Páginas

segunda-feira, 14 de abril de 2025

MARIO VARGAS LLOSA

 


São seis os ganhadores latino-americanos do Prêmio Nobel de Literatura: Gabriela Mistral (pseudônimo de Lucila de Maria del Perpétuo Socorro Godoy Alcayaga), 1957; Miguel Ángel Astúrias Rosales, 1967; Pablo Neruda (pseudônimo de Ricardo Eliécer Neftali Reyes Basoalto), 1971; Gabriel José Garcia Márquez, 1982; Octavio Paz Lozano, 1990; Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, 2010.

O último nome da lista dos agraciados com a honraria (e o dinheiro) faleceu em Lima, Peru, no dia 13 de abril de 2025. Tinha 89 anos. O axioma machadiano, Está morto. Podemos elogiá-lo à vontade serve perfeitamente para entender as múltiplas manifestações de pesar.

As redes sociais estão vertendo lágrimas. É como se um rio Amazonas de dor estivesse atravessando a vida de leitores, editores, familiares e admiradores. Um desses fãs (espanhol, se não estou enganado), pediu para que não se misture vida e obra, política e literatura. É difícil fazer essa separação. Inclusive porque o escritor é a mesma pessoa que se manifestou ideologicamente na manutenção do colonialismo capitalista de extrema direita nos países de América Latina. De qualquer forma, independente de absolver ou condenar o escritor, assim como Ezra Pound (1885-1972), Pierre Drieu La Rochelle (1893-1945) e Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), o nome de Vargas Llosa sempre será lembrado pelo caminho que preferiu trilhar nas questões econômicas e políticas. A história não perdoa certas escolhas.     

Alguns dos livros de Vargas Llosa são maravilhosos: Tia Julia e o escrevinhador (uma das narrativas que mais me divertiram em toda a minha vida de leitor), A festa do bode (fantástica denúncia sobre a ditadura na República Dominicana), Pantaleão e as visitadoras (sátira brilhante sobre o militarismo e o machismo latino), Conversas no Catedral (um painel da vida burguesa em Peru nos anos 50/60), A cidade e os cachorros (alguns adolescentes em uma academia militar), A guerra do fim do mundo (uma recriação da Guerra de Canudos), Casa verde (o submundo da prostituição analisado pelo microscópio literário). Soma-se a esses romances um ensaio, A orgia perpétua, onde disseca a obra de Gustave Flaubert (1821-1880), apontando a força transformadora da ficção.

O talento literário não impediu certas aventuras. Há uma história muito mal explicada com Gabriel Garcia Márquez, onde os contendores (que antes eram inseparáveis) foram às vias de fato. Alguns boatos citam um episódio extraconjugal, mas ninguém confirma. De qualquer forma, a vida amorosa de Vargas Llosa parece ter sido intensa, com direito a eventos rocambolescos, que resultaram em ameaças de maridos enfurecidos, entre outras peripécias.

Em 1990, Vargas Llosa não conseguiu controlar a vaidade e concorreu à presidência de Peru. Embora tenha vencido no primeiro turno, perdeu na segunda fase eleitoral para Alberto Kenya Fujimori (1938-2024). Essa experiencia (da qual se arrependeu) serviu de base para o romance Cinco esquinas, onde relata a corrupção governamental e a violência produzido pelo Sendero Luminoso, grupo guerrilheiro peruano de inspiração maoísta.

Desgostoso, mudou-se para a Europa em 1993, depois de obter a cidadania espanhola. Em 2011, foi nomeado por Juan Carlos I, rei de Espanha, 1º Marquês de Vargas Llosa.

Quando surgiram notícias, em 2021, do esquema fraudulento Pandora Papers, descobriu-se que Vargas Llosa estava entre aqueles que visavam, entre outras coisas, sonegar impostos. Como compete nessas situações, declarou que nunca tentou fraudar o fisco. Mas, diante das acusações, confirmou a existência de uma offshore.

Vargas Llosa foi o último dinossauro de uma geração talentosa. O titulo de seu último livro é premonitório: Dedico a você meu silêncio.  


Vargas Llosa e Garcia Márquez

P.S: Alguns dos livros de Vargas Llosa foram adaptados para o cinema (Pantaleão e as visitadoras, Tia Julia e o escrivinhador, A cidade e os cachorros, A festa do Bode, etc.). São filmes ruins. 


terça-feira, 8 de abril de 2025

TEORIA DO MEDALHÃO

 


Um dos contos de Machado de Assis, Teoria do Medalhão, originalmente publicado em 1881, no jornal Gazeta de Notícias, e que integra o livro Papéis Avulsos, de 1882, pode ser lido como um manual de instruções para o arrivismo. 

Um pai, ao comemorar o aniversário de maioridade do filho, Janjão, o instrui sobre como se comportar nos negócios e na vida social. Diz o pai: o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. No entanto, os conselhos paternos vão exatamente na direção contrária. Solicita a contenção dos arroubos da juventude, sugere ater-se às superficialidades da moda, e, na área do entretenimento, salutar é praticar o brilhar, o voltarete, o dominó e o whist. Estar perto de personalidades importantes, além de frequentar ambientes refinados, são estratégias de valiosas. Mas, sem se comprometer, sem causar alvoroço, sem chamar a atenção para os extremismos. Como as trivialidades são o tempero das conversas sociais no trabalho, nas festas ou com os amigos: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer cousa. Nesses encontros, uma questão fundamental é o cuidado no uso do vocabulário: há que ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... Mas sempre atento a uma singularidade: o adjetivo é alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. Deve-se afastar dos substantivos, das coisas concretas, dos horrores da vida.       

