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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

NA INFÂNCIA, O DOMINGO TINHA SABOR DE PIRULITO ZORRO (texto ampliado)

 


Na infância, o domingo tinha sabor de pirulito Zorro. Aquele Z, que tantas vezes se repetiu na tela do cinema, era doce e ainda hoje, depois de tanto tempo, inspira boas lembranças.

 

Antes, no almoço, lasanha. Uma travessa de vidro enorme, fumegante, colocada no meio da mesa, o queijo derretendo diante dos olhos. Pai, mãe, irmãos – todos comportados, fingindo amor. A sobremesa variava: arroz doce, sagu ou doce de gila. Depois, no início da tarde, quando podíamos nos livrar das amarras familiares, cinema. Cine Tamoio, onde o pai de alguns amigos era funcionário. Às vezes, Cine Marajoara. Raramente no Cine Avenida − era longe, precisava pegar ônibus.

Domingo era dia de faroeste. Dólar furado, Por um punhado de dólares, Django. Lee van Cliff era o pistoleiro que levava tiro no peito na cena final do filme. Giuliano Gemma duelando contra o bandido no final da tarde. As portas do saloon rangendo, enquanto o vento empurrava rolos de feno pelo meio da rua.


Alegria grande, dessas de quem ganha na loteria, eram aqueles filmes em que os amigos Winnetou e Mão de Ferro se esforçavam para levar a paz entre mineiros e índios, entre posseiros e camponeses. A Biblioteca Pública tinha todas essas aventuras. Cansei de levar emprestados os livros escritos por Karl May.


Quantas vezes rimos da incompetência do Sargento Garcia, que jamais conseguiu alcançar Don Diego de La Vega? Esporadicamente assistíamos Kung Fu ou Flash Gordon. Mais frequentes eram os filmes heroicos: Maciste, Hércules, Sansão e Dalila. Victor Mature fazendo pose de galã. Umas histórias enroladas, muitas cenas de lutas com espadas, gladiadores vencendo leões no Coliseu, mulheres com togas curtas, o contorno dos corpos se insinuando através do tecido fino. Ninguém perdia essas sessões. Assunto garantido no recreio da escola, na manhã seguinte.


Naquele tempo, a bomboniere do cinema era sortida em doces (balas azedinhas, Mentex, Diamante Negro, Sonho de Valsa) e não vendia pipoca. Em uma cidade próxima, um juiz não gostou de ouvir alguém estourar a embalagem. Proibiu a venda em todos os cinemas. Anos 70. A repressão política era constante e nós íamos ao cinema se divertir.


Refrigerantes também não vendiam. Não lembro o motivo. Se estivesse com sede e algum dinheiro, era preciso entrar em algum bar e pedir no balcão. Não havia nada melhor do que Crush gelado, aquele gostinho artificial de laranja descendo pela garganta como se fosse festa. Sabor muito diferente daquelas limonadas aguadas que acompanhavam as refeições lá em casa. Em dias especiais tínhamos permissão para beber capilé (um xarope gosmento de groselha).


Não importava se tínhamos assistido filmaço ou bomba. Ir ao cinema era (ainda é) um prazer.


Depois de olhar as vitrines das lojas (sonhando com brinquedos e objetos que nunca iríamos ter), era hora de comprar revista em quadrinhos. Essa era uma parte indispensável do programa. Em uma banca ao lado do Colégio Estadual de Lages (CEL) tinha de tudo: Pato Donald, Zé Carioca, Batman, Super−Homem. Muitas vezes não era possível comprar todas as novidades. Acordos financeiros com os irmãos raramente funcionavam. O usual eram as brigas, os gritos e acusações, as promessas de contar "tudo" para a mãe.


No inicio da noite de domingo visitávamos um dos irmãos de meu pai. Lá tinha televisão. Na nossa casa, não. Solenes, fazíamos silêncio diante das imagens transmitidas pela TV Gaúcha, único canal possível naqueles tempos. Nossa diversão era, no primeiro instante, o Show do Gordo − um mix de entretenimento, com direito a calouros musicais. Uma hora depois, a grande atração da noite: Ringue 12 Marinha Magazine. Todo mundo torcendo por Ted Boy Marino, que julgávamos o maior lutador de todos os tempos.


Mais tarde, não lembro quando, o mundo das imagens (e, consequentemente, dos filmes) se expandiu através da TV Coligadas, de Blumenau (programação da Rede Tupi e da Rede Globo). Parecia que o mundo tinha se transformado em um domingo eterno. A vida familiar foi invadida por desenhos animados (Manda-Chuva, Tom e Jerry, Pica Pau, Flintstones, Corrida Maluca, Zé Colmeia e Catatau, Pernalonga, Os Jetsons, entre outros) e atrações adultas como Almoço com as estrelas, com Airton e Lolita Rodrigues, O Céu é o limite, com J. Silvestre, Programa Flávio Cavalcanti e Amaral Neto, o repórter. Nunca mais fomos os mesmos depois que as novelas se transferiram do rádio para a televisão.


Na infância, em alguns momentos, a felicidade esteve por perto – depois, como sempre acontece, foi embora.




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