Jeanne Lalochère, que reside no
interior, está com um namorado novo. Para poder usufruir (de maneira tranquila,
lenta e deliciosa) todas aquelas coisas que um casal costuma fazer quando está
dividindo a cama, ela precisa (no bom sentido) se livrar da filha, que deve ter
uns 12 ou 13 anos. Coisa pouca, uns dois dias. Seu irmão, Gabriel, que vive
na capital dos franceses, foi o contemplado. Melhor do que isso, só o primeiro
prêmio da loteria. Só que não. Zazie, apesar da pouca idade, adora infernizar a
vida dos outros. Ninguém merece o seu respeito. Ou melhor, todos recebem, sem o
menor constrangimento, o seu desrespeito. Com uma personalidade malévola e
agressiva, não é surpresa que um personagem a defina assim: Você faria duas
montanhas saírem no tapa. Zazie fala palavrões com naturalidade e faz
perguntas embaraçosas. Ou seja, ela é uma selvagem – que só aceitou ficar sob a
guarda do tio porque queria passear no metrô.
Infelizmente, o metrô de Paris está em greve. E
a cidade está à beira do colapso. É nesse cenário quase apocalíptico (por
diversos motivos) que Raymond Queneau ambienta Zazie no Metrô, um clássico da
literatura de humor (e de seriedade). Costurando várias aventuras simultâneas,
induzindo contar uma história e, de repente, revelar outra – mas que é
contínua à primeira –, o narrador do romance (onisciente, terceira pessoa) mostra
que a literatura consiste, basicamente, em acumular truques de mágica, em
iludir o leitor.
Gabriel precisa entreter a sobrinha.
Tarefa impossível. Mesmo assim a leva para conhecer os principais pontos
turísticos de Paris. Além de o ilustre parisiense ter dificuldades para
identificar os locais em que se encontra (parece desconhecer a cidade), a cada
instante ocorre um incidente. A menina é uma encrenqueira profissional. Dessas
que adoram mostrar desprezo pelos atos civilizatórios.
Enquanto Zazie se aborrece (ou se diverte, é difícil distinguir os seus sentimentos) passeando pelas
ruas da cidade, o narrador, esbanjando hectolitros de bom-humor e quilômetros
de ironia, nos apresenta parte da fauna local, que abrange desde aqueles que
não tomam banho até uma multidão ávida por camomila e pâté de campagne, caramelos e sêmen-contra, gruyère e ventosas. De contrapeso, aparecem em cena diversos
personagens que estão à margem da vida social burguesa: turistas em excursão,
policiais, um motorista de taxi, um dono de bar, um sapateiro, uma viúva e um
tarado (que usa vários disfarces, inclusive o de inspetor de polícia). Para
completar a festa, há um papagaio (Laverdure), que repete interminavelmente a
frase: Falar, falar, você só sabe fazer isso.
Gabriel é um homem alto, musculoso, casado com Marceline. Ele carrega no bolso um lenço impregnado
de perfume (Barbouze, da Fior) e, sempre que pode, bebe incontáveis doses de granadina (licor, não alcoólico, de tons vermelhos, feito com groselha ou sementes de romã).
Para ganhar a vida, o sujeito montou um espetáculo de dança. Por alguma razão bizarra,
ver um homem desajeitado em trajes de “drag queen” (Gabriella) diverte os
frequentadores da boate gay Mont-de-Piété.
Se Zazie não fosse sua sobrinha, Gabriel
provavelmente distribuiria um par de chineladas na bunda da menina, ou a
abandonaria em algum lugar distante ou, na melhor das hipóteses, a jogaria nas
águas do Sena, batismo pedagógico e necessário para acalmar a pestinha. Em ritmo enfant terrible, ela não fornece o mínimo sossego para o artista do teatro de variedades. Zazie adora incomodá-lo com questões desconcertantes, principalmente
sobre suas (dele) preferências sexuais. Você é ou não é hormossecsual? Não
importa quantas vezes o tio responda que não é homossexual, a menina repete a
pergunta com frequência. Quer desestabilizá-lo. É o seu prazer mais perverso. Ela
pouco se importa com os sentimentos do tio. Ela quer incomodar.
O ápice da narrativa ocorre quando
Gabriel, inicialmente vítima de rapturistas, leva o ônibus da turba (dirigido
por Fiódor Balanovitch) para ver o seu show (ao mesmo tempo, o valoroso varão
aproveita a oportunidade e a ingenuidade dos estrangeiros para ganhar alguns
trocados). Após o trambique, lá pelas quatro ou seis da madrugada, Gabriel e
seus amigos (avec Zazie) vão a um restaurante: querem encerrar a noitada com um prato de sopa de cebola. No caminho, após desmascararem
o farsante tarado, a turma é interceptada por dois policiclistas, que
denunciam, aos berros, a briga instaurada: – Arruaça noturna (...), algazarra
lunar, baderna sonívora, rega-bofe estrondoso.
Dentro do restaurante, outro combate,
garçons e clientes desfalecidos após socos e sopapos, confusão generalizada e
uma nova investida do farsante tarado que recruta outras forças policiais para
praticar a justa injustiça. Como em um daqueles filmes de faroeste, a cavalaria
aparece no último momento e salva os sitiados, inclusive todas as penas do
papagaio, mostrando uma saída que não estava no cardápio. Allons enfants de la Patrie / Le jour de gloire est arrivé.
Depois de mil peripécias, a narrativa
revela desfecho exemplar:
O hoteleiro chamou um taxi, e seis e meia ela estava na estação. Obliterou o bilhete e desceu para a plataforma. Pouco depois, vinha Zazie, acompanhada por um sujeito que levava a malocha dela.
– Olha só! – disse Jeanne Lalochère. – Marcel.
– Como você pode notar.
– Mas ela está dormindo em pé!
– Eles aprontaram. Desculpe. E eu também peço desculpas, pois vou nessa.
– Entendo. Mas e o Gabriel?
– Não tá muito bem. Tô indo. Témais, menina.
– Tchau – disse Zazie, muito ausente.
Jeanne Lalochère a fez subir na cabine.
– E então, você se divertiu bastante?
– Médio.
– Viu o metrô?
– Não.
– Então, quê que você fez?
– Envelheci.
Zazie no Metrô, embora seja uma
narrativa linear, dessas com começo, meio e fim (nessa ordem), está repleta de
experimentos linguísticos, verdadeiro parque de diversões para quem gosta de trocadilhos, frases
de duplo ou triplo sentido, rupturas da sintaxe, uso (ir)regular de figuras de
linguagem, referências de metalinguagem, multiplicação dos efeitos homográficos
e homófonos, gírias, expressões em várias línguas (inglês, latim, alemão), palavras-valises,
expressões grafadas de acordo com a dicção sonora (simulando o falar popular). Simultaneamente,
o texto foi construído para mostrar a extensão do nonsense e dos efeitos cômicos. Por exemplo, ao descrever
a localização das bolas em uma partida de carambola, o narrador utiliza a
notação do jogo de xadrez. Em outro momento, para embaralhar todas as fichas e
instaurar a confusão total, Marceline se transforma em Marcel – reflexo gemelar
da dicotomia Gabriel/Gabriella. Nada é o que parece ser. E isso garante a
diversão.
P.S. 1: Há duas traduções brasileiras de Zazie no Metrô. A primeira, publicada pela Rocco, data de 1985 e foi feita por Irène
Monique Harlec Cubic. A segunda, da Cosac Naify, foi realizada em 2009 por
Paulo Werneck.
P.S.2: Há uma versão para o cinema: Zazie dans le Métro (Dir. Louis Malle, 1960).
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