Pedagogicamente, o pai destaca: Melhor do que tudo isso, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustradas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Por isso convém, nas mais diversas circunstâncias, para compor uma camada de verniz intelectual, citar alguns brocados latinos ou aludir a alguma figura mitológica. Com esse proceder estabelece-se a arte difícil de pensar o pensado (uma forma de fugir dos assuntos complicados, que exigem uma opinião comprometedora).  

Quando o pai faz a apologia da publicidade, a arte de conquistar a simpatia e o carinho das pessoas, instrui que é de bom-tom presentear com pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Ou seja, está propondo que a escalada do sucesso passa por ações inócuas, porém emocionalmente eficazes. Em casos mais expressivos, deve-se convidar os amigos e camaradas para algum jantar. Esse tipo de benevolência chama a atenção: Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome antes os olhos do mundo. Em alguns momentos, cabe fazer chegar aos jornais alguma nota sobre os últimos acontecimentos (obviamente, redigida de próprio punho ou sob incumbência de algum amigo ou parente).   

São lições da mais alta sabedoria para sobreviver em um mundo competitivo e pouco atento às artimanhas de quem nada acrescenta, mas que aparenta ser um espécime da mais fina estampa. Aos que perseveram nessa tarefa longa e muitas vezes estafante, que é obter a distinção social, arremata, dizendo ao filho: (...) felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas.   

No momento em que a política for uma possibilidade, há que se tomar certo cuidado: Toda questão é não infringir as regras. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano. Os partidos são molduras e nada mais que isso. Por isso, na escolha dos discursos, tens à escolha: – ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. (...) Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforges da memória. 

Uma última lição: Somente não deves empregar a ironia, esse movimento de canto de boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios.

Ao se despedir do filho, o pai arremata a conversa de forma lapidar: Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli.

Na arte de iludir, nenhuma tática pode ser desprezada, todos os artifícios são válidos. Em diversos momentos, o pai salienta que a regra de ouro da notoriedade social está em impedir que as pessoas (inclusive o filho) possam pensar por conta própria. As banalidades, os clichês, os pequenos subornos – com essas armas institui-se o diversionismo, momento ideal para que, através da chalaça, tudo se mostre divertido, apenas uma grande brincadeira. Sic transit gloria mundi.  


Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

P.S: A ironia, esse chicote que estala no lombo dos idiotas, é uma das marcas registradas do Machado de Assis. Quem não entender essa chave de leitura, deve dispensar a Teoria do Medalhão e, quiçá, se dedicar aos livros de autoajuda. 

quinta-feira, 3 de abril de 2025

PERDAS

 


No poema One art, Elizabeth Bishop (1911-1979) escreveu que The art of losing isn’t hard to master / (...) / though it may look like (Write it!) like disaster, versos que podem ser traduzidos informalmente como A arte de perder não é um mistério / (...) / por mais que pareça (escreva isso!) um desastre.

Lembrei-me desses dois versos do poema alguns anos atrás, quando minha mãe (que faleceu em 2021), precisava fazer prova de vida no INSS. Ou seja, tinha que convencer o governo de que não estava morta. Ocorre que, naquele momento, o seu estado de saúde era precário e o bom senso recomendava procurar por alternativas para cumprir com a formalidade burocrática.

Liguei para o número telefônico 135 – conforme me foi recomendado na instituição bancária onde ela recebia o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Depois da inevitável espera, a máquina que me atendeu (é sempre uma máquina!) solicitou o número do Cadastro de Pessoa Física (CPF) da requerente e informou que deveria selecionar o tipo de atendimento desejado (números entre 1 e 9). Não tinha em mãos essa informação. Desliguei e fui procurar pela Carteira de Identidade (também conhecida como Registro Geral  RG) da mãe. Lá consta o número do CPF.

Não encontrei. Revirei pastas e caixas de sapato onde guardo as quinquilharias familiares. Não sei o que a cédula identitária estaria fazendo naqueles lugares, mas revisitei vários álbuns de fotografias. Isso provocou muitas lembranças, assombros que costumam me incomodar. Fingi que não era comigo, o que queria era encontrar o documento. Esvaziei duas gavetas – foi bom fazer isso, coloquei em um saco de lixo centenas de comprovantes de pagamentos bancários e alguns panfletos comerciais; papéis inúteis que estavam fazendo volume e tinham perdido a utilidade.

Cansado, sentei no sofá do escritório e fiquei olhando para os livros emparedados nas estantes. Quiçá poderiam fornecer alguma pista do documento desaparecido. Esforço inútil. Nenhuma possibilidade de encontrar o que estava procurando. E agora? Essa pergunta, misturando perplexidade e desespero, parecia não ter resposta.

Perder livros, documentos, chaves, cartão de crédito, dinheiro – tenho um dom natural para esse tipo de coisa. Se fosse contar quantas vezes isso aconteceu, escreveria um livro. Evidentemente, depois de algum tempo e grandes incômodos, me recuperei de quase todos os danos. Posso até dizer que o estrago foi mínimo. O que sempre me incomodou foi o correr atrás do prejuízo, o medo de estar diante de um beco sem saída.

