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sábado, 19 de novembro de 2022

DAS DIFICULDADES DE TORCER CONTRA

 



A Copa do Mundo de Futebol está próxima e eu vou torcer contra a equipe que dizem representar o Brasil. O quê?, exclamarão os exaltados patriotas, sem sequer tentar entender quais motivos me movem na direção contrária à unanimidade esportiva nacional.

 

Primeiro. Gosto de futebol. Moderadamente. Nas tardes de domingo ou nas noites de quarta-feira, uma partidinha na televisão nunca foi mau programa. Sofá, cerveja, pipoca. Se o jogo for bom, motiva-se o destampar de algumas muitas ampolas de pão líquido. Em caso contrário, aproveita-se o sofá para colocar o sono em dia. Exigir mais do que isso sempre me pareceu inadequado. Desafortunadamente, há quem discorde. Algumas pessoas acreditam que vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola têm o mesmo valor de um ritual religioso. Nesse cenário, o grito de gol equivale ao clímax, ao orgasmo. Bobagem. De minha parte, um grito de gol é apenas barulho irritante. Quando o gol é contra o Santos, muito mais irritante.

Segundo. O fanatismo, que é um fenômeno trivial no mundo esportivo, costuma gerar episódios excessivos. Um conhecido, depois de assistir – pela televisão – a derrota do time de sua devoção, chamou a família para uma solenidade no quintal de casa. Enquanto um dos empregados, clarim em punho, executava (literalmente) o toque de silêncio, ele, lágrimas escorrendo pelo rosto, hasteou a meio mastro a bandeira da agremiação esportiva.

Terceiro. O único momento em que considero o futebol como algo sério é nos jogos da seleção brasileira. Independente dos jogadores convocados, do técnico ou da importância do jogo, minha função nesse tipo de situação é simples: torcer contra. Não é uma posição cômoda. Certa vez, na casa de amigos, quase fui atingido por uma panela de pipocas. Foi em uma partida contra um país africano, não lembro qual. Fiz algum comentário sobre a miséria intelectual dos jogadores nacionais. A namorada de um dos convidados tomou as dores dos ofendidos. E... Transformou o utensílio doméstico em tacape. Se não a contivessem a tempo, provavelmente me presentearia com uns quinze pontos na cabeça.

Quarto. Em ocasiões similares, o tribalismo esportivo se faz acompanhar de agressões verbais. Como a seleção é considerada símbolo nacional, torcer contra é visto como heresia, crime, traição. Esse nacionalismo, herança de um pensamento autoritário, habitualmente é seguido por simpáticos elogios a respeito de minha masculinidade. A honra da senhora minha mãe também costuma ser mencionada com carinho. Fofo, muito fofo.

Quinto. Na pátria de chuteiras, segundo a histriônica definição de Nelson Rodrigues, muitos torcedores andam descalços. E com fome. E com frio. E com sede. Sede de justiça (aquela que todos conhecemos por tardar e falhar, sem constrangimentos, sem pedidos de desculpas). No país onde o drible, a firula, o passe de letra, o deixar o zagueiro da vez sem fôlego são qualidades indiscutíveis, a política esportiva se afasta da solução dos problemas reais. Muitos jogadores, além dos jornalistas esportivos, preferem adotar o comportamento alienado de que em boca fechada não entra mosca e que o importante é apenas jogar futebol. Em outras palavras, deixam as relações com o mundo objetivo sob o controle dos dirigentes – outorgando-lhes o uso como melhor lhes for convenientes. E, claro, eles os usam politicamente, inclusive para apoiar projetos pessoais.

Sexto. Na nação futebolística, a Copa do Mundo é a Disneylândia dos pobres. Nesse parquinho de diversões dirigido por um setor comercial que fatura milhões (Adidas, Nike, Puma, Kappa, New Balance, Le Coq Sportif, etc.), além das redes de televisão e seus anunciantes, a paixão esportiva é apenas um detalhe – e que eles exploram sem a mínima piedade. Do óleo de soja até os trajes esportivos, tudo é usado comercialmente como metáfora do sucesso esportivo.

Sétimo.  Futebol é política, é ação política. Como tudo na vida. Mas, para que se possa enfrentar um adversário prepotente, acostumado a vencer, precisamos acordar para a vida ou continuar sonhando sonhos que não são os nossos. Necessitamos entender que uma das finalidades políticas dos jogos de futebol é anestesiar dores, é desviar a atenção de problemas mais relevantes. E isso raramente pode ser considerado positivo.

Oitavo. Quem possui um mínimo senso crítico jamais esquecerá a importância política de jogadores brasileiros como Sócrates, Afonsinho, Juninho Pernambucano, Paulo André, Raí, Casagrande – todos contra o moralismo hipócrita do futebol, todos se afastando da alienação, do preconceito, do sexismo, da misoginia, da homofobia e do racismo. São pessoas essenciais. Precisamos deles. Mas, falta-nos um Éric Cantona, para dar uma voadora na iniquidade e na falta de empatia pela vulnerabilidade do Outro.

Nono. O futebol é um esporte que não consegue superar as próprias limitações – e é sempre um desastre do ponto de vista político.


Décimo. Vou torcer contra. 



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