Henry James, em Horas Italianas,
escreveu que Veneza de todas as cidades do mundo é a mais fácil de visitar sem
ir lá. Esse pensamento supõe que a imagem mental supera a experiência
concreta. Evidentemente, não é o caso do escritor, que se hospedou na cidade – em diversas
oportunidades – e a usou como objeto literário (em relatos autobiográficos e
ficcionais). Provavelmente a mais importante demonstração do amor que Henry James dedicou
à Veneza seja a novela Os Papéis de Aspern (The Aspern Papers), publicada
originalmente em 1888, e que, salvo engano, possui duas traduções brasileiras:
1984 (Maria Luiza Penna. Global Editora) e 2015 (Chico Lopes. Editora Penalux).
Os Papéis de Aspern combina duas grandes
questões literárias: o anjo da anunciação e o mito faustiano. No primeiro caso,
uma situação familiar aparentemente equilibrada sofre grandes mudanças quando em
contato com um estranho. O segundo tema se refere à discussão sobre quais são os
limites éticos de um indivíduo diante do objeto do desejo. Em ambas as circunstâncias
não há salvação para todos os envolvidos.
O editor (que também é o narrador do
texto) procura, durante os três primeiros meses, descobrir o paradeiro do
tesouro bibliográfico. As poucas informações que consegue obter não o levam a
alguma conclusão positiva. Simultaneamente, utilizando-se de charme, galanteria
e maços de flores consegue atrair o afeto (e algo mais) da Senhorita Tina – que
tem cerca de 50 anos. Embora inicialmente não vise esse propósito, o editor
acaba se beneficiando da rede de sedução que arma em torno de uma mulher
carente.
Em determinado momento, a Senhora Bordereau resolve mudar as regras do jogo. O que antes era contenção se transforma em algo mais palpável – revelando que ela (uma idosa quase inválida) possui maior domínio da situação do que o editor. Sem acusar, textualmente, ter a posse dos documentos, sugere que eles podem ser obtidos se o comprador estiver disposto a pagar um valor estratosférico. Para aumentar a cobiça do editor, mostra-lhe uma parte do espólio: um pequeno retrato oval de Jeffrey Aspern, e que foi pintado pelo pai da Senhora Bordereau. Em seguida, pronuncia o preço. O editor não possui tamanha quantia.
As cenas mais significativas da novela ocorrem nos capítulos 8 e 9. Mas, antes de chegar até lá, o leitor precisa ter paciência para atravessar um mar de frases que parecem não ter fim. São centenas de vírgulas, pontos-e-vírgulas, travessões, apostos, digressões, informações adicionais. Apesar da sensação de que “quase nada acontece” por páginas e mais páginas, em cada parágrafo do texto há um turbilhão de filigranas que somente o leitor atento consegue perceber.
A perspectiva de obter os documentos a qualquer preço faz com que o editor rompa com os limites da boa conduta. Essa quebra da ordem produz a gênese da catástrofe e, de certa forma, a morte de Juliana Bordereau. A inutilidade de todo o esforço do editor se torna óbvia. No entanto, a ganância ganha uma sobrevida: a Senhorita Tina faz uma contraproposta para o editor, no momento em que ele anuncia que vai embora.
Um estranho espasmo brotou em seu rosto quando ela me viu pegar meu chapéu. – Imediatamente – você quer dizer hoje? – O tom das palavras era trágico – era um protesto de desolação.
– Oh, não; não enquanto eu possa ser de grande utilidade para você.
– Bem, só mais um ou dois dias – dois ou três – ela arfou. Depois, controlando-se, acrescentou de outro modo: – Ela quis me dizer uma coisa – no último dia – uma coisa muito particular. Mas não conseguiu.
– Uma coisa muito particular?
– Uma coisa a mais sobre os papeis.
– E você supõe – você tem alguma ideia?
– Não, eu tentei pensar – mas não sei. Pensei toda espécie de coisa.
– Por exemplo?
