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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

DAVI E GOLIAS: A INTELIGÊNCIA CONTRA A FORÇA

 


O jogador de futebol escocês Andrew (“Andy”) Robertson negou ter trocado alguns socos com o goleiro brasileiro Alisson Becker, após a derrota do Liverpool (3 x 1) para o Leicester, no dia 13 de fevereiro de 2021. Em entrevista ao canal Sky Sports, o lateral declarou que gostou de saber que (na versão difundida pelos tabloides ingleses) ele teria levado a pior e machucado o lábio. E completou, preferia que fosse o contrário, mas os fracos não podem escolher!

Poucas pessoas conseguem manter a serenidade em situações complicadas. As diversas crises criadas pela modernidade (seja lá o que isso possa significar) estão roubando o oxigênio da humanidade e instalando o medo e o mal-estar no lugar da esperança. É como se alguma coisa ou as lideranças políticas tivesse eliminado o riso, a diversão e o prazer. Gilead é aqui, diria um leitor de O Conto da Aia (Margareth Atwood). Também não deixaram espaço para o wit – um tipo refinado de humor inglês e que, de forma simplificada, pode ser traduzido como palavra ou frase espirituosa, sagaz, que subverte o sentido do pensamento e produz algum tipo de estranhamento.

Robertson, ciente de que a história de Davi e Golias está assentada em fábula religiosa, e, portanto, irreal, em lugar de abater o troglodita com uma pedra, preferiu adotar outro caminho. Admitiu a própria fraqueza. Em outras palavras, contra-atacou. Inverteu as posições dos jogadores em campo. E fez isso de forma sutil, educada, elegante. Nomeou a barbárie com o nome do Outro, daquele que é (hipoteticamente) o mais forte. Alisson, colocado em posição de superioridade, ficou impedido de construir um discurso oposto ao formulado por Robertson (porque, se fizer isso, admitirá que não possui força). Sobrou-lhe, além do papel de vilão, o sabor agridoce do sangue que não fez escorrer do lábio do companheiro de equipe.

Esse gol inusitado se opõe a um goleiro com dificuldades para entender que o espaço de manobra é mais amplo do que as quatro linhas que delimitam o gramado. Raros são aqueles (jogadores de futebol ou não) que conseguem captar esse tipo de sutileza. Diversos motivos concorrem para o embotamento. Um dos mais singelos é a falta de habilidade para resolver situações que destoam do código de honra da masculinidade – constituído pela progressiva agressividade diária.

Simultaneamente, Robertson também deu uma estocada nos veículos jornalísticos que, amparados na razão econômica e em interesses pouco transparentes, costumam alimentar alguns boatos para conseguir audiência. A publicidade, seja a favor ou contra, modifica o valor de compra e venda da mercadoria.

Ao contestar a briga que talvez não tenha acontecido, Robertson forneceu ao público interessado em retórica (e, claro, em esportes) um contentamento diferente, uma alegria inusitada. Em lugar da raiva explicita, do exigir satisfação, da luta corporal, do duelo com pistolas, restabeleceu o equilíbrio de forças através da frase mordaz, aguda, incontestável. Soube mostrar que (apesar das provas em contrário) nem tudo está perdido para aqueles que defendem a racionalidade. Disse, nas entrelinhas, que ainda existem jogadores profissionais que estão em outro nível. Distante das emoções baratas (videogames, baralho, pornografia, apostas em cassinos virtuais) que satisfazem muitos de seus colegas de profissão, fez das palavras uma muralha contra a mediocridade.

Henry James (1843-1916), no conto A Lição do Mestre, propôs uma metáfora iluminada: Era fácil ir parar em um deserto – era o que as cartas previam, era a lei da vida; mas era acidente raro tropeçar em uma fonte cristalina. Guardadas as distâncias históricas, literárias e políticas, é possível que estivesse acenando para lampejos de lucidez como o de Robertson.

Humor nos tempos do cólera. Ou do fascismo. As doenças podem ter vários nomes, alguns impronunciáveis, todos acenando para a tristeza. O que não sofre mutação é o antídoto.  


Davide con la testa di Golia. Michelangelo Merisi ("Caravaggio").
Óleo sobre tela, 1609/1610. Galeria Borghese, Roma, Itália. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

A QUEDA

 


Fui ao chão. Literalmente. Pisei onde não devia. Ou melhor, onde nada existia. O corpo, sem sustentação, desabou. Hematomas na cabeça e nos joelhos. Uma das lentes dos óculos riscada. Uma tarde sob observação na clínica médica. A tomografia confirmou o óbvio: vaso ruim não quebra. E isso tem antecedentes. Alguns anos atrás, encenei espetáculo similar, mas com resultado mais doloroso. Fissura em um dos metatarsos do pé direito. Dois meses engessado. Tortura chinesa (como se dizia em tempos que não voltam mais). Sobrevivi. E isso vale para o acidente do dia 06 de dezembro. 

Enfim, estou me despedindo de 2024 como protagonista de uma imagem desagradável: sangue escorrendo pelo rosto, diversas pessoas desconhecidas me perguntando se eu estava bem, se poderiam me levar para o hospital, se estava sentindo alguma dor. Fiquei assustado, me levantei rapidamente e, cambaleante, fui para casa (que não fica longe do local da queda). Só fui procurar atendimento médico algum tempo depois.   

A parte chata foi explicar para os familiares e para os curiosos o que aconteceu. Pensei em descrever – com detalhes escabrosos – os múltiplos ferimentos e a falência econômica resultante dos gastos com remédios, consulta oftalmológica, óculos novos. Contive-me. A vida não deve ser confundida com uma opereta do século XIX ou com a queda do Império Romano do Ocidente. Foi só um momento ridículo.

As marcas físicas do episódio estão desaparecendo. No máximo vão ficar cicatrizes quase imperceptíveis. Medalhas de guerra. As feridas emocionais estão sendo curadas lentamente com chá, biscoitos, sorvete e doces variados. Não sou muito exigente quando fico com algum problema de saúde.

