Os gatos – provavelmente – são os
animais domésticos mais fáceis de serem antropomorfizados pela ficção. Neles encontramos
(imaginamos) todas as características (qualidades e defeitos) que consideramos
como atributos humanos: coragem, determinação, egoísmo, rebeldia, maluquice,
fofura, altivez, preguiça, sensualidade, ausência de escrúpulos,... A lista se
estende por centenas de substantivos e adjetivos. Gatos e indivíduos – de certa forma –
são semelhantes. Também são muito diferentes. Talvez a principal distinção esteja na forma com que um vê o outro. Enquanto os humanos escolhem os
felinos como animais de estimação, os gatos aceitam os humanos como escravos
(que devem protegê-los, amá-los e alimentá-los – não necessariamente nessa
ordem).
Há cerca de 250 raças de gatos
domésticos (Felis silvestris catus)
e, dependendo de alguns fatores (alimentação, habitação, cuidados veterinários,
etc.), vivem entre quinze e vinte anos. No imaginário contemporâneo, onde
há espaço para representações sentimentais das melhores e das piores idiossincrasias humanas (maldade, esperteza, preguiça, lealdade, carinho,
etc.), os gatos aparecem como personagens emblemáticos das revistas em
quadrinhos, dos desenhos animados e dos contos de fadas: Thomas (Tom &
Jerry), Frajola, Garfield, Gato Felix, Gato de
Botas, Manda-Chuva (e sua turma: Batatinha, Xuxu, Bacana, Espeto e Gênio), entre outros.
Conta a lenda que, quando os seres
humanos resolveram se fixar na terra e viver da agricultura, a produção e o
armazenamento de cereais (grãos) atraiu várias espécies de roedores. Nesse
momento, os gatos domésticos, que são exímios caçadores, se tornaram
imprescindíveis. No Egito antigo recebiam atenção e devoção – eram considerados
como representantes dos deuses na Terra. Também recebiam esse tratamento na
Pérsia. Na Europa ajudaram no combate à peste negra. No início da Idade Média, quando
a superstição se mostrou mais forte do que a razão, houve uma reversão
comportamental: os gatos foram acusados de serem portadores de maus espíritos.
Muitas vezes, na companhia de pessoas acusadas de bruxaria, foram queimados em
praça pública. Surpreendentemente, essa herança irracional se projeta na
atualidade: há quem considere que os gatos (principalmente os pretos) estão
ligados ao azar ou à má sorte. Pura superstição – cabe dizer. Em todo caso, não
se pode desprezar que os hispânicos costumam dizer que Yo no creo em brujas,
pero que las hay, las hay.
Doris Lessing (1919-2013), ganhadora do
Prêmio Nobel de Literatura 2007, autora de vários romances de incontestável
qualidade, era apaixonada pelos gatos domésticos. Filha de um oficial
britânico, que foi transferido muitas vezes, precisou morar em diversos
lugares do mundo. Nasceu na Pérsia (atual Irã) e residiu (na infância e
adolescência) na Rodésia do Sul (atual Zimbábue). Mais tarde, adotou a Inglaterra
como lar. Em todos esses lugares, que são muito diferentes entre si, os felinos
foram companheiros de praticamente todos os momentos. Os três textos que
integram o livro Sobre Gatos, com tradução de Julia Romeu, relatam, em tom
memorialista, sem se ater à ordem cronológica, a história de alguns dos animais
que deram cor à sua (dela) vida.
Há relatos de todo tipo. Desde a
necessidade de “se livrar” de uma ninhada (doações, extermínio) até depoimentos
de amor explicito por animais que ultrapassam as barreiras zoológicas e se
tornaram, digamos, integrantes da família. No entanto, por mais que isso pareça importante, não há como ignorar que Na
infância, as pessoas, os animais, os eventos surgem, são acolhidos e
desaparecem, sem que nenhuma explicação seja oferecida ou requisitada. Ter um
animal de estimação implica em perda, em recordações, em cicatrizes, em luto.
Depois de certa idade – e, para alguns de nós, isso pode ocorrer muito cedo – não existem novas pessoas, animais, sonhos, rostos, acontecimentos: tudo já aconteceu antes, já apareceu antes, com outra máscara, outras roupas, outra nacionalidade, outra cor; mas é igual, igual, tudo é eco e repetição; e não há nem dor que não seja uma recorrência de algo há muito esquecido que se expressa numa angústia inacreditável, em dias de lágrimas, solidão, consciência da traição; e tudo por um gato pequeno, magro e moribundo.
A aspereza das palavras de Doris Lessing
remete a um caso emblemático, ocorrido na infância. Doente, a menina foi
alojada nos fundos da casa. A gata, uma persa cinza-azulada, costumava dormir
com ela. Como o encanamento na fazenda era precário, um dia a gata caiu em uma
bacia de água quente, que estava no quarto. O dano foi grande. O corpo queimado
resistiu – durante algum tempo. Ficou nos meus braços por uma semana,
ronronando, ronronando, numa vozinha rouca e trêmula que foi se tornando cada
vez mais fraca, até silenciar; lambeu minha mão; abriu os enormes olhos verdes
quando a chamei e lhe implorei que vivesse; fechou os olhos e morreu.
