exatamente qual será o desfecho – inclusive porque isso está meticulosamente escondido.
A vingança é minha, de Marie NDiaye (Editora Todavia, 2024. Tradução: Marília Scalzo), não é romance que se deve recomendar para apressados ou para aqueles que querem deslizar pelo texto como se estivessem em parque de diversão. A demora premeditada em explicar os eventos narrativos vai alargando a história, introduzindo estranhamento, criando uma atmosfera sombria e repleta de penduricalhos.
O relato dessas minúcias elabora o painel dos acontecimentos: o marido que parece não ter ficado surpreso com a morte dos filhos (Principaux apenas não parecia suficientemente “emocionado”), a esposa quase catatônica, os depoimentos dos policiais que atenderam a ocorrência, os relatos dos companheiros de trabalho antes de Marlyne se casar (era professora de francês), o antagonismo da família dela com Gilles (Ele se impunha, vinha da burguesia, era bastante autoritário, apesar de seu ar descontraído).
Nesse emaranhado de relatos – que parecem não levar a nenhum esclarecimento – Susane, com meticulosidade, vai adentrando no âmago da situação, e, como se fosse um detetive policial, tenta entender o que está por trás do crime. Ao visitar sua cliente na prisão, escuta uma narrativa incoerente, um misto de comiseração pela dor do marido e o sentimento de ter se libertado da opressão doméstica (no pano de fundo, o discurso estrutural da feminilidade submissa parece gritar nos ouvidos do leitor). Gilles, todas as vezes que visita o escritório de Susane, exalta a felicidade familiar e se mostra reticente aos motivos que levaram à morte dos filhos. Ao mesmo tempo em que declara amor incondicional à esposa (e quanto isso o faz sofrer), revela a banalidade do macho provedor que ignora o que está acontecendo diante de seus olhos.
Susane percebe que existe um abismo faminto nessa situação, uma falha geológica que separa o território afetivo em metades irreconciliáveis. Por mais absurdo que pareça, em determinado momento, Susane deixa de lado a neutralidade jurídica e, em mero exercício aritmético, percebe que o marido sufocou a vida interior de Marlyne – e a impulsionou para a autodestruição. Matar os filhos, mais do que um sintoma do adoecimento, surge como uma rota de fuga da gaiola de ouro que mimetiza o casamento.
Em
A vingança é minha, em alguns momentos se torna difícil distinguir quem
está mais atormentada: a assassina ou a advogada. O onírico carrega a tendência
de criar fantasias, de expandir o poder de influência do inimigo (seja real,
projeção ou apenas medo). As duas mulheres estão acompanhadas pelo mal-estar,
pela sensação de habitarem um não-lugar – espaço em que precisam encontrar forças
para existirem, para superar as obrigações sociais (a maternidade, a perda da
identidade). A intimidação atinge tal ponto que a personalidade feminina vai
sendo diluída até só restar a servidão absoluta. Ou a revolta catastrófica.
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| Marie NDiaye |


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