O que importa dizer nestas alturas do campeonato é que não estou mais com idade para fazer acrobacias, adeus travessuras na trupe do Cirque du Soleil. É tarde para começar explorações espeleológicas. Também devo desistir da ideia de escalar o Himalaia (quiçá possa trocar pelo Aconcágua). Falta patrocinador... Brincadeira, me contento em passar alguns meses nas Ilhas Canárias ou em Dubrovnik. Isso se ganhar na loteria ou receber alguma herança (mais difícil do que acertar na mega sena). A vida real está distante dos desejos e o que deve acontecer nos próximos meses não difere muito dos últimos acontecimentos. Ou seja, poucas chances de alguma coisa mudar.

As alternativas possíveis para romper com a monotonia e evitar outro tombo são viajar pelas páginas dos livros ou pelas telas dos cinemas, mergulhar nas histórias em que é possível viver a vida inteira que podia ter sido e / que não foi, como escreveu Manuel Bandeira. Obviamente isso não basta, mas serve de aperitivo enquanto as maiores e melhores aventuras não se realizam.

Pelo horóscopo chinês, a Serpente de Madeira Yin (de 29 de janeiro de 2025 até 16 de fevereiro de 2026) determinará o destino de todos nós. Ou seja, é um ano para superar tempos difíceis e recomeçar com força e esperança. Um pouco de humor também não vai atrapalhar – e talvez ajude.   

Sobre passos em falso, tropeços e outras tragédias de igual valor, lembro da voz áspera de minha mãe dizendo: se cair, do chão não passa.




terça-feira, 24 de dezembro de 2024

UM DITADOR NA LINHA

 


O Secretário Geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Iosif Vissarionovich Dzhugashvili (1878-1953), no dia 23 de junho de 1934 (sábado), telefonou para o escritor Boris Leonidovich Pasternak (1890-1960). Queria saber o que o escritor pensava sobre o poeta Osip Emilyevich Mandelstam (1891-1938). Nervoso, Pasternak desconversou e respondeu que o conhecia pouco: Somos diferentes, Camarada Stalin. Consta que, aborrecido por não ter obtido a resposta esperada, Stalin teria encerrado a conversa afirmando: Você é um péssimo camarada, camarada Pasternak.

Essa é uma das treze variações do assunto mais comentado em Moscou, no final do verão de 1934. Ismail Kadaré (1936-2024) examinou o assunto em Um Ditador na Linha (São Paulo: Companhia das Letras, 2024. Tradução de Bernardo Joffily). 

Mais do que tentar esclarecer as relações entre o poder e a arte, entre a amizade e o medo, o livro propõe separar as intrigas do que realmente aconteceu. No entanto, isso esbarra em muitas dificuldades. Os relatos são divergentes: ou escapam do verossímil ou estão contaminadas por interesses particulares.

Qual é o elemento mais estranho nessa história? O número do telefone. Ele foi criado especialmente para essa conversa. Somente essa. Depois foi desligado. Ficou mudo para todo o sempre, supostamente para impedir que o teor exato do diálogo fosse revelado. Ou para impedir a existência de outra ligação.   

Quem tornou pública a existência da conversa? Foi Pasternak ou alguém do governo? Algumas das versões apontam para Pasternak. Outras são derivadas de rumores que se multiplicaram com o passar do tempo e que, por inúmeras razões, não permitem verificar se estão corretas ou se são apenas fofocas de segunda mão. Por exemplo, quando Isaiah Berlin (1909-1997) morou em Moscou, Pasternak contou para ele a história do telefonema, mas o fez de tal forma que o desfecho não é conclusivo: Nesse ponto, ao contar o episódio, Pasternak embarcou mais uma vez num de seus grandes voos metafísicos sobre os momentos cósmicos decisivos na história do mundo. Em outro trecho, Isaiah Berlin acrescenta: O episódio evidentemente o afligiu de maneira muito profunda. Repetiu para mim a versão que acabo de relatar em pelo menos duas outras ocasiões e contou a história a outros visitantes, embora, aparentemente, de formas diferentes. Pelo relato de Isaiah Berlin, Pasternak tentou salvar Mandelstam – inclusive porque solicitou a intervenção do editor do jornal Izvestia, Nikolai Ivanovich Bukharin (1888-1938). Não é a versão mais confiável.  

Pasternak traiu Mandelstam (que já estava preso)? Essa é a dúvida crucial. E é quase insolúvel, porque não responde à questão principal: por que Stalin telefonou para Pasternak? Será que o líder soviético esperava alguma palavra de solidariedade para Mandelstam? Se isso acontecesse, não seria motivo suficiente para também mandar encarcerar Pasternak? Para complicar, existe a possibilidade de Pasternak ter conhecimento do poema que Mandelstam escreveu contra Stalin. Seria esse o motivo da cautela? Naqueles tempos difíceis, manter a liberdade implicava em nunca discordar da política cultural (e ideológica) do Estado.

Cada uma das pessoas que conta a história do telefonema acrescenta um elemento a mais, uma possibilidade diferente, embora quase todos concordem que talvez fosse possível salvar Mandelstam. Bastava Pasternak dizer as palavras certas. Ele não disse.

Sintomaticamente, o telefonema criou a suspeita de que Pasternak tinha contatos com o alto escalão do Estado. Quem estava em apuros recorria a ele: Por que [Sergey Pavlovitch] Brobov [1889-1971] enviou a sua esposa a Pasternak? Julgaria de fato que o outro faria por ele o que não fizera por seu amigo Mandelstam? E, por fim, acreditaria que Stalin daria ouvidos à intervenção do poeta? Ao longe, mas se aproximando com rapidez, está o mito de Fausto (... quando se tratava de escritores renomados, pensava-se bastante nesse pacto, embora se falasse raramente dele). Em outro tom, mas encaixado na mesma situação, Vsevolod Emilevich Meyerhold (1874-1940) aconselhava, para quem quisesse entender a situação, a leitura de Macbeth. São conjecturas que não ajudam a decifrar o enigma, mas abrem espaço às mais diversas interpretações. 

Em paralelo, surge a história da Albânia (e da Letônia) – que, de certa forma, foi (ou ainda é) uma província distante da Mãe Rússia. Com a devida ressalva de que esse parentesco, consequência da II Guerra Mundial, se aproxima de uma ferida que não cicatrizou. Aos países pequenos, assim como para aquelas pessoas que se afastam das diretrizes do Estado, qualquer deslize pode levar à ruína.   