Edgar Allan Poe (1809-1849) escreveu um conto mágico, A Carta Roubada. Várias pessoas procurando por algo que está diante dos olhos. É um caso clássico de cegueira coletiva, ninguém consegue enxergar a obviedade. De forma similar, foi o que aconteceu comigo. Em função de outras demandas, precisei separar uma série de notas fiscais relacionadas com os gastos da mãe (remédios, fraldas, compras de supermercado, recibos de aluguel, água e luz). Coloquei tudo dentro de um envelope. Junto com a papelada, a Carteira de Identidade.

Esse envelope estava o tempo todo na minha frente, em uma das estantes, a dos livros de História. Eu não fui capaz de o ver. Tampouco lembrei que havia incluído a CI naquele grupo de documentos. 

Ao alivio de encontrar a Carteira de Identidade, seguiram-se as inevitáveis confusões ao tentar agendar a prova de vida. Entretanto, isso é outra história.



Ilustração para o conto A carta roubada, de Edgar Allan Poe,
e atribuída a Frederic Theodore Lix (1830-1897)
ou Jean-Édouard Dargent (1824-1899).  


sábado, 22 de março de 2025

DOMESTICANDO A VIDA DOMÉSTICA

 

Olauro. Sem Título, 2023.
Exposição Coletiva Voo Livre
Galeria Lavandeira, UFPB


A lixeira do prédio foi o lugar mais longe que visitei naquele final de semana. Fiquei enclausurado no apartamento – por vontade própria. Deixar de lado a imensidão do mundo e estar comigo mesmo foi a proposta. Folga, fuga, evasão, trégua – não sei que nome se deve dar a esse momento. 

Exerci, pela manhã, as sagradas tarefas de dono de casa. Lavei a louça, uma pilha enorme, consequência do comer e beber durante os últimos dias. Sei que não devia ter deixado a sujeira tomar conta da pia. Pratos e talheres que não podem ser utilizados são uma espécie de insulto para os neuróticos por limpeza. No entanto, costumo ser tomado por um sentimento que sempre me pareceu qualidade: deixar para amanhã o que não quero resolver hoje. Em alguns momentos só lavo a louça quando a única alternativa disponível para continuar a baderna é comprar copos e pratos novos. Então, munido de pano de prato, esponja, detergente e coragem, vou à luta. E, milagre, naquela vez, não quebrei nada!

Aproveitei a disposição (não é todo dia!) e passei um pano molhado no chão da cozinha. Aquelas manchas fantasmas estavam lá de novo, a decorar o ambiente. Alguém me disse que é assim mesmo, ninguém consegue evitar, e que não é nada importante, apenas o resultado da fusão de um ponto de pó com a umidade. Parece haver lógica nessa tese, mas,... ¡No creo en brujas, pero que las hay, las hay!

Também fiz gelatina – framboesa. Quer dizer, era isso que estava escrito na caixa. Não descarto a hipótese das framboesas terem escapado antes da transformação em pó. Quando abri a geladeira, no dia seguinte, encontrei uma substância coloidal, de cor vermelha e sabor indefinido – que, como sempre, foi devorada vorazmente. Sim, eu sei, é difícil deixar de ser criança – inclusive estou planejando dar um passo além das minhas pernas: quero dominar a técnica de fazer gelatina colorida. Estou olhando uns tutoriais. Apesar das sacanagens (em diversos sentidos e direções), há coisas bacanas na Internet.   

Ainda sobre a limpeza do apartamento, deixei para trás uma tarefa importante: o micro-ondas. Esquentei um pedaço de carne e, como não tenho prática nesse tipo de atividade, provavelmente deveria ter usado algo que não usei, a gordura se espalhou pelo interior do aparelho. Toda vez que vou esquentar a água do chá, vejo aquilo e prometo limpeza completa, mas,... Aí, que preguiça!, exclama o Macunaíma que habita em mim! A solução neoliberal foi terceirizar essa atividade para a ilustre auxiliar para serviços domésticos.

No meio da tarde, fui tomado por fúria insana, parece que baixou em mim um santo escrevinhador. Escrevi quatro páginas sem precisar fazer esforço. Tinha que entregar o texto na semana seguinte e estava sem saber por onde começar. Felizmente, encontrei um tema e o encher linguiça ficou para outra ocasião, amanhã é outro dia. Evidentemente, vou ter que fazer o desbaste, acrescentar algumas coisas, cortar inúmeras frases e parágrafos e, como os deuses gregos recomendam, equilibrar o esqueleto narrativo. Com sorte e um pouco de magia, pode ser que fique aceitável. 

Depois, fui ver um pouco de televisão – que tem valor de um poderoso anestésico contra o estresse. Quer dizer, comigo funciona. Principalmente ser for alguma transmissão esportiva (exceção aos jogos do Santos). Basta olhar aquelas imagens durante alguns minutos e o sono surge quase imediatamente – como se fosse a boia de salvação do náufrago.  


terça-feira, 18 de março de 2025

NO MURO DA NOSSA CASA






Pensamos os muros como se fossem passivos.

Sem voz. Mas eles falam

 

Muitas histórias ainda precisam ser contadas sobre o período em que o Brasil esteve nas sombras. São essas sobras que estão vindo à tona, como aqueles cadáveres que a repressão política jogou no mar. Aos poucos, os depoimentos (nas versões dos sobreviventes, nas versões dos que foram torturados) vão sendo publicados, vão revelando a barbárie, a mesquinharia, o horror.

