

Com os frutos do teléque−téque da sua Olivetti Lettera 32, comprovando que quem sai aos seus não degenera, publicou, ou publicaram por ele, salvo engano, apenas três livros: Garotos da Fuzarca (1986), Ivan Vê o Mundo − Crônicas de Londres (1999) e O Luar e a Rainha (2005). Nenhum teve a honra e a graça de ser obsequiado com o selo da saudosa Codecri (que Deus a tenha!), braço armado, digo, amado, digo, editorial daquele grupo que adorava espinafrar a fina flor da opressão que vicejava (ó dor, ó azar, ainda viceja) por essas paragens sem fim, espremida nos limites geográficos da zona de conforto habitada pela burguesia semi−letrada que reside em Pindorama. Chama−se de História, o catalogar ordenado de cicatrizes. E contusões.

Em todo (des)caso, ler o Mestre da ironia, do sarcasmo, o escritor que adorava mandar todo mundo tomar no respectivo orifício excretor, é garantia de diversão primeira classe, centenas de frases sacanas, chistes ferinos e chiliques felinos, exercício lúdico e lúcido de brincar proustianamente com o passado, o presente e do futuro dos tempos imemoriais, muitos desses momentos constituídos pelos devaneios publicados nas sáfaras páginas de Gibi ou do Almanaque do Tico−Tico, quiçá em O Cruzeiro ou em A Cigarra?
Era uma galáxia com sabor de Sonho de Valsa, Mentex, chicletes Adams e Diamante Negro. Naqueles tempos em que era comum as paredes do quarto de qualquer adolescente normal ser decorada com o pôster do Cauby e o sanguinário quadro com o Sagrado Coração de Jesus, a vitrola deixava fluir as vozes da Emilinha Borba e da Dolores Duran embalando sonhos masturbatórios, causados pelos filmes de Ava Gardner e da Rita Hayworth (imperdíveis sessão de inicio de tarde no Riam ou no Metro).

Se A única vantagem de ser mais velho é poder mentir para os mais jovens, Ivan também exerceu o inconveniente ofício de recordar histórias da vida privada: quem é que se lembra do Lochas? E do primo do Sunda? Não minta, sei que você lembra. Lembra. Ah, lembra. Só faz que não. Um ligeiro tremor na tua voz não consegue esconder que houve um relampejar de lembranças adolescentes, o nosso velho e bom atentado à moral, aos bons costumes e ao pudor, praticado naquele matinho ali perto da tua casa.

Ivan Lessa, ilustre botafoguense, inimigo do assovio, a bordo de um Studebaker, levantando poeira e inveja, como todo exemplar raro da nossa fauna e flora, adorava fazer pose de british gentleman comendo morango com chantili em Wimbledon − enquanto perdia a razão e o bom senso ao ver as coxas de Maria Sharapova. Nas horas vagas sofria torturas inomináveis naqueles ônibus de dois andares, eating fish and chips nos intervalos entre as múltiplas sessões de Earl Grey ou Darjeeling with milk and honey in the five o’clock tea of Her Highness, the Queen, recitando versinhos do John Donne em Saint Paul Church ou carregando sacolas repletas de intragáveis enlatados, mercantilizados no Sainsbury ou no Tesco.

Gudináite, mai diar urraiter, espero que, nessa tua última viagem, haja uma mulher de preto no cais dando adeus com os olhos úmidos. Requiescat in pace.
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Em ritmo de post scriptum e epitáfio, caro Ivan Lessa, como que a prestar vassalagem a quem foi bom à beça, copiei de um dos teus livros as palavras de Robert Benchley: quando morre um humorista, a gente tem que procurar um bar onde toquem música barata e beber até ser expulso do recinto.
Comovente... Adorei
ResponderExcluirMorreu Millôr, morreu Ivan... Agora percebo a mediocridade das novas gerações. Lerei o luar e a rainha.
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