 

Ismail Kadaré (1936-2024)

P.S.: Para conferir o texto de Isaiah Berlin, ver:

BERLIN, Isaiah. Conversas com Akhmatova e Pasternak. In: Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 530-557.


domingo, 22 de dezembro de 2024

KURT COBAIN E WILLIAM BURROUGHS: UM ENCONTRO

 


Em outubro de 1993, William Seward Burroughs II (1914-1997) morava na Learnard Avenue, nº 1927, em Lawrence, Kansas. Aos 79 anos, depois de uma vida agitada envolvendo todos os tipos de loucuras possíveis na face da Terra, ele não gostava de receber visitas. Mas não conseguiu resistir à insistência de um fã: Kurt Donald Cobain (1967-1994).

A estrela do rock Grunge queria dividir um projeto com uma das grandes celebridades literárias da época. Durante o período que frequentou a escola, embora não tenha se graduado na Aberdeen High School, Cobain conheceu a literatura de Susan Eloise Hilton (Vidas Sem Rumo – The Outsiders, 1967) e da Geração beat, principalmente William Burroughs. Ou seja, Cobain sempre foi um admirador dos ícones da contracultura estadunidense. No caso específico, não foi fácil superar as inúmeras barreiras até encontrar o Mestre. Depois de vários desencontros e uma carta onde Cobain declara sua admiração por Burroughs (agosto de 1993), o autor de Naked Lunch aceitou participar da gravação de um vinil.

A história da gravação do compacto They Priest They Called Him (texto incluído coletânea The Exterminator, de 1973) está dividida em duas partes. Burroughs gravou a sua participação em 25 de setembro de 1993, em Lawrence, Kansas. Cobain acrescentou os solos de guitarra em novembro do mesmo ano, em Seattle, Washington State. Em um lado do disco estão a narrativa e a música; do outro, autógrafos dos dois artistas. Foram prensadas dez mil cópias, todas numeradas a mão. O lançamento nacional ocorreu em 01 de setembro de 1993. A foto da capa do encarte é de Gus van Sant.    

Em outubro de 1993, durante a primeira semana de uma série de shows do Nirvana, o gerente da turnê Alex MacLeod levou Cobain até Lawrence. Burroughs descreveu o encontro da seguinte forma: Eu esperei e Kurt saiu com outro homem. Cobain era muito tímido, muito educado e obviamente gostou do fato de eu não ter ficado impressionado ao conhecê-lo. Havia algo nele, frágil e envolventemente perdido. Ele fumava cigarros, mas não bebia. Não havia drogas. Eu nunca mostrei a ele minha coleção de armas.

 


Cobain presenteou o seu ídolo com uma biografia de Leadbelly (músico elogiado por Burroughs) e recebeu em troca uma gravura. O encontro durou algumas horas. Cobain considerou o encontro como um dos momentos mais importantes de sua vida. Em uma entrevista, posteriormente, declarou: I’ve collaborated with one of my only Idols William Burroughs and I couldn’t feel cooler (Colaborei com um dos meus únicos ídolos, William Burroughs, e não poderia me sentir melhor).

Pouco se sabe sobre quais assuntos os dois conversaram. Pode ter sido apenas uma circunstância em que duas pessoas se encontraram para contrastar energias, o novo e o antigo refletidos, ou para construir algum tipo de memória.  



Cobain se suicidou em 5 de abril de 1994, em Seattle, Washington State – o corpo só foi encontrado três dias depois. Burroughs faleceu em 02 de agosto de 1997, em Lawrence, Kansas.  

 


Para maiores detalhes sobre o encontro entre Kurt Cobain e William Burroughs, consultar: 

COBAIN, Kurt. Diários de Kurt Cobain. Osasco (SP): Editora Belas Letras, 2024; 

CROSS, Charles R. Heavier than Heaven – mais pesado que o céu. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2015; 

ROCHA, Servando. Nada es Verdade, Todo Está Permitido – el dia que Kurt Cobain conoció a William Burroughs. Barcelona, España: Ediciones Alpha Decay, 2015.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

AQUELES CÃES MALDITOS DE ARQUELAU



A biblioteca é um lugar onde o conhecimento e o horror se espelham. Além de ser o ambiente propício para o estudo, pode ser portal para o universo (O Aleph, Jorge Luis Borges), espaço adequado para mostrar o quanto o poder é risível (Um General na Biblioteca, Ítalo Calvino), cenário para crimes (Um Corpo na Biblioteca, Agatha Christie), incêndios (O Nome da Rosa, Umberto Eco, Auto de Fé, Elias Canetti, e Fahrenheit 451, Ray Bradbury), além de constituírem um território farto para o exercício da censura política. Tudo pode acontecer enquanto o silencio é cumplice de quem passa parte de seu tempo enclausurado em uma sala repleta de livros.

Não é exatamente o caso dos personagens de Aqueles Cães Malditos de Arquelau, de Isaias Pessotti (São Paulo: Editora 34, 1993), embora todos trabalhem no Istituto Galileo Galilei per la Storia della Conoscenza, próximo de Milão. Em outras palavras, parte da narrativa está conectada com um tipo específico de bibliofilia: missais, antifonários, herbários, bestiários, bíblias, pergaminhos, códices, cartas geográficas, incunábulos, manuscritos, etc. Quanto mais antigo for o livro, melhor. E o valor do volume aumenta se tiver escólios (anotações, comentários). Por isso, parte da ocupação profissional daqueles que trabalham no Galilei consiste em vasculhar conventos, igrejas, porões e cofres de sacristias, batistérios ou cenáculos, bibliotecas, sótãos, armários, oficinas de restauração. Nas palavras de Emílio Donatelli, o narrador do romance: Descobrir esses esconderijos era uma espécie de hobby nosso nos finais de semana, quando saíamos, quase sempre no Citroen 2HP de Bruno Salvadori, atrás de boa comida, bons vinhos e velhos escritos”

Em uma viagem ao interior do Piemonte, próximo de Madonna della Spina, cinco dos integrantes do Galilei (Emílio, Bruno, Lorenzo, Isabella e Beatrice) encontram em uma Villa afastada uma igreja em ruínas – construída (possivelmente) no século XV pelo Bispo Lutércio, religioso que era chamado pelo povo da região de Bispo Vermelho. Completando o evento, eles descobrem alguns livros raros, inclusive um Commentarium sobre o teatro grego.