No dia 20 de dezembro de 1968, Cléa, uma das personagens de No Muro de Nossa Casa, de Ana Kiffer (Editora Bazar do Tempo, 2024), descobriu que alguém tinha escrito no muro em frente de sua casa, em letras vermelhas, aqui mora um bandido comunista. Grávida, ela passou parte da manhã apagando, com água e sabão, aquela sentença condenatória. Foi ajudada pelo cunhado, Lúcio.         

Muitos anos depois, cabe à filha, Ana, aquela que estava no ventre, estabelecer as bases de um diálogo com a mãe e relatar os principais fatos familiares e políticos daquele período de trevas. É uma conversa truncada, onde a voz que conta e a voz que lembra nem sempre estão na mesma sintonia. Nesses hiatos em que a mudez também se movimenta no texto, a correnteza arrasta as lembranças e tenta desaguar em algum tipo de acerto de contas.

Com uma linguagem que transita do poético ao descritivo realista, Ana não hesita em declarar o tratamento literário (calcado no real) do relato: Reescrevo sobre a verdade mentirosa dos muros com outra cor, com outra dor.  

O pai, ex-deputado federal, desaparecido (e, depois, preso), a mãe detida, os irmãos pequenos que não entendem porque a casa foi invadida pelos soldados, a violência contra o corpo das mulheres, os vizinhos que não querem se comprometer, a iniquidade produzida pelas sessões de tortura – cicatrizes que nunca serão esquecidas, que ardem a todo instante, companheiras do infortúnio. É difícil resumir as inúmeras questões que estão colocadas no texto.

Nessas memórias, Ana cava no âmago do sofrimento (ciente de que isso amplia a dor) e extrai o medo, a tensão, o silêncio e uma parcela narrativa. Sem esse esforço amargo não é possível recuperar parte da história de seus pais, de seu país. Então digo: mãe, este livro é o muro que reescrevemos juntas. Estamos colocando ali as letras que no passado você foi obrigada a apagar. Estamos colocando outras letras sobre essas. Estamos escrevendo sobre o muro. Com letra dura. Um murro, escrever é um soco.

No Muro de Nossa Casa descreve o quão difícil é a luta feminina, a resistência, o estraçalhar dos planos e a superação. Sobreviver é ignorar as palavras horrível que o machismo escreve diariamente na parede branca do muro. Sempre em letras vermelhas – para avisar que qualquer deslize resultará em sangue derramado. Sinto as suas mãos fortes. Brutas. Castigadas pelo trabalho de homem num corpo de mulher. Difícil ter um corpo de mulher. Tomo em minhas mãos as brutalidades sobre o seu corpo. Sobre o delas. Sobre o meu.     

Narrativa densa, com menos de 100 páginas, No Muro de Nossa Casa é um livro repleto de nuances, onde alguns acontecimentos estão subentendidos. São fatos bloqueados emocionalmente pela aflição, pelo suplício. Situações amputadas da memória. Não sentir mais. Não sentir mais é um desastre da violência.

Mãe, acho que esse livro é sobre um muro. Talvez sobre vários muros. Ainda hoje barrando e impedindo que um lado e outro se falem. Que alguns passem e outros não. Que muitos morram sobre e sob o muro. A maior parte de quem tenta transpô-lo também. É ainda sobre o muro da nossa casa. É sobre sobreviver expulso do próprio país.



Ana Paula Veiga Kiffer

quinta-feira, 13 de março de 2025

A LENDA DO SANTO BEBERRÃO

 


Andreas, algum tempo depois que saiu da prisão, vive nas ruas, muitas vezes bêbado. Essa é a base da novela A Lenda do Santo Beberrão (Estação Liberdade, 2013. Tradução de Mário Frungillo), do austríaco Moses Joseph Roth (1894-1939). 

Certo dia, Andreas foi abordado por um desconhecido que lhe oferece 200 francos. Tudo o que ele precisa fazer é devolver o dinheiro ao padre que tiver acabado de rezar a missa de domingo, na Igreja de Sainte Marie des Batignoles. Essa tarefa se mostra mais difícil do que era de se supor em um primeiro instante. Porque Andreas começa a gastar o dinheiro: comida, bebida, dormir em um hotel. Pequenos prazeres que pareciam perdidos.

A sorte lhe aparece outra vez quando lhe oferecem trabalho, mais 200 francos. Um amigo de infância lhe dá um terno novo. Tudo parece acenar para um desfecho satisfatório. No entanto, na medida em que as coisas parecem melhorar, o dinheiro também desaparece. São bebedeiras enormes, encontros sexuais, restaurantes, hotéis. Nos finais de semana, ele perde o início das missas. Enquanto espera pela seguinte, alguma coisa acontece e ele fica bêbado. Quando recupera a lucidez, tudo o que resta é deixar a solução do problema para o próximo domingo.

Em algum momento em que o dinheiro parece sobrar, Andreas compra uma carteira. Estranhamente, resolve não colocar o dinheiro nela. E assim vai vivendo, gastando o que tem no bolso, até o momento em que percebe que ficou sem condições de devolver os 200 francos iniciais. Paradoxalmente, a sorte surge outra vez: em um bolso interno da carteira, ele encontra uma nota de mil francos. Mas, outra vez, o destino conspira para novas repetições de uma história que se encaminha para não ter conclusão – tanto que, enquanto se dirigia para a igreja, um policial lhe entrega outra carteira, imaginando que Andreas havia perdido a sua. Dentro, várias notas de dinheiro, totalizando 200 francos.  

