Ao contrário do que o marketing
editorial está anunciando aos quatro ventos, O Drible, de Sergio Rodrigues, não
é exatamente um romance sobre futebol. No máximo, o jogo atua como catalisador de uma
história perversa sobre as arestas emocionais que arranham a paternidade e a
filiação.
O filho, depois de 26 anos sem ver o
pai, recebe um telefonema: Estou à sua espera, Tiziu. Estou morrendo. Ele
sabe que não deve ir, mas não resiste, são muitas as pontas soltas, a história
comum exige explicações. Então, sem entender se foi movido pela curiosidade ou pela possibilidade
de comprovar que o inimigo está morrendo, viaja quase cem quilômetros até
um sítio no interior do Rio de Janeiro. Encontra um velho, quase 80 anos,
aparentemente inofensivo. O filho tenta conversar, quer entender o passado; o
pai, foge. Em lugar de explicar as razões do suicídio da esposa ou os diversos
atos de crueldade que praticou contra o filho, substitui a história familiar
por dezenas de histórias sobre o futebol.
Esses momentos monotemáticos servem de
base para uma metáfora cruel sobre a vida – que o filho se mostra incapaz de compreender. O pai inicia a
algaravia com alguns comentários sobre o drible de Pelé sobre Mazurkiewicz,
goleiro do Uruguai na Copa do México, em 1970. Depois, recorda jogadores
que obtiveram algum destaque entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70. O filho não consegue perceber
onde tamanho desvario vai desaguar. São muitas histórias. Um catálogo de nomes,
lugares e situações. Lá vinham em seu socorro Canhoteiro, Ademir da Guia,
Gentil Cardoso, Neném Prancha, arrepios de outro tempo, guerreiros mortos. Era
como se o cérebro do pai houvesse reduzido o mundo às quatro linhas do campo de
futebol. Por isso não há surpresa quando, Na luz roxa do fim de tarde, à mesa
da varanda, Murilo contou que passara dez anos enfiado naquele mato escrevendo
um livro – a história de Peralvo, um craque hipoteticamente superior ao Pelé.
Ao entregar ao filho uma cópia do texto,
o pai abre a guarda: (...) é também a minha história, a sua história, Tiziu.
Falta perspicácia ao filho para descobrir o que está nas entrelinhas. Sequer imagina o que está em jogo nessa partida em
que o juiz foi "comprado" e as regras, subvertidas. Enfim, falta-lhe consciência crítica
para perceber que está sendo driblado. Outra vez. No inicio da vida adulta, aos
vinte e um anos, o filho apresentou a namorada ao pai. Duas semanas depois, Ludmila
(Lúdi) confessou que o estava traindo. E como não conseguia mais viver daquele
jeito, (...) precisava escolher um dos dois, [então ela] escolhia o pai.
Reprise suburbana do enredo de Perdas e Danos, o romance de Josephine Hart que
foi transformado em filme mediano (Damage. Dir. Louis Malle, 1993)?
Visitar o pai, aos domingos, se tornou rotina. A cada encontro, o filho recorda episódios familiares horríveis, cicatrizes perpétuas. A perplexidade colide com a falta de explicações para a fúria paterna – que surgem nas páginas finais, mas não surpreendem; ao contrário, parecem naturais. O ressentimento não esconde o seu amor pela canalhice. Seja por estratégia literária, seja por falta de fôlego do narrador, na metade do texto tudo se torna óbvio. Desobrigado de preencher as lacunas que existem na relação afetiva entre o pai e o filho, o leitor apenas observa o extermínio civilizatório: Não é sempre assim, mas às vezes, que me perdoem os amigos marxistas, fatos que parecem ter causas sociais, históricas, coletivas, são mais inteligíveis quando as reduzimos à dimensão da miséria pessoal: amor e ódio, rancor e traição.
Em diversas ocasiões a literatura, assim
como muitas partidas de futebol, resulta em frustração e desencanto. Os deuses
são cruéis. Espetáculo não acontece todo dia. Um dos fatores que contribuem
para diminuir o brilho de O Drible está na saturação da verossimilhança. O
texto não perde nenhuma oportunidade para cravar alguma citação capaz de remeter
ao passado real, ao passado que permite que o leitor se reconheça como
partícipe dos fatos narrados. Surgem em cena, como se fossem pespontos da haute couture literária e histórica, Nelson Rodrigues, Maria Lenk, Alceu do Amoroso Lima, Antônio
Maria, José Sarney, Millôr Fernandes, entre outros ilustres visitantes. Há dezenas
de referências sobre literatura, histórias em quadrinhos, cinema, seriados
televisivos. Depois de algum tempo esse recurso cansa. Ninguém consegue
conviver com o excesso. Como diz o melhor amigo do filho, sintomaticamente
apelidado de Maxwell Smart, O futebol é um grande produtor de lixo pop.
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