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quinta-feira, 26 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (IV)


Essa história de ficar em casa, sem ter o que fazer... mente vazia, oficina do diabo, como dizia minha avó. Se o sujeito não se cuidar, no primeiro instante está puxando angústia (como aqueles rapazes do romance O Encontro Marcado, do Fernando Sabino) ou recuperando lembranças do passado. Esta semana fui vítima do segundo caso.

Estou participando de um grupo de whatsup com pessoas que estudaram comigo no segundo grau. A ideia geral é fazer uma reunião festiva – daqui a alguns meses – para reencontrar os dinossauros, digo, os sobreviventes. Estamos todos na faixa dos 60 anos e não será surpresa se alguns já estiverem usando bengala, tomando mil remédios (pressão, diabetes, próstata, doenças cardíacas) e oferecendo aos netos o carinho que recusaram aos filhos.

Não sei se quero ir a esse evento. Aliás, como quase sempre, nunca sei se algo é bom ou ruim. E isso também vale para a decisão de participar no grupo de whatsup.




Tenho lembranças nebulosas daqueles tempos. Minha família estava fragmentada e o dinheiro que a minha mãe conseguia ganhar só servia para pagar o aluguel e a comida. Além disso, para ajudar na confusão, estive várias vezes próximo de perder a microbolsa de estudos que recebia do colégio. Um dos episódios mais significativos, e que me causou muitos aborrecimentos, foi a decisão de não frequentar as aulas de educação física. O professor, adepto entusiasmado do atletismo, exigia que os alunos fizessem corridas de vários quilômetros, subindo e descendo morros íngremes, incentivava arremessos e saltos diversos, queria formar campeões. Era o horror – principalmente para quem queria ficar sozinho, ou, no máximo, na companhia dos livros. Resumindo: naquelas aulas, onde predominava o vigor solar, não havia lugar para alguém que vivia no mundo da lua.

Colégio técnico: as aulas regulares ocorriam pela manhã e o ensino profissionalizante era ministrado no período da tarde. Poucas escolhas estavam ao alcance dos alunos: mecânica de automóveis, eletricidade e tornearia mecânica. Para ser sincero, uma pior do que a outra. Detesto automóveis e morro de medo de eletricidade (até trocar lâmpada me deixa em pânico). Não restou alternativa.




Aborrecimento era o mínimo que aquelas aulas me causavam. Uma das tarefas (que deve ter sido elaborada por algum aprendiz de Torquemada) consistia em limar um bloco de metal. O aluno precisava deixá-lo absolutamente retilíneo, não podia passar uma mísera fresta de luz. Esporadicamente, o professor, munido de um instrumento de tortura medieval chamado paquímetro, fazia a aferição. Meu bloco nunca estava de acordo com o esperado. E lá ia a vítima para mais algumas horas de esforço físico, mais um calo na mão e nota baixa.

Outro episódio surreal daquela época: eu fui professor de História da minha própria turma! Em diversos momentos, por problemas particulares, o titular da cadeira precisou se ausentar. Como ele já tinha sido meu professor em outra escola e sabia que eu tinha algum conhecimento sobre o conteúdo, me pediu para substituí-lo. Empolgado, sem pensar nas consequências, aceitei a tarefa. Foi divertido. De qualquer maneira, nunca procurei saber se a direção do colégio tomou conhecimento dessa infração.




Entre os professores, várias figurinhas carimbadas. Em especial, a professora de biologia. Maria Helena, vulgo Samambaia, tratava os alunos como se fossem escravos de galés. Mal aparecia na esquina do corredor e já estava ditando matéria. Era Mefistófeles personificado em alguém que recusava ser simpática. Lembro-me de um raro momento em que perdeu a linha. Como é de lei, a sala tinha um candidato a humorista. O cara não perdia uma oportunidade para fazer alguma gracinha. No meio de alguma explicação, disse o que não devia – ou devia, sei lá! Maria Helena ficou furiosa e falou algo sobre não tolerar criancices e que, se o sujeito não se comportasse, ela compraria uma chupeta para ele. Contrariando as regras da relação professor-aluno, o sujeito fez pouco caso do sermão, e provocou: se ela pagasse, ele mesmo iria comprar a chupeta.  Fez-se o silêncio. Parecia rodada decisiva de pôquer, a dúvida instalada: será que um dos jogadores iria desistir ou mergulhariam de cabeça no turbilhão do all-in? Maria Helena conferiu as suas fichas e resolveu pagar para ver. Pegou o dinheiro na bolsa e entregou para o aluno. Para surpresa geral e desmoralização total da professora, uns dez minutos depois, ele voltou para a sala e passou o resto da aula chupando chupeta.



Anderson, professor de física, era gremista fanático. Aulas nas manhãs de segunda-feira eram sinônimos do fracasso. Alguém sempre fazia alguma pergunta sobre o jogo de domingo. Ele tentava fugir do assunto. Outro aluno iniciava nova provocação. Alguma coisa transbordava dentro daquele homem educadíssimo, a paixão tomava conta e... o pandemônio se estabelecia. Adeus aula! Muitos anos depois, foi meu vizinho. Certa vez, enquanto esperávamos pelo elevador, relembramos essas pequenas trapaças da sorte.

As melhores aulas (para mim) eram de português e inglês, história e geografia, matérias que eu gostava e que serviram para me mostrar que existem outros caminhos além da mediocridade. Às vezes encontro Dona Vânia Albuquerque no supermercado, mas nunca consigo dizer o quanto estou em dívida com a professora que, constantemente, me incentivou na direção da leitura, com a professora que respondia ao meu destempero com doçura e paciência.     




No terceiro ano do colegial resolvi abandonar tudo. Não terminei o ano. Estava no lugar errado. Só fui completar o segundo grau uns cinco anos depois e em outra escola. Minha mãe ficou furiosa, mas teve sensibilidade para compreender que aumentar a infelicidade costuma causar estragos irrecuperáveis.
 
Nunca mais voltei ao colégio, nem sequer para ver os belíssimos mosaicos do Martinho de Haro. Salvo quatro ou  cinco ex-colegas (com quem tenho algum tipo de proximidade ou que encontro em lojas e restaurantes), não tenho contato com os outros - vários se mudaram, alguns faleceram.  

Como aconteceu no passado, estou em outra sintonia – pouco ou nada tenho em comum com eles. Vejo as postagens no grupo de whatsup e não os reconheço. Não me reconheço como um deles. Para o bem ou para o mal, ainda não decidi se vou à festa.    


(P. S: as fotos não são minhas. Quando os autores se manifestarem, acrescentarei o crédito).

(continuo em outra hora)

Um comentário:

  1. Vai sim Raul! Encontrar pessoas do nosso passado próximo é interessante! Até para nós mesmos muitas vezes esses encontros revelam sentimentos e sensações que talvez nunca sentimos! Adorei a leitura! Abraço!

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