Na companhia de Woitech, um companheiro do tempo em que trabalhava como mineiro, Andreas toma várias doses de Pernod no bistrô próximo da Igreja. Estava aguardando pelo início da próxima missa, quando se sentiu mal. O delírio o faz pensar que uma menina que estava sentada em banqueta, próxima dele, é uma projeção de Santa Terezinha. E como não há nenhum médico e nenhuma farmácia nas vizinhanças, levam-no para a sacristia, pois os sacerdotes, afinal, entendem um pouco da morte e de morrer. Finalmente Andreas encontra uma maneira de resgatar a promessa que fez para aquele que lhe deu dinheiro na primeira vez. 

A lenda do Santo Beberrão possui características autobiográficas e deve ser lida como uma fábula sobre o quão mágico pode ser a vida daqueles que são marginalizados pela sociedade. O humor e a ironia, que estão nas entrelinhas do texto, estabelecem um paralelo entre as necessidades humanas e a simplicidade de quem gostaria de aproveitá-las sem algumas amarras. Ao esculpir literariamente um cenário lírico, ou seja, sensível, Andreas (ou Joseph Roth) defende – à sua maneira – a liberdade de ignorar as exigências de uma estrutura política moralista que, por diversos motivos, nunca esteve preocupada com o bem-estar da população.     


Moses Joseph Roth (1894-1939)

A lenda do Santo Beberrão foi adaptada pelo cinema: La Leggenda del Santo Bevitore (Dir. Ermanno Olmi, 1988), uma produção franco-italiana.  


Cena de La Leggenda del Santo Bevitore

terça-feira, 11 de março de 2025

A CARNE (um conto de Virgilio Piñera Llera)

 


Em um determinado país, em uma determinada época, está faltando alimentos – principalmente carne. Alguns protestos foram esboçados, mas logo perderam forças. O único que adotou uma posição efetiva diante da crise foi o senhor Ansaldo. Depois de afiar uma faca de cozinha, ele cortou um razoável filete da sua nádega esquerda. Limpou a carne e a temperou com sal e vinagre. Depois, fritou o pedaço de carne em uma grande frigideira. Quando se sentou à mesa para desfrutar do banquete, um vizinho surgiu. Ansaldo lhe mostrou a comida e explicou onde a havia conseguido. O vizinho foi embora e logo depois voltou com o prefeito – que cumprimentou Ansaldo por ter encontrado uma solução para o problema: Éste expressó a Ansaldo su vivo deseo de que su amado pueblo se alimentara, como lo hacia Ansaldo, de sus proprias reservas, es decir, de su propria carne, de la respectiva carne de cada uno.

Na praça principal do povoado, Ansaldo fez uma demonstração prática. Foi um glorioso espetáculo. E que resultou em alimentos para todos: algumas mulheres cortaram os seios, houve quem comesse os dedos, algumas pessoas provaram a própria língua ou os lábios – incontestes iguarias. Um dos homens mais gordos do povoado (e que era muito guloso) gastou toda a sua reserva de carne em quinze dias – o que causou o seu desaparecimento.

Outras pessoas não foram mais encontradas. Essas ausências provocaram angústia e algumas pessoas começaram a indagar sobre o que estava acontecendo. As autoridades, por fim, decidiram que não se deveria hacer más preguntas inoportunas, y aquel prudente pueblo estaba muy bien alimentado.       

A carne faz parte do volume Contos frios, publicado em 1956, e é um exemplo de uma literatura que transita entre o absurdo e a loucura, mas que tem como propósito principal propor a discussão política. É através da metáfora autofágica que Virgilio Piñera Llera (1912-1979) denuncia o descaso, por parte do governo, com as políticas de abastecimento alimentar. O corpo humano perde a sua essência e, reduzido ao status insólito do alimento, confirma que a vida não tem mais importância. Tudo se reduz ao tempo em que é possível sobreviver devorando a si mesmo. ¿De qué podría quejarse um pueblo que tenía asegurada su subsistencia?   

 

Virgilio Piñera Llera (1912-1979)


Salvo engano, foram publicados no Brasil apenas dois livros de Virgilio Piñera: Contos Frios (Iluminuras, 1989) e A Carne de René, que teve duas edições (Siciliano, 1990, e Arx, 2003). Também foram publicados, aqui e ali, em antologias, alguns contos.

Piñera precisou, durante toda a sua vida, lutar contra duas barreiras quase intransponíveis: a pobreza e a homossexualidade. E, como não poderia ser diferente, precisou pagar o preço exigido pela sociedade “normal”. No primeiro caso, passou fome na Argentina, onde fez algumas traduções e revisões para a embaixada cubana (1946-1958). Amigo de outro exilado, Witold Gombrowicz (1904-1969), foi elogiado por Jorge Luis Borges (1899-1986), além de outros intelectuais sul-americanos. Mas isso não diminuiu os seus problemas. Algum tempo depois da Revolução Cubana, em 11 de outubro de 1961, foi preso durante a operação policial denominada la noche de las tres pes (prostitutas, proxenetas e “pajaros” [homossexuais]), mas que visava retirar de circulação intelectuais, artistas, vagabundos, praticantes de vudu e qualquer pessoa considerada suspeita. Foi libertado no dia seguinte porque não ficava bem para o governo reprimir um escritor conhecido na comunidade latino-americana. Recebeu o Premio Casa de las Américas, em 1968, pela peça teatral Dos viejos pánicos – que só foi encenada em Cuba na década 1990. 


