Seguindo a trilha esburacada da coleção Amores Expressos, Daniel Pellizzari, em Digam a Satã que o Recado foi
Entendido, conseguiu dar várias demãos de tinta colorida na falta de graça de um
projeto que nasceu prometendo qualidade e, depois de dez tentativas, ainda está
em débito.
Pellizzari, simulando um desses mágicos
de fraque e cartola, desvia atenção do público com algumas historinhas enquanto
realiza o truque narrativo. Terminado a leitura, cabe a pergunta: como é que ele
fez isso?
Qualquer um que queira usar a Irlanda
ou, especificamente, Dublin como cenário precisa pagar tributo. Ou ser muito
criativo. E isso tem uma explicação trivial: parte da mitologia literária mundial
costuma passar férias na Irlanda. Em outras palavras, George Bernard Shaw,
Oscar Wilde, James Joyce, Samuel Beckett, Colm Tóinbín, John Banville, entre
outros, nunca esconderam ter nascido naquela ilha abandonada por Deus.
Obviamente, esse álbum de figurinhas jamais ficará impune. Ou melhor, não pode
ser amenizado pelo uso de suéteres verde e branco. Ou pelo ignorar que protestantes
e católicos estão matando uns aos outros. O pagamento ocorre de outra maneira. E
de forma muito mais cruel. Em poucos lugares do mundo o alcoolismo altera a
substância da existência. May I have a pint of Guiness?
Como um par romântico, desses que estão
– desde sempre – destinados um ao outro, o fracasso caminha de mãos dadas com o
ridículo. Visão panorâmica das profundezas do inferno. O demônio se alimenta de
gargalhadas. O tridente alfinetando a bunda dos tolos. Fornecendo historias e
trapalhadas. Uma mais maluca que a outra.
Bartholomew
(Barry, Bazza) O`Shaugnessy. Figurinha carimbada e politicamente incorreta. Em
lugar de integrar o elenco de alguma ópera-bufa obscura, onde provavelmente
seria indicado para algum prêmio mais obscuro ainda, protagoniza os eventos
mais engraçados do romance. Como um dos sócios da agência de turismo especializada
em roteiros mal assombrados, inventa fábulas, mitos e fantasias. Viajantes ávidos
por emoções baratas gostam desse tipo de brincadeira. Pagam para serem
enganados. Os maiores absurdos acompanham a farsa – o leitor, deliciado, segue as
trapalhadas. Riso fácil.
Barry, natural da “República de Cork”, estereótipo
intelectual dos torcedores do Corinthians. Linguagem cortante, agressiva, repleta
de palavrões. Difícil abandonar o livro no trecho em que ele, em primeira
pessoa, relata a vida que leva no casarão em que mora de favor com Stuart. A avó
de Stuart, Aoife, também mora com os rapazes, provedora econômica de intermináveis
dias e noites de orgias sexuais, bebidas, drogas e games. Esbórnia total.
Geral. Stuart só gosta das feias. Barry fala muito e não come ninguém. A velha “parte
dessa para uma melhor” no melhor estilo pastelão. Ponto alto da narrativa, puro
escracho, trapalhada grotesca.
Na outro lado da confusão, Magnus Factor.
Oscilando entre os corpos da eslovena Stefanija e da adolescente irlandesa
Laura, o “fator máximo” não consegue encontrar os acordes musicais capazes de desatar os nós emocionais que amarrou em
torno de si mesmo. Tanto que inicia e termina o livro sem saber qual é o seu
sabor preferido de milk-shake. Esse tipo de indecisão não atrapalha a falta de
coerência que o orienta. Nas horas vagas, iluminado pelo desatino e por Laura,
trava um leve flerte com um grupo de guerrilha poética, bando de malucos que
saqueiam cemitérios, armam bombas em bares e restaurantes e, como compete aos perdedores, não
conhecem as distinções entre a intervenção política e o terrorismo.
A imaginação não conhece limites.
Percebe-se a correção dessa afirmativa ao ler os depoimentos extravagantes dos
diversos personagens, histórias fragmentadas que unem as múltiplas pontas com
comedimento, em tom de comédia e refletem a globalização – epidemia que se
esparrama entre as mais diferentes nacionalidades possíveis, russos, brasileiros,
ingleses, polacos e filhos naturais da Ilha Maurício. O mundo marcando encontro
nas ruas de Dublin com os exilados econômicos, gente que não tem onde cair
morto, tomando de assalto os pubs, brincando de esconder entre os pelos púbicos
de quem quiser se divertir gostoso. Fato que, obviamente, não constitui impedimento
contra pequenos incidentes sexuais, brochadas épicas ou surpresas como a do
adolescente Glen Heaney, conhecido como Patricia, item desestabilizador dos
planos do bruxo Demetrius Vindaloo, que necessitava de uma fêmea para poder
ressuscitar o deus-serpente dos Celtas.
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