O núcleo da tragicomédia O Misantropo
(Le Misanthrope), escrita em 1666 pelo mais importante dramaturgo francês, Molière
(nascido Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673), aborda o horror produzido por
pequenas vilanias, pela mesquinhez e pela vaidade excessiva.
O filme Pedalando com Molière
(Alceste à Bicyclette. Dir. Philippe Le Guay, 2013), penetra no interior dessas
trevas. Mais do que um exercício de metalinguagem (uma história teatral contada
pela ótica do cinema), mostra a tumultuada luta de egos entre dois atores, Serge
Tanneur (Fabrice Luchini) e Gauthier Valonce (Lambert Wilson).
Serge se aposentou do teatro e do cinema,
pois não acredita mais no ofício artístico: não há amizade, nem fidelidade,
nem lealdade. Depois de uma crise de depressão, mudou-se para Île de Ré (ilha costeira francesa, situada no Oceano Atlântico, frente a La Rochelle, no Departamento de Charente-Maritime).
Escolheu viver sozinho, sem amigos, em uma casa que está em péssimas condições.
Quer manter o mínimo contato com o resto do mundo.
Gauthier, estrela do seriado televisivo Docteur Morange, está em crise artística. Não satisfeito em ser popular, quer
agregar qualidade intelectual à sua vida profissional. Ambiciona montar O
Misantropo.
Gauthier vai visitar Serge e faz o
convite. Recebe um sonoro não como resposta. Ou melhor, aceita uma proposta
insólita: ensaiar a peça durante cinco dias. Depois, se tudo correr bem, talvez
Serge aceite participar do projeto.
O narcisismo dos atores – que
desconhecem tudo o que não se refere ao próprio umbigo – se pronuncia no momento
da escolha dos personagens. Gauthier quer interpretar Alceste. Serge recusa
Philinte. Depois de alguma discussão, o consenso surge quando concordam alterar
os papeis – embora seja visível que Serge, ao contrário de Gauthier, conhece o
texto com grande profundidade.
Gauthier, vaidoso, gosta de interagir
com outros seres humanos. Hospedado no Hotel Le Clocher, conhece a sobrinha da concierge: uma atriz iniciante no cinema pornô. Esse momento serve de contraponto
entre a amoralidade da modernidade e as regras morais do passado – espelhadas
por O Misantropo.
Em determinado momento, o ensaio precisa
ser interrompido. Serge, que tem mais de 50 anos, quer fazer uma vasectomia. Diz
que não quer se arriscar a ter outros descendentes. Ou seja, considera o único
filho um ingrato, pois não fala com ele a mais de dez anos. Como decide ir de
ônibus, acaba encontrando Francesca (Maya Sansa), que lhe oferece uma carona.
Aceita o convite, as desculpas (ela tinha sido grosseira com os dois atores) e
estabelece um fiapo de relacionamento com a bela italiana. No hospital, como
uma criança que olha a vitrine de uma loja de doces, desiste da operação.
Nos intervalos do ensaio, Francesca torna-se
uma companhia frequente. Embora ela esteja se mudando para a Itália, quer
repartir seus últimos momentos com os dois atores. Serge, de uma maneira ou de
outra, começa a alimentar algum tipo de esperança – que é desfeito no momento
que Gauthier lhe confessa ter ultrapassado uma das barreiras fundamentais da
confiança entre dois homens que pretendem dividir o palco.
O título do filme está relacionado com
dois momentos emblemáticos. O primeiro, quando os dois atores repassam o texto
em um passeio de bicicleta. O segundo é mais decisivo. Gauthier está em uma
festa para promover a peça. Serge, vestido de Alceste, vai até lá de bicicleta.
Informa que não aceita alternar os papeis, quer ser – sempre! – Alceste. Isso
gera uma grande confusão e os dois atores trocam murros. Depois de separados,
Serge – ou melhor, Alceste –, sem perceber que está confundindo a situação
teatral com a situação “real” (que é também ficcional), discursa: Os tempos em
que vivemos são tão perversos que devo me afastar da companhia dos homens. A
dor é grande demais para suportar. Retiremo-nos desta selva, deste lugar cruel,
já que vocês, homens, vivem como lobos. Traidores, vocês não me verão entre
vocês um só dia.
As cenas finais espelham a ironia com que
a vida celebra a arrogância humana. Serge, um Alceste extemporâneo, mais uma vez
sozinho, vai até a praia e recita um trecho de O Misantropo. Gauthier, de
volta a Paris, consegue montar o espetáculo. Na noite de estreia, sala lotada. Em
uma das cenas mais intensas da peça, esquece o texto!
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