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sábado, 5 de fevereiro de 2022

A PRIMEIRA VEZ QUE FUI NA ZONA

 

Raul pai (na direita) em um dos inúmeros botecos.

Tinha menos de dez anos quando fui, pela primeira vez, na zona do meretrício. Nos meses seguintes, fui quase todas as semanas. Sempre aos sábados. Vi e ouvi coisas que hoje considero inadequadas para menores de 50 anos. Foi o meu pai que me levou até lá.

Antes que o pessoal do politicamente correto e os fanáticos religiosos comecem a esbravejar, cabe expor os fatos e lembrar que isso ocorreu em tempo histórico diferente do atual. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Conselho Tutelar não existiam. E ninguém se importava em ver um menino naquela região da cidade.

Meu pai trabalhava como motorista (entregador, cobrador) do engarrafamento de bebidas do Gerson Vargas, que ficava localizado na Rua Benjamin Constant (ao lado do Hospital Nossa Senhora dos Prazeres). O Chevrolet chacoalhava pelas ruas dos bairros, procurando atender botecos e mercearias, sem se importar se esses estabelecimentos comerciais estavam localizados em avenidas calçadas ou em vielas e becos. Podia fazer sol ou chuva, o atendimento nunca falhava.

O ajudante descarregava os engradados cheios e recolhia o vasilhame (como a reciclagem era quase inexistente, as garrafas tinham grande valor comercial). Enquanto isso, ele emitia a nota fiscal (preenchida a mão) e recebia o dinheiro. Era um serviço sem muitas complicações.

Em algum momento, o pai determinou que eu deveria acompanhá-lo nos sábados à tarde. Isso me incomodou. Minha prioridade nos finais de semana era encontrar com os amigos, viver a pré-adolescência com um mínimo de alegria. Protestos em vão. E a justificativa que derrubou todas as objeções foi simples: quem quer ir ao cinema ou comprar revista em quadrinhos precisa ter dinheiro. Ou seja, não haveria “mesada” – que ele considerava coisa de playboy vagabundo. Sem muita paciência, completou a sentença condenatória dizendo que eu precisava aprender a trabalhar.

Não adiantou argumentar que isso era injusto e que, entre outras coisas, eu não tinha idade para realizar esse tipo de tarefa. Por fim, sem alternativa, pensando nas matinês de domingo no Cine Tamoio e nos gibis de super-heróis, entreguei os pontos.

Auxiliei meu pai durante uns dois ou três anos. Cabia-me redigir as notas fiscais, estabelecer o valor do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), somar os valores devidos. Nesse curso intensivo de caligrafia e matemática era constantemente advertido para evitar os garranchos, não errar nos cálculos e prestar atenção ao serviço. Erros ou distrações não eram perdoados.

Enquanto me esforçava para escrever as intermináveis listas de pedidos, meu pai ficava encostado no balcão, bebendo conhaque Dreher, conversando com os amigos. Entre os dedos, o eterno Continental sem filtro.

Foi assim que estive na “zona” (ao lado do Cemitério Cruz das Almas), no Popular, no Coral, na Ferrovia, no Santa Helena, no Caça e Tiro, na Várzea, na Penha e em outros tantos bairros de uma cidade que, depois de tantos anos, está se tornando quase irreconhecível.

Em determinado momento esses mergulhos na geografia lageana deixaram de existir, mas isso é assunto para outra ocasião.          

P.S.: Em sonhos recorrentes, desses que se assemelham com pesadelos, e que revelam a dificuldade de esquecer o que deveríamos esquecer, ouço a voz pastosa dos bêbados pedindo doses de cachaça Oncinha ou Pipa Oca. Simultaneamente, vejo o menino escrever no bloco de notas fiscais: dois litros de Conhaque de Alcatrão São João da Barra, um litro de Cockland (uísque), meio engradado de Laranjinha e duas garrafas de Capilé. Acordo assustado com esse reencontro com o passado.    


Nós, o segundo e o terceiro,
da esquerda para a direita.





Um comentário:

  1. Gostei. Você foi matreiro no título, e nos levou junto nessa aventura do primeiro e familiar ofício. Parabéns.

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