O filme é bom – o livro é melhor. Embora
essa afirmação não seja uma surpresa na discussão que contrasta cinema com
literatura, Flores Raras (Dir. Bruno Barreto, 2013) consegue –
qualitativamente – diminuir a distância entre texto e imagem.
Com nível de produção internacional, o longa-metragem
baseado no texto biográfico Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L.
Oliveira, e centralizado no triângulo amoroso protagonizado por Elizabeth
Bishop (1911-1979), Mary Stearns Morse (1914-2002) e Maria Carlota (Lota, Lotta) Costallat de
Macedo Soares (1910-1967), consegue romper com a proposta de entretenimento de
terceira classe que caracteriza o cinema brasileiro contemporâneo. Um dos
“achados” que contribuiu para concretizar essa proeza foi a ideia de utilizar One Art
como fio de ligação entre o início e o fim do filme – artifício narrativo que estabelece
cadência de grande beleza – e serve de espelho, em diversos momentos, para outros
poemas: Sleeping on the Ceiling, The Shampoo, Insomnia, At the Fishhouses. Outro
diferencial significativo é a utilização do idioma inglês em 90% da narrativa –
além de estabelecer o estranhamento como ferramenta de intervenção artística, prepara o filme para o mercado internacional.
ONE ART
The art of losing isn’t hard to master
so many things seem filled with the intente
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.
– Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
O principal cenário da narrativa é a fazenda
Samambaia, em Petrópolis, uma espécie de Paraíso terrestre. Nesse lugar as
mulheres usam roupas masculinas, fumam em quantidade industrial, ficam bêbadas
e praticam sexo umas com as outras. Lota (Glória Pires) é o estereotipo da
mulher que se sente bem nesse tipo de situação – com um agravante: é absolutamente
insensível para quaisquer sentimentos que não sejam os próprios. Em
contrapartida, Mary Stearns Morse (Tracy Middendorf) representa a porção “mulherzinha”,
a guardadora da santidade do lar, a responsável pela educação dos filhos. Quando
Elizabeth Bishop (Miranda Otto) entra em cena, reencenando o mito do Anjo da
Anunciação, ocorre a ruptura da tranquilidade familiar.
Diante da tragédia, Mary, a parte mais
fraca do triângulo, fica quase sem escolhas. Para não perder tudo, aceita viver à
margem de uma história de amor que poderia ser a sua. Como compensação por ter
sido excluída da cama de Lota, adota uma menina.
Selvagem paixão acomete a fêmea alfa e a
intelectual melancólica, insegura e carente. Lota de Macedo Soares explode
rochas, constrói um estúdio para a nova amante (a quem chama de “Cookie”) e
acalma Mary. Elizabeth Bishop, maravilhada por se tornar o centro das atenções, observa os
costumes brasileiros, escreve poemas e se embebeda toda vez que alguma coisa a
desagrada. Eu não estou bêbada, só estou chorando em inglês, declara poeticamente
a vencedora do Prêmio Pulitzer de 1956. Em outra oportunidade, o discurso é mais
explicito: Eu não bebo porque as coisas vão mal. Eu quero beber a cada minuto
de cada dia. As coisas indo mal são só desculpas para ficar bêbada.
Na medida em que o tempo passa, as
mudanças começam a surgir. A história de amor se transforma em pesadelo. O
incontornável desconforto se instala, junto com o abandono. As perigosas
ligações políticas entre Lota e Carlos Lacerda servem de desculpas para azedar
o relacionamento. O mal-estar se multiplica com a construção do Parque do
Flamengo (projeto em que Lota canalizou todas as suas energias) e o golpe
militar de primeiro de abril de 1964. Enquanto a brasileira se mostra
simpatizante ao novo governo, a estadunidense não compreende como é possível
aceitar passivamente a perda das liberdades individuais.
A escritora que disse que Eu tenho um compromisso
com o pessimismo, assim não fico desapontada, um dia se cansa de brincar de namoradinha e volta para Nova York. Não é a ruptura definitiva, mas é o início do
fim. Em algumas situações, a forma mais intensa do amar está em compreender que
não há mais amor.
Cinema dramático, Flores Raras celebra
– com sutileza e delicadeza – os relacionamentos tumultuados e os finais
infelizes. Na última cena, no Central Park, Elizabeth Bishop, na companhia de
seu grande amigo, o poeta Robert Lowell (Trent Williams), percebe que the art of losing’s not too hard to master / though it may look like (...)
like disaster (a arte de perder não chega a ser mistério / por mais que pareça
[...] um desastre).
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