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sexta-feira, 21 de março de 2014

FLORES RARAS



O filme é bom – o livro é melhor. Embora essa afirmação não seja uma surpresa na discussão que contrasta cinema com literatura, Flores Raras (Dir. Bruno Barreto, 2013) consegue – qualitativamente – diminuir a distância entre texto e imagem.

Com nível de produção internacional, o longa-metragem baseado no texto biográfico Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, e centralizado no triângulo amoroso protagonizado por Elizabeth Bishop (1911-1979), Mary Stearns Morse (1914-2002) e Maria Carlota (Lota, Lotta) Costallat de Macedo Soares (1910-1967), consegue romper com a proposta de entretenimento de terceira classe que caracteriza o cinema brasileiro contemporâneo. Um dos “achados” que contribuiu para concretizar essa proeza foi a ideia de utilizar One Art como fio de ligação entre o início e o fim do filme – artifício narrativo que estabelece cadência de grande beleza – e serve de espelho, em diversos momentos, para outros poemas: Sleeping on the Ceiling, The Shampoo, Insomnia, At the Fishhouses. Outro diferencial significativo é a utilização do idioma inglês em 90% da narrativa – além de estabelecer o estranhamento como ferramenta de intervenção artística, prepara o filme para o mercado internacional.


ONE ART

 

The art of losing isn’t hard to master

so many things seem filled with the intente

to be lost that their loss is no disaster.

 

Lose something every day. Accept the fluster

of lost door keys, the hour badly spent.

The art of losing isn’t hard to master.

 

Then practice losing farther, losing faster:

places, and names, and where it was you meant

to travel. None of these will bring disaster.

 

I lost my mother’s watch. And look! my last, or

next-to-last, of three loved houses went.

The art of losing isn’t hard to master.

 

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,

some realms I owned, two rivers, a continent.

I miss them, but it wasn’t a disaster.

 

– Even losing you (the joking voice, a gesture

I love) I shan’t have lied. It’s evident

the art of losing’s not too hard to master

though it may look like (Write it!) like disaster.  



O principal cenário da narrativa é a fazenda Samambaia, em Petrópolis, uma espécie de Paraíso terrestre. Nesse lugar as mulheres usam roupas masculinas, fumam em quantidade industrial, ficam bêbadas e praticam sexo umas com as outras. Lota (Glória Pires) é o estereotipo da mulher que se sente bem nesse tipo de situação – com um agravante: é absolutamente insensível para quaisquer sentimentos que não sejam os próprios. Em contrapartida, Mary  Stearns Morse (Tracy Middendorf) representa a porção “mulherzinha”, a guardadora da santidade do lar, a responsável pela educação dos filhos. Quando Elizabeth Bishop (Miranda Otto) entra em cena, reencenando o mito do Anjo da Anunciação, ocorre a ruptura da tranquilidade familiar.

Diante da tragédia, Mary, a parte mais fraca do triângulo, fica quase sem escolhas. Para não perder tudo, aceita viver à margem de uma história de amor que poderia ser a sua. Como compensação por ter sido excluída da cama de Lota, adota uma menina.

Selvagem paixão acomete a fêmea alfa e a intelectual melancólica, insegura e carente. Lota de Macedo Soares explode rochas, constrói um estúdio para a nova amante (a quem chama de “Cookie”) e acalma Mary. Elizabeth Bishop, maravilhada por se tornar o centro das atenções, observa os costumes brasileiros, escreve poemas e se embebeda toda vez que alguma coisa a desagrada. Eu não estou bêbada, só estou chorando em inglês, declara poeticamente a vencedora do Prêmio Pulitzer de 1956. Em outra oportunidade, o discurso é mais explicito: Eu não bebo porque as coisas vão mal. Eu quero beber a cada minuto de cada dia. As coisas indo mal são só desculpas para ficar bêbada.

 Na medida em que o tempo passa, as mudanças começam a surgir. A história de amor se transforma em pesadelo. O incontornável desconforto se instala, junto com o abandono. As perigosas ligações políticas entre Lota e Carlos Lacerda servem de desculpas para azedar o relacionamento. O mal-estar se multiplica com a construção do Parque do Flamengo (projeto em que Lota canalizou todas as suas energias) e o golpe militar de primeiro de abril de 1964. Enquanto a brasileira se mostra simpatizante ao novo governo, a estadunidense não compreende como é possível aceitar passivamente a perda das liberdades individuais.