– Bem, se você fosse um parente, tudo seria diferente.
Fiquei pensando. – Se eu fosse um parente...
– Se não fosse um desconhecido. Então, seria o mesmo para mim e para você. Tudo que é meu seria seu, e você poderia fazer o que quisesse. Eu não seria capaz de impedi-lo – e você não teria responsabilidade alguma.
Tudo tem preço. Resta saber se há comprador. E, em caso afirmativo, se ele dispõe de cacife para sustentar a aposta. Muitas vezes, são das águas tranquilas que surgem as surpresas. O que parece sensatez se revela obtusidade e o que poderia ser bobagem se transforma em deslumbramento. A vida (ficcional ou não) nunca corresponde ao que é projetado como objetivo. E, por maior ou menor que seja o encantamento, em algum momento impreciso o arrependimento (instantâneo ou tardio) se instala – como se fosse o dono da casa.
(...) O quarto parecia girar em torno de mim quando ela disse isso, e uma escuridão real por um momento baixou sobre meus olhos. Quando a sensação passou, Miss Tina estava ali imóvel, mas a transfiguração havia acabado, e ela havia se transformado novamente numa pessoa simples, apagada, idosa. Foi nessa caracterização que ela disse o seguinte: – Não posso ficar com você, não posso! – E foi nessa caracterização que deu as costas para mim, como eu dera as costas para ela e caminhando para a porta de seu quarto. Aí ela fez o que eu não fizera quando a abandonara – uma pausa longa o suficiente para me lançar um olhar. Eu nunca o esqueci e, às vezes, sofro ao lembrá-lo, embora ele não fosse ressentido. Não, não havia ressentimento, nada de áspero ou vingativo na pobre Miss Tina, pois quando, mais tarde, enviei a ela, como paga pelo retrato de Jeffrey Aspern, uma quantia de dinheiro maior que a que eu esperava obter, escrevendo-lhe que o vendera, ela as recebeu com gratidão; ela nunca a restituiu. Escrevi a ela que vendera o retrato, mas, naquela época mesma, confessei a Mrs. Prest – encontrei esta outra amiga em Londres, naquele outono – que ele está pendurado no alto de minha mesa de escrever. Quando o olho, mal posso suportar minha perda – quero dizer, a perda dos preciosos papéis.
A riqueza descritiva dessa cena
contrasta com a ambiguidade da última frase. Tudo o que parecia um manancial de certezas
se dissolve no mistério – e convida à releitura.
Entre os personagens de Os Papéis de
Aspern, Veneza talvez seja um dos mais importantes. A geografia da cidade vai
sendo revelada em cada página do livro. Por exemplo, o editor passeia de gôndola
por lugares emblemáticos com o Lido, o Malamocco, o Grande Canal, a Piazza San Marco.
Todas essas cenas são descritas com precisão e ternura – como compete a um bom
ficcionista.
Segundo Henry James, a ideia de escrever Os Papéis de Aspern surgiu de uma conversa que ele ouviu em Florença. Era
algo sobre uma senhora (80 anos), que morava com a sobrinha (50 anos). Supostamente
ela possuía algumas cartas trocadas entre Byron e Shelley – fato que despertou
a cobiça de um aventureiro. Tomando esse tema como mote, Henry James transferiu
as ações para Veneza, expandiu o enredo e acrescentou diversas camadas
narrativas e psicológicas.
Henry James, Jr. (1843-1916) |
P.S.) A edição da Penalux é artigo fino:
capa dura, diagramação competente, boas ilustrações. Mas, há um pequeno senão.
O tradutor, Chico Lopes, optou por manter no original os pronomes de tratamento
das personagens femininas. Independente das razões que o fizeram tomar essa
decisão, possivelmente mais coerente seria optar por Senhora Bordereau (em lugar de Miss
Bordereau), Senhorita Tina (em lugar de Miss Tina) e Senhora Prest (em lugar de
Mrs. Prest).
Belos trechos,balsámo pra'lma a boa leitura!
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