Como acontece nessas situações em que o desafio intelectual surge como um estímulo para que a pesquisa sobre o passado distante elabore algum tipo de aproximação, o Instituto Galilei é tomado por um furor intelectual. Diversas hipóteses – algumas fantasiosas, outras mais elaboradas – são alvo de exame detalhado. No meio desse nevoeiro espesso, em que a cultura do período medieval está muito distante do presente narrativo, sobressai o exagero descritivo do narrador – Emílio é um detalhista e a tudo quer nomear, como se isso reduzisse as distâncias entre o olhar e o objeto.

Emílio, latinista, trabalha na transcrição do Commentarium. Entre os diversos trechos do livro sobressai a rivalidade entre Eurípedes (480 a. C. – 406 a. C.) e Aristófanes (446 a. C. – 386 a. C.) – uma das abordagens que o texto enuncia, colocando em relevo os interesses do escritor. Mas, além disso, existem outras questões. A mais inquietante está na suposição de que as primeiras traduções dos dramaturgos gregos para o latim foram feitas pelo autor do Commentarium (que talvez seja o Bispo Lutércio). Como ao interprete cabe saber distinguir as diferenças entre a verdade textual e a verdade factual, Emílio assinala: Mas quando se trata de descobrir e entender figuras do passado, pessoas, uma certa dose de paixão ilumina detalhes que a mera racionalidade não enxerga”. Evidentemente, isso serve de baliza para não insistir no engano causado pelas certezas provisórias ou por se apaixonar por personagens que se parecem com imagens idealizadas. Aqueles que viveram no período medieval enfrentaram situações diferentes daquelas que vivencia o tradutor – e isso nem sempre é percebido. Por exemplo, os Domini canes (...) estavam prontos a denunciar por heresia quem, através dos textos clássicos, contribuía para a criação de um “novo paganismo” Qualquer referência ao teatro grego, pagão, provavelmente atrairia a atenção da Inquisição (cães do Senhor), originando consequências desagradáveis. 

O conhecimento deve ter uma dimensão erótica, escreve Emílio em um parágrafo que deveria passar desapercebido. Ao trabalhar com a transcrição do Commentarium, ele finge não ter disposição para causar algum tipo de atrito. Como todo tradutor/traidor, ele sabe que qualquer relação com o texto implica em contato com outra pele, com a fricção entre os corpos, com o propósito último que é o de obter o gozo. Mas também sabe que existe a possibilidade de Eros ser superado por Thanatos – o que talvez amplie a volúpia.

Nesse poço que ninguém conhece a profundidade, incontáveis páginas da tradução do Commentarium revelam uma discussão interminável sobre as obras de Eurípedes. Essa tarefa corre paralela ao desejo carnal de Emílio por Anna (pesquisadora do teatro grego clássico). Nesse momento, em que o desejo adquire dimensões de diferentes intensidades, a metáfora que une a vida ao teatro parece relampejar entre as páginas de Aqueles Cães Malditos de Arquelau. Embora Emílio e Anna consigam superar as barreiras e conjugar os verbos do prazer de forma substancial, o texto suscita mais perguntas do que respostas.

A importância da igreja católica apostólica romana adquire destaque no texto que está sendo traduzido. Isso significa que o andamento narrativo sofre transformações – a cultura literária grega é substituída pela desconfortável influência da Inquisição.

A descoberta de que Lutércio é uma contração do nome de Ludovico III (LV Tertius/Ludovico Terzo) de Monferrato, um cardeal que caiu em desgraça em uma das muitas intrigas na sucessão papal, muda em muito o entendimento dos pesquisadores. Os livros que sobreviveram a essa época se tornam testemunhas de um projeto repressivo e que confirma que todos aqueles que, por algum motivo, se desviaram do ordenamento religioso ou da estrutura política (que em muitos casos é a mesma coisa) foram, de uma forma ou de outra, considerados como inimigos. Ludovico III prefere se retirar desse cenário viciado e se refugia em uma vila no interior do Piemonte, constrói a capela, o teatro, e passa a viver isolado da maldade humana. Pelo menos, é essa uma das possíveis hipóteses a que chegam os pesquisadores ao examinarem os documentos que vão sendo reunidos na medida em que a pesquisa avança.

O que era para ser procura por livros raros evolui para um enigma sobre a história (italiana e da igreja católica). Na medida em que novos elementos se somam nesse emaranhado de fatos, o desenho que está inscrito nessa tapeçaria, nessa tessitura, que constitui o espaço literário, adquire visibilidade – embora algumas questões continuem embaçadas.

No último parágrafo do Commentarium, Emílio encontra um aviso sobre o destino daqueles que ousam desafiar a ordenamento social: Quando um homem superior ao seu tempo (tempori praestans), após tanta incompreensão e falsidade, insultado em seu nome e escarnecido em seu amor pela verdade e a justiça, cansado de amarguras renunciou ao convívio de seu povo, às causas que amara, para escapar do sofrimento no refúgio último de seus sonhos e afetos, não tinha ainda concluído seu destino infortunado. Ainda o esperavam, para dilacerar seus sonhos e seu corpo, aqueles cães malditos de Arquelau”. 

Ou seja, no desfecho do drama descobre-se que Ludovico III e sua amante foram dilacerados pelos cães do marido de Victória (que, por uso de figura de linguagem, é identificado como o governante da Judéia, da Samaria e da Idumeia no período em que nasceu Jesus Cristo).

Aqueles Cães Malditos de Arquelau pode ser definido como um romance erudito. A prosa pesada, repleta de citações em latim e grego, além de dados sobre um passado remoto e que é reconstruído ficcionalmente, exige do leitor paciência e, em alguns momentos, boas fontes de consulta – se o leitor quiser separar a ficção dos fatos históricos. Para amenizar um pouco essa lentidão e excesso cultural, surgem algumas notas de humor nos diálogos entre os personagens, uma espécie de esgrimir entre a inteligência e os elementos de prazer que constituem a leitura.  


Isaias Pessotti (1933-2024)


domingo, 15 de dezembro de 2024

ONIRISMO E NONSENSE


Pintura de Rob Gonsalves (1959-2017)


Todo mundo sonha. Dizem. Das coisas alheias pouco sei – exceto o que me contam e o que leio ou assisto no cinema. O que posso afirmar com segurança é que nos últimos tempos tenho dormido quase oito horas ininterruptas e em suave serenidade infantil. Raramente há interrupções no sono.  

