Capa original inglesa e reproduzida na edição brasileira |
Em 2003, aos vinte e poucos anos, sempre
acompanhado de dois pit bulls (Joe e Jeff), era o típico brutamontes – o corpo
semelhante a uma laje, a cara feito um bloco inteiriço, a coroa da cabeça com o
cabelo raspado bem curto e restolhos de uns pelinhos castanhos. Passou parte
substancial de sua vida na cadeia, delitos “menores”: receptação de mercadoria
roubada, extorsão com ameaça, tumulto e agressão, danos materiais. Cinco meses em
uma ocasião, três meses por outra, infrações e crimes suficientes para engordar
a ficha corrida na polícia de qualquer indivíduo. De qualquer forma, em raro
momento de consciência crítica, depois de dezenas de atos violentos, ele diz
para seu sobrinho Desmond (Des, Desi) Pepperdine: Sabe, Des, às vezes eu tenho
medo de mim mesmo. De mim mesmo.
Ele e o sobrinho moram em Diston Town (fictício distrito suburbano de Londres) – local onde a catástrofe fazia suas visitas com a regularidade de um carteiro. A região abriga parte da escória social inglesa: desempregados, alcoólatras, traficantes, consumidores de drogas, pervertidos sexuais, ladrões, assassinos. Enfim, a população local pode ser resumida em (...) alunas de ensino fundamental grávidas, (...) jovens desdentados, (...) cadeirantes de vinte anos, (...) artríticos de trinta anos, (...) encarquilhados de quarenta, (...) dementes de cinquenta e (...) inexistentes de sessenta anos. Morando em Diston, ninguém sobrevive aos sessenta.
A matriarca da família Peperdine, Grace,
começou cedo. Aos 12 anos teve o primeiro dos sete filhos. Apenas Cilla
(primogênita, que também engravidou de Desmond aos 12 anos) e Lionel (o caçula)
são filhos do mesmo homem. O nome dos outros, todos de pai diferente, presta uma homenagem divertida ao grupo
musical The Beatles (John, Paul, George, Ringo, Stuart – nessa ordem de
nascimento).
Martin Amis, autor de Campos de Londres, Grana, A Informação, A Viúva Grávida, Casa de Encontros, entre outros. |
Na medida do possível, Desmond procura
manter-se afastado dos “negócios” do tio – cobrança de dívidas, pequenos
roubos, contrabando. Inteligente, obtêm várias bolsas de estudo – oportunidades raras
para a maioria de seus vizinhos. Em um momento de desatenção com as regras de
sobrevivência, o rapaz não encontra forças para impedir um incidente bastante
desagradável. Envolve-se sexualmente com Grace, a avó. Ele tem 15 anos; ela,
39. O caso não dura muito tempo. Ela o troca por outro menino, ainda mais moço
– Rory Nightingale, 14 anos. O que se segue é pavoroso. O Complexo de Édipo
dando as cartas em um jogo perverso. Lionel e Desmond ficam marcados pelo
horror – até o último dia de suas existências.
Duas gerações de escritores: Martin e seu pai, Kingsley Amis |
Embora decida residir em um hotel (depois de ser expulso, tempestuosamente, de muitos outros), Lionel fez questão de manter o seu quarto no apartamento de Avalon Tower – mesmo não ajudando no pagamento do aluguel. Há vários motivos para esse disparate – que somente deixa de existir em 2013. O principal é relativamente simples: oprimir o sobrinho – que lá está morando com a esposa, Dawn Sheringham. Como deixa escapar, nas várias vezes em que conversa com Desmond, o passado custa caro. Além disso, há outro fator: Lionel se alimenta do medo de suas vítimas.
Lionel, apesar de se comportar de forma
tosca, domina com relativa competência alguns elementos da psicologia social.
Sabe manter a tensão no limite, induzindo a possibilidade de salvação, mas
evitando a possibilidade de libertar a vítima. No momento adequado, um instante
antes do colapso geral, introduz em cena um novo elemento. Imediatamente, como
compete a quem tem “bom coração”, faz um novo acordo – suavizando
momentaneamente a crise. Quem está
envolvido nessa situação, imaginando ter sido salvo, não percebe que, mais uma vez, foi
induzido à escravidão.
Quando compra uma mansão, decide chamá-la de Wormwood Scrubs, o mesmo nome da prisão onde esteve preso diversas vezes. Isso não é nenhuma surpresa, pois A prisão não é um lugar tão ruim assim, disse muitas vezes. Na prisão, a gente sabe onde está pisando.
Fábula sobre a maldade e sobre pessoas
por quem a gente não podia deixar de ter sentimentos, como sintetiza Dawn, o
romance de Martin Amis provoca interessante discussão sobre a possibilidade de
algum dinheiro modificar o comportamento dos indivíduos. O horror descrito nas
últimas páginas não responde a questão, mas possibilita formular hipóteses
plausíveis. De uma forma ou de outra, a infelicidade não é consequência de uma
maldição divina – é o estado constante de perversidade que caracteriza o humano.
P.S.: Como se fosse um tributo fraterno, Lionel Asbo é dedicado a Christopher Hitchens (1949-2011).
P.S.: Como se fosse um tributo fraterno, Lionel Asbo é dedicado a Christopher Hitchens (1949-2011).
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