A escritora que disse que Eu tenho um compromisso com o pessimismo, assim não fico desapontada, um dia se cansa de brincar de namoradinha e volta para Nova York. Não é a ruptura definitiva, mas é o início do fim. Em algumas situações, a forma mais intensa do amar está em compreender que não há mais amor.  


Cinema dramático, Flores Raras celebra – com sutileza e delicadeza – os relacionamentos tumultuados e os finais infelizes. Na última cena, no Central Park, Elizabeth Bishop, na companhia de seu grande amigo, o poeta Robert Lowell (Trent Williams), percebe que the art of losing’s not too hard to master / though it may look like (...) like disaster (a arte de perder não chega a ser mistério / por mais que pareça [...] um desastre).

UMA ARTE

(tradução informal)

 

A arte de perder não é nenhum mistério.

Tantas coisas contém em si o acidente 

de perdê-las, que perder não é um desastre.

 

Perca um pouco a cada dia. Aceite o susto

de perder as chaves, a hora gasta inutilmente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Depois perca mais rápido, com critério:

lugares, nomes, as escalas da viagem

que não fez. Nada disso é um desastre.

 

Perdi o relógio de mamãe. Ah, e nem quero

lembrar a perda de três ótimas casas.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Perdi duas cidades lindas. E um império

que era meu, dois rios e mais um continente.

Tenho saudade dele. Mas não é nenhum desastre.

 

Mesmo perder você (a voz, os gestos que eu amo) não muda nada.

Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério

Por mais que pareça (escreva!) um desastre.


sexta-feira, 14 de março de 2014

CINQUENTA FRASES SOBRE A MÚSICA



– Sem a música, a vida seria um erro. (Friedrich Nietzsche)

– A música é a linguagem dos espíritos. (Gibran Khalil Gibran)

– A música é o barulho que pensa. (Victor Hugo)

A música é essencialmente inútil, como a vida. (George Santayana)

Quem ouve música, sente a sua solidão / de repente povoada. (Robert Browning)

– Pouco importam as notas na música, o que conta são as sensações produzidas por elas. (Leonid Pervomaisky)

A força da música vagabunda é extraordinária. (Noël Coward)

O inferno está cheio de músicos amadores. (George Bernard Shaw)

 No Brasil, até os canarinhos desafinam. (João Gilberto)

Quando se ouve boa música fica-se com saudade de algo que nunca se teve e nunca se terá. (Samuel Howe)

– A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende. (Arthur Schopenhauer)

Milhares de pessoas cultivam a música; poucas, porém, têm a revelação dessa grande arte. (Ludwig von Beethoven)

– O homem que não tem a música dentro de si e que não se emociona com um concerto de doces acordes é capaz de traições, de conjuras e de rapinas. (William Shakespeare)

– A vida é como a música. Deve ser composta de ouvido, com sensibilidade e intuição, nunca por normas rígidas. (Samuel Butler)

De todos os ruídos, creio que a música é o menos insuportável. (Samuel Johnson)

– Onde há música não pode haver coisa má. (Miguel de Cervantes)

– O vaso dá forma ao vazio e a música ao silêncio. (George Braque)

– Sempre tive a impressão de que a música fosse apenas o extravasamento de um grande silencio. (Marguerite Yourcenar)

– A pintura transforma o espaço em tempo; a música, o tempo em espaço. (Hugo von Hofmannsthal)

– A minha música não é contra os brancos. Eu nunca poderia cantar isso. A minha música é contra o sistema, que ensina você a viver e a morrer. (Bob Marley)

– Aprender música lendo teoria musical é como fazer amor por correspondência. (Luciano Pavarotti)

 – Madame, a senhora tem entre as pernas um instrumento capaz de dar prazer a milhões. Basta dedilhá-lo. (Thomas Beecham, falando com uma violoncelista)

– A música pode ser um exemplo único do que poderia ter sido – se não tivesse havido a invenção da linguagem, a formação das palavras, a análise das ideias – a comunicação das almas. (Marcel Proust)

– Se todos os seres humanos tivessem ouvido realmente apurado, nenhum idiota teria coragem de inventar o acordeom. (Millôr Fernandes)