Em outros tempos, muitos sonhos recorrentes com a família. Hello, darkness, my old friend / I’ve come to talk with you againO eterno conjunto de desacertos que a vida nos presenteia. É possível que tenha, em algum momento, por motivo impreciso, consertado o parafuso frouxo que carrego na cabeça (como dizia minha avó) e solucionado o problema. Nunca mais apareceram.

O inconsciente costuma nos transportar para lugares que gostaríamos de ir. Situações que gostaríamos de ter vivido. Mas nem sempre. O contrário também se mostra verdadeiro. Muitas vezes o que se faz presente é o horror. Talvez para nos lembrar que estar acordado também prova que o inferno existe.  

O surrealismo foi a corrente artística que mais valorizou os sonhos. Flertando com o anarquismo, eles acreditavam que a arte não deve estar atrelada à lógica e à razão – cabe à imaginação ultrapassar essas barreiras e estar receptiva para todas as possibilidades da mente humana.

Recentemente, sonhei que estava em sala de aula. Era um daqueles dias de sol escaldante, todos de bermuda e camiseta. Muita gente entrando e saindo da sala, conversas paralelas ensurdecendo o mundo. Pareceu-me que algum rock comportado dava o tom da trilha sonora. Sentado em uma carteira estava um ex-colega do segundo grau. Fazia muito tempo que tínhamos perdido o contato e, salvo banalidades, nunca tivemos interesses convergentes. No sonho, ao contrário, parecia que éramos amigos íntimos. E o mais estranho, o tempo ainda não tinha produzido muitos estragos em nossos corpos. Éramos alegres e cabeludos. Tínhamos 16, 17 anos. Depois de trocar algumas palavras com ele e algumas pessoas que não conheço, deixei a sala, caminhei pelo corredor e... acordei.

Durante a manhã, procurei por alguma coerência nesse sonho. Não foi preciso ir longe. No ritmo da automedicação, conclui que não era caso de internamento psiquiátrico, tampouco havia motivo para marcar consulta com o doutor Sigmund – o bisbilhoteiro da mente humana. No século passado, quando fui aluno na UFSC, uma das disciplinas abordou os dois volumes de Alice, o célebre texto de Lewis Carroll (pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, 1832-1898). Foi uma bagunça. Alunos demais (inclusive alguns conhecidos) O ar condicionado não estava funcionando. Quem chegava atrasado não conseguia lugar para sentar. Poucos conseguiram ouvir o professor.

Será possível estabelecer algum tipo de ligação entre essas aulas malucas e o sonho? Sou daqueles que acreditam que nada acontece por acaso. Sempre há um fio solto dentro do labirinto e que raras vezes aponta para a saída. O usual costuma ser um convite para tomar chá com o Chapeleiro Louco (Mad Hatter) e a Lebre de Março (March Hare). Ou então, em outra versão, mergulhar no mundo proposto por um daqueles filmes estranhos do Luis Buñuel Portalés (1900-1983). 

De qualquer maneira, sem estabelecer conexões entre o que está certo e o que está errado nos passeios oníricos, só vou começar a me preocupar no momento em que ouvir os gritos da Rainha de Copas: Cortem-lhe a cabeça!





segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

RETORNO A REIMS

 


Não importa quando, nem por quais motivos, estamos sempre voltando para casa. Essa afirmação provavelmente está conectada com a necessidade psicológica de recuperar algumas coisas que se perderam durante a ausência, ou melhor, a separação. O exílio, escreveu Edward Said, é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada.    

Logo após a morte de seu pai, o filósofo francês Didier Eribon fez uma espécie de recuperação da história familiar em Retorno a Reims (Belo Horizonte: Âyiné, 2024). Mas, ao contrário do que manda a tradição neste tipo de narrativa, ele não queria produzir uma nova versão da Parábola do Filho Pródigo. O que escreveu está afastado da procura pelo acolhimento. O que passou, passou – não há motivos para arrependimento.

Embora tenha iniciado os seus estudos de filosofia na Universidade em Reims, somente depois que conseguiu sair de casa (e de Reims) é que Didier pode desfrutar da potência decorrente do exercício da sexualidade e do posicionamento político. Na infância e na juventude, os comportamentos e as ações eram definidos através dos relacionamentos afetivos. Migrar, mais do que uma rota de fuga da obrigatoriedade de protagonizar o registro social da masculinidade, serviu para explorar os sentimentos – sem os mecanismos repressores do universo familiar. Eu poderia dizer que os livros de Simone de Beauvoir e o desejo de viver livremente minha homossexualidade foram as duas grandes razões que presidiram minha mudança para Paris.   

Depois que foi morar em Paris, em contato com o mundo universitário, descobriu que a vida poderia ser diferente daquela que constituía a sua família, aquela que ele tantas vezes renegou de forma veemente. Fez amizade com Claude Levi-Strauss, Michel Foucault e Pierre Bourdieu, entre outros intelectuais. Tornou-se professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Amiens. Além disso, apesar de muitas restrições, publicou artigos em diversos veículos da mídia como Liberation e Le Nouvel Observateur.

Do ponto de vista político, o mal-estar de Didier está manifesto de várias formas. Uma delas surge de maneira assustadoramente honesta: Meu marxismo de juventude constituía, portanto, para mim o vetor de uma desidentificação social: exaltar a “classe operária” para melhor me afastar dos operários reais. Ele conhecia a teoria, mas não gostava da prática – porque tinha vergonha do trabalho do pai e da mãe. No seu entendimento, eles deveriam estar alguns degraus acima na escala social e econômica (o que era impossível, pois não tinham qualificação). (...) isso imprimiu em mim, acredito, uma aversão a essa miséria, uma recusa ao destino ao qual eu era intimado e a ferida secreta, mas ainda aberta, de ter que carregar para sempre em mim essa lembrança. Em outro momento da narrativa, Didier acrescenta mais uma camada de inquietação: (...) mal nos interessávamos por arte na minha casa (...) O gosto pela arte se aprende. Eu aprendi. Isso fez parte da reeducação quase completa de mim mesmo que me foi necessário realizar para entrar em outro mundo, em outra classe social – e para distanciar-me daquele e daquela de onde eu vinha. A transição do mundo idealizado para o mundo concreto nunca se realiza de modo pacífico. A compreensão parece fugir a cada instante. As mudanças no vocabulário e nas construções frasais, o vestuário, o conhecimento literário e musical, os amigos, tudo isso constitui parte do processo de adaptação para quem deseja se sentir partícipe do mundo almejado. Infelizmente, aquele que renega a suas origens, precisa conviver com a soma das contradições, que nunca estabelecem o ponto exato em que o indivíduo está situado. Além do aumento da aflição e da ansiedade, a sensação constante de que está traindo a si mesmo. “Você fala que nem um livro”, me disseram várias vezes na minha família para zombar desses novos modos, manifestando que sabiam bem o que significavam.        