Virgilio Piñera Llera e José Lezama Lima


OBS: as citações no original espanhol foram extraídas de: PIÑERA, Virgilio. Cuentos completos. Ciudad de La Habana: Ediciones Ateneo, 2002.  

domingo, 9 de março de 2025

O PERIGO DE ESTAR LÚCIDA

 


Em tempo pretérito, quando fui professor de literatura em uma universidade particular, comecei a preparar um curso que comparava literatura e loucura. Por motivos extracurriculares a ideia não se concretizou. A ementa relacionava Maura Lopes Cançado (O hospício é deus, Editora Relicário, 2015), Lima Barreto (Diário do hospício e Cemitério dos vivos, Editora CosacNaify, 2010), Carlos & Carlos Sussekind (Armadilha para Lamartine, Editora Brasiliense, 1991), Machado de Assis (O alienista, Editora Vozes, 2016), Michel Foucault (História da Loucura, Editora Perspectiva, 2014), Antonin Artaud (A perda de si: cartas de Antonin Artaud, Editora Rocco, 2017), além de outras referências ficcionais e teóricas sobre o assunto.

A leitura recente de O perigo de estar lúcida, da escritora espanhola Rosa Montero (Editora Todavia, 2023), mostrou que o caminho escolhido não estava errado, porém diversos atalhos tinham sido ignorados. Essas alternativas – se fossem levadas em consideração – poderiam conduzir para paisagens de belezas insuspeitas (impossíveis de serem visualizadas se fosse escolhida outra direção).    

Não importa o quão maluco você pareça: sempre há um punhado de gente no mundo que sente, pensa e age como você, afirma Rosa Monteiro, estabelecendo um diagnóstico (baseado na própria experiência). Ou seja, todos os indivíduos podem, em algum momento, serem contemplados com "a sorte grande" e perder a compreensão sobre o que está acontecendo ao seu redor.

A perda da lucidez (a perda da luz) ocorre de diversas formas. E resulta, em casos extremos, na depressão e/ou no suicídio. Não há um procedimento para a prevenção de acontecimentos que estão sintonizados em outra faixa de entendimento social. A normalidade é só uma convenção (como comprovou Simão Bacamarte) e raras são as situações em que é possível distinguir entre a excentricidade e a alienação. Muitas ilusões de ótica resultaram em prejuízos irrecuperáveis. Em outros tempos várias pessoas com supostos problemas mentais foram “domesticadas” com choques elétricos – o que, atualmente, é considerado uma violência degradante.    

Também não é possível ignorar aqueles que destoam do senso comum porque estão à procura dos paraísos artificiais (álcool, maconha, cocaína, etc.). As questões médicas, a legislação penal e as ações políticas e religiosas moralistas costumam entrar em conflito e o resultado inevitável é em desfavor daqueles que estão em situação econômica mais frágil. A estrutura social repressora é incapaz de analisar caso a caso – prefere instituir regras de validade coletiva.    

Rosa Montero, puxando a brasa para a sua sardinha, focaliza os suspeitos de sempre. Os artistas parecem ter um alvo nas costas. Dionísio, o deus grego das festas, do vinho, também rege a loucura – e isso explica muitas coisas, inclusive a existência de uma linha tênue que une a alegria com o delírio. A quantidade de escritores, pintores, músicos, etc., que, em algum momento, por diversos motivos, mergulharam no abismo, parece sinalizar que a crise não está distante desse povo.

Talvez seja essa uma explicação razoável para que o duplo seja um dos mais relevantes temas artísticos. Em algum momento, aquele que sou eu, sem ser eu, surge em cena e faz aquilo que eu, sendo eu, não seria capaz de fazer. O poeta é um fingidor, cravou Fernando Pessoa, ciente de que escrever, pintar, cantar, atuar, esculpir, filmar são apenas versões desse eu que se fragmentou. Em outras palavras, sem essa multiplicação do indivíduo seria impossível manter a sanidade. O eu é um movimento na multidão, escreveu Henri Michaux. Em versão ao sul do Equador, Mário de Andrade completou: Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta / mas um dia afinal eu toparei comigo... O artista é esse que se desdobra para não ver a própria face no espelho da vida, ou seja, para não enlouquecer. O mesmo se pode dizer sobre a figura do impostor, esse ser que quer ser o outro porque não está contente em ser quem é. Ao assumir a máscara daquele que idealiza, imagina que se transformou no objeto do desejo, como se isso, a impostura, fosse capaz de inibir as suas próprias deficiências e incorporar as qualidades que imagina existirem no outro. Quando percebe que essa meta é imaginária, só lhe sobra a perda da razão.   

Rosa Montero, em O perigo de estar lúcida, levanta questões importantes sobre a fragilidade humana e o esforço que é feito para estabelecer barreiras de proteção para a criatividade, considerando as inúmeras atrações na direção da escuridão.  

 


Rosa Montero

terça-feira, 4 de março de 2025

UM OSCAR PARA O BRASIL

 


Ainda estou aqui (I'm still here, em inglês) recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Essa é a maior conquista da história da indústria cinematográfica brasileira e servirá de alavanca para que outras produções nacionais possam obter visibilidade mundial.

