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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

O MEU AMANTE DE DOMINGO



Pretendia ler, em algum momento, O meu amante de domingo, da Alexandra Lucas Coelho, uma portuguesa que residiu durante algum tempo deste lado do Atlântico, autora da novela subversiva (em diversos graus e afetos) A nossa alegria chegou. Alguém o havia recomendado, não lembro quem, e, nessa altura dos acontecimentos, isso não possui a mínima importância. Talvez não tenha sido assim, posso ter lido alguma resenha e me interessado pelo enredo. A cotação exorbitante do dólar impediu a compra do volume, na edição da Tinta da China. Entre Portugal e Brasil, há léguas a nos separar / tanto mar, tanto mar. E o salário que recebo ao final do mês não acompanha os meus desejos bibliográficos. Aliás, os meus muitos outros desejos.

Felizmente, a Bazar do Tempo evitou o naufrágio e a narrativa, publicada por preço módico, foi adquirida. Dito isso, cabe esclarecer que logo logo terei tempo para os outros livros ficcionais de Alexandra, E a noite roda e Deus-dará, exemplares que foram adquiridos em outros tempos e que, por isso, me aguardam na estante. No devido tempo também serão devorados.   

Sobram-me adjetivos (de acordo com a minha tabela de valores) para classificar o texto. Como não pretendo ficar parado nessa estrada que leva o nada até o lugar nenhum, importa dizer que lá pela altura da página 30 já tinha consultado o Google várias vezes, não pelo léxico, pela prosódia ou pela semântica, que isso muitas vezes se mostra um entrave no entendimento entre os dois países separados pelo oceano, não foi esse o motivo, e sim as diversas referências literárias, históricas, picarescas que afloram nas páginas, entre Euclides da Cunha e James Joyce um turbilhão de nomes, livros, músicas (nunca tinha ouvido Elbow!), complicações gozosas (e gostosas) que acrescem substância ao que é exposto em primeira pessoa, mil truques a evitar que a narrativa morra de inanição. A isso, se for do agrado do leitor, poderemos chamar de estilo.

No início, a narradora, audaciosa antropófaga, 50 anos de peripécias gastronômicas, etílicas e sexuais, decide experimentar as carnes e os músculos de um mecânico. Essa delícia, o sexo, repetida com diversos parceiros (o vietnamita, o nadador, o futuro Nobel, além de outros não mencionados), possui o agravo da comparação com um parceiro anterior, chamado de Caubói, dramaturgo que a abandonou em tempo pretérito, depois de cometer pecado capital, um desses ultrajes que merecem ser punido com o empalamento em praça pública.  

Diz a narradora que Uma pessoa no meu estado não fode um mecânico ou um futuro Nobel porque se esqueceu de um cabrão, ou para o esquecer. Uma pessoa no meu estado fode um mecânico ou um futuro Nobel para se lembrar de um cabrão, e lembrando-o. Um dia, alguém há-de calcular o dispêndio de tempo com cabrões na cabeça de quem fode.

E, em outro trecho, afirma que a vingança é uma espécie de amante. Toma o lugar do morto na cama. E isso significa, entre tantas coisas, considerar que, nesse tipo de imbróglio, (...) é possível engendrar precipícios sem sair do quintal. Ou seja, basta um mínimo para que o tsunami emocional quase afogue a vítima, deixando-a prostrada, sem saber qual a reação adequada – isso se tiver forças para reagir. E, quando reage, quer que o causador dessa dor também sinta dor. 

Enquanto não resolve como liquidar a fatura, ou melhor, como matar (metaforicamente) o caubói, a narradora, esfomeada, se entretém a saborear outras carnes – nas devidas variações recomendadas no cardápio, vulgo Kama Sutra. Banquetes para 500 talheres - ou mais.  

No intervalo entre um e outro desse degustar, a revisão de uma biografia de Nelson Rodrigues (flor de obsessão) e a escritura de texto, provável auto-ficção, onde narra o horror que todos costumam imaginar povoando a vida alheia.  

No monólogo quase sem freio da narradora prevalece o jogo literário, um mundo que se renova em meio a palavrões, oração cotidiana que almeja alcançar a graça divina e que não tem receio de constranger os parentes, a senhoria, o contabilista, o gato. Ou melhor, não esse último porque está acima de qualquer constrangimento. Em todo caso, no tom mais amável possível, proclama (sobre o caubói): Eu quero trinchar-lhe o coração cru, não menos do que um rei já fez, extrair o tubérculo peniano, triturá-lo picadinho. 

Na página última, como que a fazer graça com a desgraça, ciente de que emasculou (simbolicamente) o canalha, ela anuncia o tesão da vingança através da síntese iluminada: À porta do saloon, Nelson Rodrigues fala de coiotes com Quentin Tarantino quando se aproxima Johnny Guitar, melancólico, a enrolar um cigarro. E então, pelo arco entre as pernas dele, avisto o filho da puta, dilacerado, exangue, já pitéu de abutres, mas ainda capaz de ver, quando eu me voltar pela última vez, que esse dedo do meio é para ele.

Sensacional e bem-humorado. E mais não me cabe dizer/escrever sobre O meu amante de domingo.

 


 

 

 


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