O desassossego se acentuou mais tarde quando a sua família trocou a lealdade ao Partido Comunista pelos movimentos de direita e extrema-direita. Para quem fez parte da militância estudantil e universitária qualquer passo atrás nas conquistas sociais não era coerente. Didier foi incapaz de entender que os operários estavam cansados das promessas de uma vida melhor e que nunca se concretizavam. Além disso, os movimentos políticos da esquerda sofreram uma série de mutações – que se intensificaram com o passar do tempo: a pretexto de renovar o pensamento de esquerda, trabalhavam para apagar tudo o que fazia da esquerda a esquerda. (...) Não se falava mais de exploração e resistência, mas de “modernização necessária” e “reformulação social”; não mais de relações de classe, mas de “conviver”; não mais de destinos sociais, mas de “responsabilidade individual”. A noção de dominação e a ideia de uma polaridade estruturante entre os dominantes e os dominados desapareceram na paisagem política da esquerda oficial, em prol da ideia neutralizante de “contrato social’, de “pacto social”. Essa posição política se aproxima perigosamente do pensamento reacionário, aquele que dita que os interesses particulares sejam esquecidos (isto é, a calar-se e deixar os governantes governarem como bem quisessem). Nesse sentido, o desejo de diluir as fronteiras conflitantes entre a direita e a esquerda pode ser interpretado como um mecanismo que favorece o controle socioeconômico e, simultaneamente, não permite espaço para qualquer tipo de contestação.

Infelizmente, na atualidade (talvez desde sempre), a esquerda mundial vive uma crise de identidade. Parece estar perdida em um mundo em transformação. Enquanto isso, o liberalismo, ou melhor, o capitalismo vai se tornando hegemônico. Esse cenário influencia, evidentemente, as relações de trabalho, que manipulam os indivíduos como se fossem peças descartáveis.        

A xenofobia aparece como outro tema significativo, mas intrinsecamente relacionado com as mudanças políticas: Durante os anos 1960 e 1970, o discurso dos meus pais, e sobretudo da minha mãe, já misturava duas formas de divisão entre “eles” e “nós”: a divisão de classe (os ricos e os pobres) e a divisão ética (os “franceses” e os “estrangeiros”). O colonialismo costuma negar os danos causados aos países que foram explorados. Tampouco aceita que parte da população espoliada queira se incorporar ao sistema do opressor. O nacionalismo ambiciona se eximir da responsabilidade política. 

A vida intelectual nem sempre é bela de perto. A realidade não corresponde em nada à visão idealizada que podemos ter quando desejamos dela fazer parte. É com esse pensamento brutal que Didier percebe que, além de resistência, resiliência e coragem, precisa acrescentar outros itens à bagagem de quem decide abandonar as suas raízes (sua cidade, sua família) e fundar uma nova identidade. Nem todos conseguem.             

Voltar à Reims, a cidade onde nasceu, ou ir até Muizon (local da última residência dos pais), constitui uma forma de reeducação sentimental. É conversando com sua mãe, imerso em lembranças, que se aproxima do passado e passa a refletir mais intensamente sobre o presente. Escrever é o primeiro passo para voltar para casa.

 

Didier Eribon

 

TRECHO ESCOLHIDO

Depois de ter sido faxineira durante muito tempo, ela parou de trabalhar quando meu irmão mais novo nasceu, em 1967. Não durou: coagida pela pressão econômica, ela teve de conseguir um emprego e foi então labutar oito horas por dia em uma fábrica – passei ali um mês durante as férias de verão depois dos exames do fim do liceu e pude constatar qual era a realidade de uma “profissão” daquelas – para que eu pudesse assistir às aulas sobre Montaigne e Balzac no liceu ou, uma vez na universidade, ficar trancado durante horas no quarto para decifrar Aristóteles e Kant. Enquanto ela dormia à noite para levantar às quatro horas da manhã, eu lia até o amanhecer Marx e Trótski, depois Beauvoir e Genet. Só posso aqui retomar a simplicidade com que Annie Ernaux exprime, ao falar de sua mãe que mantinha uma pequena mercearia de bairro, a brutalidade dessa verdade: “Eu estava segura de seu amor e dessa injustiça: ela servia batatas e leite de manhã a noite para que eu ficasse sentada em um anfiteatro ouvindo alguém falar de Platão”. Quando a vejo hoje, o corpo prejudicado pelas dores ligadas à dureza das tarefas que ela cumpriria durante quase quinze anos, de pé numa linha de montagem em que tinha de rosquear tampas em frascos de vidro, com o direito de se fazer substituir dez minutos pela manhã e dez minutos à tarde para ir ao banheiro, fico espantado com o que a desigualdade social significa concretamente, fisicamente. E mesmo a palavra “desigualdade” me parece um eufemismo que não apreende aquilo de que se trata: da crua violência da exploração. Um corpo de operário, quando envelhece, mostra a todos os olhares qual é a realidade da existência de classes. (p. 62).     


sábado, 7 de dezembro de 2024

OS LIVROS E AQUELES QUE QUEREM CANCELÁ-LOS




Um dos grandes pecados que envolvem a literatura encontra-se na confusão entre a narrativa e o escritor. Muitas vezes aquele que escreve acaba sendo confundido com o texto publicado.

Explico. Ezra Pound, Louis-Ferdinand Céline, Pierre Drieu de La Rochelle, entre outros, eram fascistas. No entanto, escreveram romances e estudos teóricos de importância fundamental para a literatura. Recusar, ou melhor, cancelar esses trabalhos significa ignorar que o/a escritor/a é, em primeira instância, um ser humano – portanto, passível de escolhas éticas e morais. Decretar juízo de valor sobre a história pessoal do/a sujeito/a constitui um rebaixamento inapropriado, pois quer medir a qualidade literária com a régua do politicamente correto. E isso não é justo – nem com aquele que escreve, nem com o texto produzido.     