– Minha objeção aos instrumentos de sopro é a de que eles prolongam a vida de quem os toca. (George Bernard Shaw)

– A ópera está para a música como um inferninho está para uma catedral. (H. L. Mencken)

– Prefiro a música de Wagner a qualquer outra. É tão alta que podemos falar à vontade sem os outros ouvirem o que estamos dizendo. (Oscar Wilde)
 
– Ninguém é obrigado a ter colhido algodão para tocar jazz. (Miles Davis)


– Ópera em inglês faz tanto sentido quanto beisebol em italiano. (H. L. Mencken)

– Quando uma estrela da ópera se esgoela ao cantar, fica muito mais bonita. (Victor Borge)

– O que é a Nona Sinfonia ao lado de uma modinha de rua, tocada por um realejo e por uma lembrança? (Karl Kraus)

– Se as letras dos Rolling Stones quisessem dizer alguma coisa, seriam péssimas. (Truman Capote)

Se as pessoas comprassem os discos pela música, o rock já teria acabado há muito tempo. (Malcolm McLaren)

Um ouvinte típico de rock é um garoto tão analfabeto que não consegue ler nem o selo do disco que acabou de comprar. (Frank Zappa)

– Rock é música de jeca misturada a jazz. (Paulo Francis)

– O rock é como um orgasmo. Às vezes, um orgasmo é melhor. Em outras, o rock é melhor. (Mick Jagger)

Alguns cantores têm o ouvido de Van Gogh para a música. (Billy Wilder)

– Todos os meus discos são uma comédia. (Bob Dylan)

Os cisnes cantam antes de morrer. Algumas pessoas deveriam morrer antes de cantar. (Samuel Taylor Coleridge)

– O rock é a AIDS da música. (Júlio Medaglia)

– A única coisa que separa os roqueiros do analfabetismo absoluto é a necessidade que eles têm de ler o manual de suas Mercedes. (Garry Trudeau)

– Músicos que juram estudar oito horas por dia são mentirosos ou idiotas. (André Segóvia)

– Leonard Bernstein vem nos revelando segredos musicais que são do conhecimento geral há mais de quatrocentos anos. (Oscar Levant)

 – Para mim, [a ópera] não passa de um bando de “chefs” italianos gritando receitas de risotos uns para os outros. (Aristóteles Onassis)

– Não escrevo canções melosas, não gosto de flores e nunca li Shakespeare no original grego. (Irving Berlin)

– O vinho e a música sempre foram para mim um magnífico saca-rolhas. (Anton Tchekhov)

– Einstein desde muito cedo revelou sua paixão pelo violino. Uma tara sexual como qualquer outra. (Millôr Fernandes)

– O tumulto nunca é sentido como perturbador, pois sempre é ligado à música. (Karl Kraus)

Um repórter de rock é um jornalista que não sabe escrever, entrevistando gente que não sabe falar, para pessoas que não sabem ler. (Frank Zappa)

– Não sei uma nota de música. Nem preciso. (Elvis Presley)

quarta-feira, 5 de março de 2014

LIONEL ASBO


Capa original inglesa e
reproduzida na edição brasileira
Uma lista dos mais significativos psicopatas da literatura mundial deveria incluir Lionel Asbo (protagonista do romance homônimo, escrito pelo inglês Martin Amis). Suas “qualidades” estão refletidas no sobrenome, sigla de Anti-social Behaviour Order e que significa Condição de Comportamento Antissocial. O nome de família é outro, Pepperdine, mas ele preferiu trocar, porque, assim como as mais amargas pimentas (pepper), sente prazer em infundir o medo, em disseminar o terror.

Em 2003, aos vinte e poucos anos, sempre acompanhado de dois pit bulls (Joe e Jeff), era o típico brutamontes – o corpo semelhante a uma laje, a cara feito um bloco inteiriço, a coroa da cabeça com o cabelo raspado bem curto e restolhos de uns pelinhos castanhos. Passou parte substancial de sua vida na cadeia, delitos “menores”: receptação de mercadoria roubada, extorsão com ameaça, tumulto e agressão, danos materiais. Cinco meses em uma ocasião, três meses por outra, infrações e crimes suficientes para engordar a ficha corrida na polícia de qualquer indivíduo. De qualquer forma, em raro momento de consciência crítica, depois de dezenas de atos violentos, ele diz para seu sobrinho Desmond (Des, Desi) Pepperdine: Sabe, Des, às vezes eu tenho medo de mim mesmo. De mim mesmo.