Na longa lista de filmes que concorreram na categoria Melhor Filme Estrangeiro, apenas quatro representantes da América do Sul conseguiram a estatueta: em 1986, La historia oficial (A história oficial. Dir. Luis Puenzo, 1985 – Argentina); em 2010, El secreto de sus ojos (O segredo de seus olhos. Dir. Juan José Campanella 2009 – Argentina); em 2019, Una mujer fantástica (Uma mulher fantástica. Dir. Sebastián Lelio, 2018 – Chile) e, em 2025, Ainda estou aqui (Dir. Walter Salles, 2024 – Brasil).

Acrescente-se que o músico argentino Gustavo Alfredo Santaolalla obteve dois Oscar na categoria Melhor Trilha Sonora Original: em 2005, por Brokeback Mountain (Dir. Ang Lee, 2004), produção estadunidense, e, em 2006, por Babel (Dir. Alejandro González Iñárritu, 2005), produção mexicana e estadunidense.

Além das fronteiras territoriais, quatro filmes “quase brasileiros” foram premiados: 

a) Orphée Noir (Orfeu negro. Dir. Marcel Camus, 1959), produção ítalo-franco-brasileira, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1960; 

b) Kiss of the spider woman (O beijo da mulher aranha. Dir. Hector Babenco, 1985), produção estadunidense e brasileira, Oscar de Melhor Interprete Masculino para Willian Hurt; 

c) Howards End (O retorno a Howards End. Dir. James Ivory, 1992), produção britânica e japonesa, Oscar de Melhor Direção de Arte (atualmente denominado de Melhor Design de Produção) com Luciana Arrighi (que nasceu no Rio de Janeiro, em 1940); 

d) em 2005, a canção Al otro lado del rio, do uruguaio Jorge Abder Drexler Prada, que integra o filme Diarios de motocicleta (Diários de motocicleta. Dir. Walter Salles, 2004), produção franco-germana-brasileira-chilena-argentina-estadunidense, venceu na categoria Melhor Canção Original.

E, salvo engano, isso é tudo o que temos ao sul da floresta amazônica. É pouco, mas convém lembrar que o Oscar tem como prioridade dar visibilidade para a cinematografia estadunidense. E que a categoria Melhor Filme Estrangeiro é uma espécie de concessão para que o resto do mundo se sinta incluído na festa que é deles, para eles e que, como compete aos anfitriões, somente aceita uns poucos e seletos convidados.

Para obter uma premiação importante como o Oscar é preciso entender que são necessários muitos investimentos. O cinema é uma forma artística que custa muito dinheiro. Ninguém sabe exatamente qual foi o orçamento total de Ainda estou aqui. Estima-se US$ 1,5 milhão (dependendo do câmbio, mais ou menos R$ 9 milhões). Mas, esse número parece fora da realidade e há quem aposte em valores próximos dos R$ 50 milhões (incluindo os custos de marketing e a campanha de visibilidade do filme junto ao colégio eleitoral do Oscar). Os maiores gastos foram feitos com a direção de arte (recriação de época) e a filmagem em 35mm (sem o uso de câmeras digitais). O filme ficou pronto depois de quatro meses e meio de filmagens e cinco meses de pós-produção. Mas o projeto levou sete anos para ser executado (o livro em que o filme é baseado foi publicado em 2015).

Considerando que, somente no Brasil, o número de pagantes nos cinemas superou cinco milhões de espectadores, isso significa uma renda de cerca de R$ 104,7 milhões, então pode-se dizer que o filme já está sendo exibido com lucro (que será dividido entre os diversos produtores e investidores).   

Ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro significa, entre outras coisas, que atores como Fernanda Torres e Selton Melo podem, em futuro próximo, atuar em grandes produções internacionais e, quiçá, obter outros prêmios para o cinema brasileiro. Walter Salles, por sua vez, já possui uma carreira consolidada no mundo cinematográfico mundial.


Walter Moreira Salles Júnior



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O CRIME DO BOM NAZISTA

 


Falta, no Brasil, bons livros de entretenimento. José Paulo Paes (1926-1998) fazia essa observação no século passado. O tempo não eliminou a carência. Salvo engano, aconteceu o contrário. A literatura brasileira mergulhou nos dramas familiares, nas neuroses múltiplas, nas questões raciais, nas discussões sobre sexualidade – questões importantíssimas e necessárias, mas... muito sérias, pouco divertidas. E a literatura não precisa ser tão circunspecta. Um pouco de entretenimento não faz mal a ninguém.    

Raros são os escritores que ousam brincar com as potencialidades do texto, sem se deixar levar pelas discussões emocionais e ideológicas. Samir Machado de Machado é uma dessas exceções.

O crime do bom nazista (Todavia, 2023) une política e polícia, preconceitos variados e eugenia. Como pano de fundo as viagens transoceânicas do Luftschiffbau Graf Zeppelin (LZ 127), uma das grandes invenções de transporte de passageiros da época. A aviação comercial ainda estava no início e não tinha autonomia para as grandes viagens. Outro elemento histórico: o nazismo tinha conquistado o poder na Alemanha a pouco tempo – mas já contava, inclusive no Brasil, com muitos adeptos.  

  


Enquanto o dirigível se desloca do Recife para o Rio de Janeiro, o fotografo Otto Klein, aliás Jonas Shmuel Kurtzberg, é encontrado morto no banheiro masculino. Cianureto. Bruno Brückner, detetive da polícia alemã, estava a bordo e foi convocado para ajudar a desvendar o crime.  

Se em alguns momentos o enredo do romance se parece com um daqueles enigmas propostos por Agatha Christie (1890-1976), Brückner está muito distante de ser uma espécie de Hercules Poirot. Depois de interrogar alguns prováveis suspeitos, o policial conclui (para decepção de vários personagens) que Otto Klein se suicidou. Para não ter que fornecer explicações à polícia brasileira, jogam o corpo em alto-mar.