William Burroughs matou a esposa acidentalmente – o filósofo Louis Althusser também fez isso; Ernest Hemingway (Prêmio Nobel de Literatura, 1954) e Charles Bukowski, além de alcoólatras, eram machistas; Vidiadhar Surajprasad Naipaul (Prêmio Nobel de Literatura, 2001) era uma pessoa detestável sob diversos aspectos; Dostoiévski, além de alcoólatra, tinha problemas com jogos de cartas e roleta. Monteiro Lobato era racista; O Marquês de Sade cultivava com esmero incontáveis desvios sexuais; Philip Kindred Dick tinha esquizofrenia; James Joyce costumava pedir dinheiro emprestado e nunca devolvia; Anne Sexton, Sylvia Plath, Virgínia Woolf e Alejandra Pizarnik eram maníaco-depressivas e se suicidaram; a inimizade entre os irmãos Heinrich e Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929), Lawrence e Gerald Durrell ultrapassava as fronteiras do bom comportamento; Jack Kerouac era viciado em anfetaminas.

A lista dos/as escritores/as defeituosos se prolonga na direção do infinito. Mas nenhum desses desvios de conduta desmerece o trabalho literário. Deixar de ler um livro por qualquer motivo que não seja as deficiências do próprio livro constitui um sacrilégio e uma prova cabal de miséria intelectual.

As áreas que podem determinar a qualidade de um texto são, em última instância, a crítica literária e o gosto pessoal. Ao lado dos critérios técnicos (que podem estabelecer um grau de avaliação para os inúmeros elementos que compõem a obra), as preferências do leitor ajudam a determinar se uma narrativa deve ou não integrar o cânone. Com a prerrogativa de que esses critérios podem ser alterados na semana seguinte. 

Trocando em miúdos: os instrumentos de análise são subjetivos e podem ser contestados a qualquer momento. O gosto e as listas precisam ser mutáveis (conforme a experiencia vai sendo produzida, os parâmetros estéticos podem evoluir ou regredir). A literatura não precisa estabelecer algum tipo de ordem definitiva (melhor ou pior) ou garantir que o leitor não terá decepções; o que ela almeja é o constante diálogo entre o/s livro/s e o leitor. Disso deve resultar a fruição do texto. Elementos externos e a vida pessoal do escritor não representam um acréscimo ou um demérito na produção literária. 

O leitor se apaixona pelo livro – o escritor é apenas um instrumento dessa ação.

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

A ESTÉTICA, SEGUNDO O MANIFESTO FUTURISTA

 


A crise estética está instalada. E isso não é nenhuma novidade. Novas avaliações sobre alguns conceitos sociais, baseadas na fluidez da modernidade, forneceram um afastamento radical do pensamento clássico – aquele que pretendia imitar a beleza grega. Um dos primeiros sinais dessa mudança apareceu no Manifesto Futurista, de 1909, proposto por Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944) e outros escritores italianos. Ao glorificar o progresso e as máquinas de guerra (... um automóvel rugidor, que corre sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia), instituíram um novo olhar sobre a arte e a sociedade.

A proposta dos futuristas determinou que a hostilidade acrescenta valor ao objeto artístico. Sem o mínimo constrangimento, declararam: Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. Com esse pensamento impactante ficou estabelecida a eliminação sumária das paisagens pastoris, das cenas do cotidiano urbano, dos retratos familiares, da poesia lírica, da música intimista, das esculturas ornamentais. Para que isso se efetive urge destruir os museus, as academias de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.  

O fascismo encampou (e se encantou com) esse tipo de proposta. A ideia de instituir uma nova ordem estética (Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível?) sempre fascinou os que são contra a democracia, os que se julgam excluídos pelo Sistema, os que defendem os privilégios da burguesia, a masculinidade tóxica, os que querem criar o caos, os que empunham as picaretas, os machados, os martelos e destroem sem piedade o passado histórico.

Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher, defende o Manifesto Futurista, imaginando que, depois do fim do mundo, e a sua consequente "higienização", virá a redenção espiritual e política. Inclusive porque quer estabelecer "o lugar correto" para cada um dos atores nessa sociedade renovada. Caberá aos profetas do Apocalipse explicar esse dogma às multidões, declarando que, depois das mudanças, a corrupção será extinta, os pecados desaparecerão e a meritocracia dará a cada um o seu valor – religiosamente. Nenhuma surpresa: as ruas estão repletas de indivíduos que não conseguem encontrar o óbvio, apesar de tropeçarem nele a todo instante.

A contradição é uma das partes do motor que move o irracionalismo. Na tentativa de encontrar uma saída da mediocridade a que acreditam estar condenados, os desesperados se agarram em qualquer ideologia. E, sem refletir sobre o que isso pode afetar o coletivo, propõem outras regras para um velho jogo: Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas forças neste eterna e inútil admiração do passado, do qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados? Arauto da estética da destruição, o Manifesto Futurista finge estar livre das estruturas sócio-políticas vigentes. E segue em frente sem estabelecer qualquer tipo de correlação com o presente ou com o futuro.

Embora tenha mais de um século de existência, o Manifesto Futurista continua atual. Alguns ciclos nunca terminam. Entram em estado de hibernação. E, um dia, por algum motivo, voltam a assombrar. A autofagia é um vício inesgotável.  

   

Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944) 




quinta-feira, 14 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI

 


As tragédias se repetem como se fossem fatos novos porque poucos reconhecem a relação entre o que passou e o que está acontecendo. Recuperar alguns fatos soterrados nos escombros do esquecimento pode determinar que o futuro não será construído pela escuridão que acompanha a ignorância. Mas, contemporaneamente, essa tarefa não se mostra fácil. Os mecanismos de embotamento intelectual estão cada vez mais sofisticados. A multiplicação de mentiras através das redes sociais, a ausência de reflexão crítica, o negacionismo, o populismo político – são muitos os fatores que impedem que a coerência se estabeleça como um dos elementos de análise.

O tempo narrativo do filme Ainda estou aqui (Dir. Walter Moreira Salles Júnior, 2024), baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, está situado nos anos 70 do século XX. O trabalho da equipe de cenografia, que reconstruiu a casa e o ambiente daquele tempo  um mundo que só existe no passado  –, se aproxima da perfeição. 