Não surpreende que o parágrafo seguinte
expresse uma promessa:
Pronto. Nunca mais. E durante anos fiquei comparando gatos em casas de amigos, gatos em lojas, gatos em fazendas, gatos na rua, gatos em muros, gatos na memória como aquela criaturinha doce e cinza-azulada que ronronava e que para mim era o gato, o Gato, impossível um dia de ser substituído.
Levou 25 anos para que essa promessa
fosse quebrada. Em Londres ocorreram várias mudanças. Os gatos passaram a ser sinônimo de alegrias
e boas lembranças. E, claro, de algumas dificuldades. Caixas de areia, períodos
de cio, disputas por territorialidade, instinto predador, doenças, morte – a
vida urbana também se apresenta complicada para os felinos.
São muitos momentos afetivos. São muitos
momentos aflitivos. São situações engraçadas, trágicas, insólitas e humanas. Impossível, por exemplo, ignorar as
epopeias de Rufus e “El Magnífico” (também chamado de Butch, Butchkin,
General Pinknose, o terceiro). Eles foram, provavelmente, os dois gatos mais
amados de Doris Lessing. De maneira particular, cada um deles foi um espécie de filho – muitas vezes malcriado, mas filho!
Rufus morava por perto. Onde? Ninguém
nunca soube. Talvez fosse um sem-teto. Foi no verão de 1984. Primeiro, uma tigela de
água – ele bebeu tudo e pediu mais. Depois, deram a ele algum alimento. Era um
gato laranja (uma cor maravilhosa, cor de fogo, como uma raposa). Estava
malcuidado, o pelo sujo, o corpo repleto de cicatrizes. Aos poucos, como se
estivesse sido convidado, ele foi se aproximando. Brincávamos dizendo que era
o nosso gato externo. Outros dois gatos habitavam a casa.
O calor acabou e começou a chover. O gato laranja ficou na varanda, debaixo da chuva, com o pelo escurecido pela água que caía, olhando para mim. Abri a porta da cozinha e ele entrou. Eu disse para ele que podia usar aquela cadeira; aquela era a sua cadeira e ele não podia pedir mais. O gato subiu na cadeira, se deitou e me olhou fixamente. Tinha o ar de alguém que precisa aproveitar ao máximo o que o Destino lhe oferece antes que a oferta seja retirada.
Rufus estava doente. A luta pela
sobrevivência havia sido dolorosa. Nós o escovamos. Limpamos seu pelo. Demos
um nome a ele. E o levamos ao veterinário, reconhecendo, dessa forma, que
tínhamos um terceiro gato. O que se seguiu foi a invasão – lenta, gradual,
amorosa (apesar da oposição dos outros dois gatos). Impossível resistir ao
charme de um animal que conhece os mecanismos da sedução. Apesar de seus últimos
dias revelarem um retrato da decadência, Rufus foi um guerreiro.
Com “El Magnífico” foi tudo bem
diferente, porque todas as histórias são singulares – mesmo quando parecem
iguais.
Ele gosta quando relaxamos juntos. Mas não é uma coisa fácil de fazer. Não adianta me sentar perto dele quando estou com pressa, ou pensando no que deveria estar fazendo na casa ou no jardim, ou no que deveria estar escrevendo. Há muito tempo, quando ele era filhote, aprendi que esse gato exigia a total atenção de alguém, pois sabia quando minha mente estava dispersa, e não adiantava fazer carinho nele mecanicamente, pensando em outra coisa, e muito menos lendo um livro. No segundo em que eu não estava mais presente, com foco absoluto nele, Butchkin se afastava. Quando me sento para estar com ele, isso significa que preciso desacelerar, me livrar da angústia e da urgência. Quando faço isso – e ele tem que estar no humor certo também, sem sentir dor, sem estar inquieto –, Butchkin sutilmente me mostra que compreende que estou tentando me aproximar dele, do gato, da essência do gato, encontrando o que há de melhor nele. Humana e gato, tentamos transcender aquilo que nos separa.
Sobre Gatos é uma elegia, um poema em
prosa, o comprovar do quanto é exata a definição de Leonardo da Vinci: o menor
dos felinos é uma obra de arte.
P.S. 1) Em Os Possessos – aventuras com
os livros russos e seus leitores, de Elif Batuman, há uma revelação estranha.
Sófia [Sônia] Andréieva, esposa de Liev Nikoláievich Tolstói, era ailurofóbica (não gostava de gatos).
O controle dos roedores na propriedade da família, Iásnaia Poliana, era
realizado por... acredite se quiser, cobras.
P.S.2) Para aqueles que se interessam pelo abordagem ficcional do tema, há boa diversão em Os Melhores Contos de Cães e Gatos (Org. Flávio Moreira da Costa. Ediouro), Sete Vidas: sete contos mínimos de gatos (Heloisa Seixas. Cosac & Naify), Os Gatos (Patricia Highsmith. L&PM), Entre Arranhões e Lambidas: haicais & gatos (Alvaro Posselt. Blanche), Um Gato Indiscreto e outros contos (Saki. Hedra), Eu Sou um Gato (Natsume Soseki. Estação Liberdade), A Gata, Um Homem e Duas Mulheres (Jun'ichiro Tanizaki. Estação Liberdade), Relatos de um Gato Viajante (Hiro Arikawa. Alfaguara), entre outros.
P.S.3) Uma revisão mais acurada tornaria Sobre Gatos um livro melhor.
P.S.3) Uma revisão mais acurada tornaria Sobre Gatos um livro melhor.
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