O Brasil desconhece a literatura da Argentina.
Frequentemente, fazemos questão de ignorar nuestros hermanos – exceto aqueles
que conquistaram um lugar no Olimpo literário: Jorge Luís Borges, Julio
Cortázar, Roberto Arlt, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato, Macedonio Fernández. Algumas
vezes, não muitas, aceitamos que há um mínimo de talento em meia dúzia de
semideuses: Ricardo Piglia, Martín Kohan, Alan Pauls, Juan José Saer, Mempo
Giardinelli e Cesar Aira. Como se fossem filhos de um vizinho que brigou com
nossos pais, fazemos de conta que os demais não existem. Na pior das hipóteses,
talvez por apresentarem a face criminal dos filhos bastardos, em inconteste ato
de generosidade verde-anil, cabe-nos fornecer abrigo para escritores do nível
de Tomás Eloy Martinez, Rodrigo Fresán e Rodolfo Fogwill. Raríssimas vezes
alguém se lembra de Osvaldo Soriano, talvez o mais divertido de todos os
escritores argentinos. Alguns anos atrás, por força do marketing e da cegueira
masculina, uma legião declarou adoração por Pola Oloixarac – esquecendo que a
beleza é transitória, ao contrário do talento.
Nesse ritmo um pouco desafinado, que não
se decide por samba, tango ou jazz, Ana María Shua está
destinada à exclusão. Um de seus romances, A Morte como Efeito Colateral, foi
publicado no Brasil em 2004. Passou completamente despercebido.
Ana Mária Shua |
Ernesto (Eni) Kollody assiste a lenta
morte do pai. Câncer no intestino. Temporada no hospital, várias cirurgias,
pós-operatórios dilacerantes. Em um lugar não tão secreto do meu coração, eu
desejei para papai uma morte muito doce, e nem por isso me senti culpado. O
fim de tudo, a tranquilidade desejada, não acontece. Ao contrário, a vida se
estende por muito tempo, uma eternidade retratada em 208 páginas, sem
economizar detalhes ou sentimentos. Não é fácil para Eni aceitar que a história
humana funciona em outro diapasão, diferente daquele que tinha sido imaginado.
Essa falha nos planos multiplica os elementos desencontrados do enredo. Alguns
bastante desagradáveis. O fracasso possui razoável nitidez, principalmente
quando, depois de tantos anos, confrontado com a força paterna reflete aquilo
que costuma ser negado com veemência. Estou
próximo demais da velhice para pensar na morte – em qualquer morte – apenas
como alívio. Tenho medo.
Buenos Aires. Futuro não muito distante.
Mundo apocalíptico. Classes econômicas em constante atrito. Ricos escondidos em
condomínios fechados. Vivendo em separado dos pobres – que a todo instante saem
às ruas para morrer pelo que nunca terão. A violência, amparada pelas drogas e
a ausência do Estado, insufla a barbárie – uma palavra que causa calafrios
mesmo antes de ser pronunciada.
Personagem-narrador, Eni dirige o seu
relato para uma mulher ausente. O monólogo interior disfarçado como se fosse
uma longa carta, entrecortada por capítulos, reflete as sutilezas que devoram o
discurso. A descrição pretérita supera os momentos de ação. As pausas no ritmo
permitem a respiração, um golpe astuto para não sufocar o leitor com tamanha
angústia. A proposta filosófica do pensar e falar se destaca e adquire
relevância mais significativa do que o fazer. Assim era o nosso contato: a
paixão era sua, os excessos emocionais; a mim correspondia certa frieza sorridente,
uma calma de esgrima intelectual que me permitia observar seus flancos
descobertos, e poderia ter me conduzido à estocada definitiva se não fosse
porque, de repente, por uma hábil torção de discurso, seu entusiasmo fazia voar
as palavras-espadas pelo ar e já não era esgrima, mas uma luta de corpo a corpo
na qual você sempre ganhava.
Eni, ao mesmo tempo em que descreve a tirania
patriarcal, a demência da mãe, a ausência de maturidade da irmã, vai tecendo a
história da decadência familiar. Com afirmações contundentes, essa espécie de
boneca enrugada, como um trapo mal passado, de cor amarelada e olhos
desesperados, que tinha sido nossa mãe, estabelece o andamento sem comiseração
do seu relato. Quer transmitir a quem endereça o seu texto o máximo de “verdade”
que seja possível.
Maquiador profissional, Eni está
escrevendo um roteiro de cinema. Quem o contratou foi Goransky – um milionário que
vive imerso em seu próprio mundo de ficção, entre as imagens dos seus sonhos.
Ou seja, um sujeito que se realiza intelectualmente no cinema que nunca
filmará. Mas que se diverte imaginando essa possibilidade. É através do
imobilismo que imagina filmes de aventuras, romances, ficções científicas – todos
situados na Antártida. O roteiro, peça mutante, que nunca assume forma objetiva,
instrumentaliza a brincadeira.
Meu pai cheira a merda. Entre os odores
medicinais e antissépticos, odores perfumosos, da Unidade de Terapia Intensiva,
é possível sentir um suave rastro que vai se acentuando ao se aproximar de sua cama. No mundo das sensações, a morte se apresenta de maneiras diferentes. Talvez a
mais cruel seja a que chamamos “vida”. Sofrimento, reclamações, desgostos e suplícios
se misturam em proporções desiguais. Contra isso não há nenhum anestésico. A
partir de certa idade, de certo grau de invalidez, a verdadeira prisão é o
corpo e qualquer outro confinamento não é nada mais que uma compensação menor.
Quando o pai pede para morrer em casa,
Eni – por alguma razão pouco plausível ou por desejo de vingança inconsciente –
resolve sequestrá-lo da Casa de Repouso. Quer oferecer uma morte digna ao velho
torturador. A sequência dos eventos mostra que – mais uma vez – nada ocorre
como planejado. De qualquer forma, uma metáfora significativa da degradação
humana.
A Morte como Efeito Colateral, exercício
técnico de romance realista, apresenta uma surpresa a cada página. E todas – as
surpresas e as páginas – são ótimas. O que significa dizer – embora isso nada
queira dizer – que o patético, assim como o humor negro, acompanha a morte.
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