Questão resolvida? Obviamente que não. Há um plot twist no capítulo 10. Esse trecho do livro, por ser discursivo, está fora do tom ágil que caracteriza as páginas anteriores. Samir Machado de Machado não perde a oportunidade de defender a homossexualidade e faz um relato da violência estatal durante o nazismo. Boates e bares são destruídos, revistas são fechadas, algumas pessoas são presas em campos de concentração e, logo depois, mortas. Enfim, o inferno em vida.

No desfecho da história, o verdadeiro Jonas Shmuel Kurtzberg (que até então se apresentava como Bruno Brückner) desfruta da liberdade nas ruas do Rio de Janeiro. Mas isso só se torne possível através de um jogo de espelhos rocambolesco – onde cada elemento fornece uma imagem enganadora (talvez encantadora). Ou seja, tudo muda nas últimas páginas, fornecendo uma visão oposta ao que o enredo sugeria incialmente e conclui de forma básica: Pois se havia algo de que até o fim de seus dias ele nunca sentiria culpa foi ter feito com que Otto Klein se tornasse, enfim, um bom nazista, do único modo concebível que um nazista possa ser bom: estando morto.

PS) Em O crime do bom nazista (Prêmio Jabuti 2024 para romance de entretenimento), alguns trechos do romance fazem algumas observações que podem ser lidas como metáforas da situação brasileira recente. Principalmente nas situações em que o autoritarismo se faz presente, seja no cerceamento das liberdades individuais, seja na imposição moral dos comportamentos.

 

Samir Machado de Machado


Samir Machado de Machado (Porto Alegre, 1981) é o autor de Quatro soldados (Não Editora, 2013), Homens elegantes (Rocco, 2016) e Tupinilândia (Todavia, 2018). Coautor, junto com Luisa Geisler, Marcelo Ferroni e Natalia Borges Polesso, do romance Corpos Secos (Alfaguara, 2020).


sábado, 22 de fevereiro de 2025

PATTI SMITH ENCONTRA ALLEN GINSBERG

 

Patti Smith e Allen Ginsberg


Craig Brown, em Um por um – 101 encontros extraordinários (Editora Três Estrelas, 2014), conta que Patti Smith (Patricia Lee Smith, 1946), que morava com Robert Mapplethorpe (1946-1989) no segundo andar do Chelsea Hotel (222 West 23rd Street, Manhattan, New York), estava em grave situação financeira: eles viviam da confecção de colares artesanais ou produziam happenings (performance artística que combina teatro e artes visuais). Essas duas atividades não eram rentáveis.

 

Patti Smith e Robert Mapplethorpe

Numa tarde chuvosa, Patti foi até uma lanchonete próxima. Queria comer um sanduiche de queijo e alface. Depositou as poucas moedas que tinha (equivalentes a 55 centavos de dólar) na máquina e esperou pela comida. Que não veio. Em algum momento percebeu que o alimento tinha sido reajustado em mais 10 centavos – e ela não tinha esse dinheiro. Tentou reaver as moedas, mas a máquina não devolveu.

Nesse momento, um homem corpulento, de barba escura e crespa, se aproximou e perguntou se poderia ajudar. Era o poeta beat Allen Ginsberg (1926-1997), que estava voltando do enterro de Jack Kerouac (Jean-Louis Lebris de Kerouac, 1922-1969). Ele depositou os 10 centavos que faltavam e, além disso, pagou uma xícara de café.

Em uma mesa próxima, os dois começaram uma conversa sobre poesia. Que é interrompida quando Allen percebeu a ironia da situação: muitas vezes as aparências enganam. Quando ele se prontificou a ajudar, impactado pelo visual andrógino de Patti, imaginou que...  


“Você é menina?”, ele pergunta.

“Sou. Algum problema?”

Ginsberg dá risada.

“Desculpe. Achei que você fosse um menino bonito”

Patti percebe o mal-entendido.

“Bem, isso quer dizer que devo devolver o sanduíche?”

“Não, aproveite. O engano foi meu.”

 

De qualquer forma, depois que o equívoco foi esclarecido, Patti e Allen se tornaram grandes amigos. Inclusive, algum tempo mais tarde, talvez anos, eles tentaram compor juntos algumas canções (que não resultaram em sucesso, porque Ginsberg era muito verborrágico).

 

Allen Ginsberg, Patti Smith e William Burroughs

Certa vez, Ginsberg perguntou a Patti: “Como você descreveria a ocasião em que nos conhecemos”?

“Eu diria que você me deu de comer quando eu estava com fome”, ela respondeu. 

 

Arthur Rimbaud

Quando Ginsberg morreu, em 1997, Patti compareceu à cerimônia fúnebre, na St. Mark’s Church in-the-Bowery (131 E 10th Street, East Village, New York), usando uma camiseta branca. Na estampa frontal, o rosto de Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), o santo protetor dos poetas desajustados. Como homenagem e manifestação pela perda, ela cantou uma das músicas de Hank Willians (1923-1953), onde se destacam os versos: The silence of a falling star / Lights up a purple sky / And as I wonder where you are / I’m so lonesome I could cry (O silêncio de uma estrela cadente / ilumina um céu púrpura / E conforme eu imagino onde você está / Estou tão só que poderia chorar). [tradução livre].