A nota imperfeita está na repressão militar. Os sequestros de vários diplomatas estrangeiros serviram de desculpa para que o governo começasse uma série de prisões indiscriminadas, visando descobrir quem estava apoiando os grupos armados de resistência ao regime ditatorial. Várias pessoas desapareceram, depois que foram presas, interrogadas e torturadas. Entre elas, o ex-deputado federal Rubens Paiva.

A luta de Eunice (Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva) para tentar encontrar o marido (e sustentar os cinco filhos) constitui a espinha dorsal do filme. Com o desaparecimento de Rubens, o mundo familiar desmorona. Para complicar, Eunice e uma das filhas, Eliana, são levadas para prestar declarações. Os órgãos de repressão querem obter informações – que elas não podem fornecer. A menina é libertada no dia seguinte. Eunice permanece detida quase duas semanas.

O momento em que Eunice depois que volta para casa, e toma banho, constitui uma das cenas mais emblemáticas. Ao limpar a sujeira corporal, quer expurgar o abjeto, os resíduos da barbárie. No entanto,  esse instante particular está longe da questão concreta: o horror patrocinado pelas forças armadas continuou até 1985. E a certidão de óbito de Rubens só foi concedida pelo governo em 1996.  

A presença do exército e da aeronáutica em todos os lugares, o enterro do cachorro (que foi atropelado), a interdição aos jogos de vôlei na praia, a falta de sensibilidade do gerente do banco, despedir a empregada, as cartas da filha que está em Londres, a mudança para São Paulo – o filme está repleto desses pequenos acontecimentos. São fragmentos humanos, conduzidos com leveza e intensidade, e que fogem do melodrama ao mesmo tempo que causam empatia no espectador. 

O filme também cumpre com as expectativas de mostrar a violência, embora alguns espectadores reclamem da ausência de ação (segundo o padrão do cinema estadunidense). Salvo uma ou outra cena, a escolha de um andamento narrativo lento contempla uma melhor definição dos personagens e das emoções. Nada do que está inscrito fora da esfera doméstica serve de dispersão. Por isso, o campo de visão proposto pelo roteiro está limitado ao núcleo familiar e à ausência de Rubens   sempre presente.

A excelente atuação de Selton Melo e Fernanda Torres adiciona qualidade e segurança ao enredo – que termina com a imagem da magistral Fernanda Montenegro (sem emitir uma palavra, a tela iluminada por sua presença).   


Walter Moreira Salles Júnior





P.S.: Para quem quiser ver filmes com tema similar: Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (Dir. Emir Kustorica, 1985) e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Dir. Cau Hamburger, 2006). 

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

SOBRE ÉDOUARD LOUIS

 


O escritor Édouard Louis (nascido Eddy Bellegueule), 32 anos, passou pelo Brasil como se fosse um furacão. Esteve em Paraty, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi entrevistado pelo programa Roda Vida (Tv Cultura) e reverenciado em um artigo na revista Piauí nº 217, além de ser citado em reportagens da imprensa escrita, falada e televisionada. Enfim, não faltaram homenagens e publicidade.

Imediatamente surgiram experts na obra literária do francês. Difícil acreditar nesse fenômeno, exceto pelas exceções de sempre. Difícil acreditar que um escritor combativo – em tudo oposto ao bom mocismo que impera na literatura brasileira – tenha despertado a consciência crítica da crítica sem consciência que costuma vicejar em Pindorama. Talvez seja um desses acontecimentos ligados às projeções do desejo de louvar em terras outras o que aqui ninguém quer plantar. O popular complexo de vira-latas.    

Quem, entre os que aqui estão, costuma nomear os artífices do mal nos esquemas de poder? Quem utiliza a denuncia como uma ferramenta literária? Quem deixa de lado o medo e utiliza – de forma objetiva – o binômio política e literatura em uma narrativa? Meia dúzia, se não for menos. Normalmente, essas publicações estão escondidas no catálogo de editoras quase desconhecidas e raramente conseguem ser indicadas na mídia (que precisa atender os interesses de quem paga para perpetuar as relações de poder).

Ah, isso é um exagero, diriam os humilhados e ofendidos. E rebatem a questão dizendo que o fulano faz isso; o sicrano também. Sei... Pois o que se vê é que esses sujeitos são os reis das figuras de linguagem, uma metáfora aqui, uma elipse ali, uma alusão acolá. Ninguém atinge o cerne. Ninguém quer colocar em risco a carne, o sangue, os ossos. Então, o que produzem são aqueles dilemas da classe burguesa que sofre de amores não correspondidos e que emulam uns aos outros na tentativa de produzir um motocontínuo de sensibilidade e paixão.

Édouard Louis, ao contrário, contou, em O Fim de Eddy (São Paulo: TusQuets, 2018), o horror que é ser homossexual em um grupo social precário, violento e preconceituoso. Em História da Violência (São Paulo: TusQuets, 2020), narrou o dia em que foi estuprado. E nem nenhum momento omitiu as palavras necessárias para descrever a ignomínia. Em Quem Matou Meu Pai (São Paulo: Todavia, 2023), relacionou os últimos presidentes da república francesa, os primeiros-ministros e seus respectivos ministros das finanças. Foram esses políticos, defensores do neoliberalismo, que debilitaram a vida dos aposentados, levando-os à miserabilidade. 

Ah, mas ele não escreve com elegância, apontam os estetas literários. Sim, isso ele não faz. Mas, será isso importante em um escritor que adotou a tradição francesa do intelectual que interage com a sociedade, e que segue os passos de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Simone de Beauvoir, Roland Barthes, entre outros? Será que devemos deixar de lado algumas questões apenas porque a linguagem utilizada não é agradável? Será que ficamos incomodados quando Édouard Louis aponta para o autoritarismo e para a desigualdade econômica que reveste o capitalismo contemporâneo? Será que ficamos constrangidos quando encontramos alguém que aborda alguns problemas que não temos coragem de enfrentar?        

Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat / – Hypocrite lecteur, – mon semblable, – mon frère!, escreveu Charles Baudelaire, como uma advertência para aqueles que preferem conviver com o monstro do que o combater. Claro, poucos tem o perfil de Perseu. É mais fácil desdenhar aqueles que decidiram enfrentar a Medusa.