Ele e o sobrinho moram em Diston Town (fictício distrito suburbano de Londres) –  local onde a catástrofe fazia suas visitas com a regularidade de um carteiro. A região abriga parte da escória social inglesa: desempregados, alcoólatras, traficantes, consumidores de drogas, pervertidos sexuais, ladrões, assassinos. Enfim, a população local pode ser resumida em (...) alunas de ensino fundamental grávidas, (...) jovens desdentados, (...) cadeirantes de vinte anos, (...) artríticos de trinta anos, (...) encarquilhados de quarenta, (...) dementes de cinquenta e (...) inexistentes de sessenta anos. Morando em Diston, ninguém sobrevive aos sessenta.

A matriarca da família Peperdine, Grace, começou cedo. Aos 12 anos teve o primeiro dos sete filhos. Apenas Cilla (primogênita, que também engravidou de Desmond aos 12 anos) e Lionel (o caçula) são filhos do mesmo homem. O nome dos outros, todos de pai diferente, presta uma homenagem divertida ao grupo musical The Beatles (John, Paul, George, Ringo, Stuart – nessa ordem de nascimento).

Martin Amis, autor de Campos de Londres, Grana,
A Informação, A Viúva Grávida, Casa de Encontros, entre outros.
Na medida do possível, Desmond procura manter-se afastado dos “negócios” do tio – cobrança de dívidas, pequenos roubos, contrabando. Inteligente, obtêm várias bolsas de estudo – oportunidades raras para a maioria de seus vizinhos. Em um momento de desatenção com as regras de sobrevivência, o rapaz não encontra forças para impedir um incidente bastante desagradável. Envolve-se sexualmente com Grace, a avó. Ele tem 15 anos; ela, 39. O caso não dura muito tempo. Ela o troca por outro menino, ainda mais moço – Rory Nightingale, 14 anos. O que se segue é pavoroso. O Complexo de Édipo dando as cartas em um jogo perverso. Lionel e Desmond ficam marcados pelo horror – até o último dia de suas existências.

Duas gerações de escritores: Martin
e seu pai, Kingsley Amis
Alguns anos depois, ocorre algo absolutamente surpreendente. Lionel, preso por receptação de mercadoria roubada, é informado que ganhou uma fortuna na loteria. Bilhete roubado. Depois que é libertado, confirmando a falta de sensibilidade com as necessidades dos irmãos e do sobrinho, cria expectativas de vai ajudá-los e, com visível deleite, decepciona os que alimentaram esperanças. Coerente com o modo de vida que tinha antes de ficar milionário, não dá um centavo para a família. Prefere gastar o dinheiro jogando em cassinos, contratando prostitutas e frequentando restaurantes caros. Muitas vezes pagou pelos estragos produzidos nas brigas em pubs e boates. Entre as barbaridades que comete, uma bastante significativa foi a destruição do hotel onde estava sendo realizada a festa de casamento de seu melhor amigo, Marlon Welkway. Sob a ameaça de ficar preso, Lionel pagou o estrago, calculado em novecentas mil libras (incluindo lucros cessantes). Com crueldade e nenhuma compaixão, fez questão de cobrar mais tarde esse gesto de “generosidade”: manteve relações sexuais com a esposa do amigo, Gina Drago, na frente do marido – diversas vezes.

Embora decida residir em um hotel (depois de ser expulso, tempestuosamente, de muitos outros), Lionel fez questão de manter o seu quarto no apartamento de Avalon Tower – mesmo não ajudando no pagamento do aluguel. Há vários motivos para esse disparate – que somente deixa de existir em 2013. O principal é relativamente simples: oprimir o sobrinho – que lá está morando com a esposa, Dawn Sheringham. Como deixa escapar, nas várias vezes em que conversa com Desmond, o passado custa caro. Além disso, há outro fator: Lionel se alimenta do medo de suas vítimas.

Lionel, apesar de se comportar de forma tosca, domina com relativa competência alguns elementos da psicologia social. Sabe manter a tensão no limite, induzindo a possibilidade de salvação, mas evitando a possibilidade de libertar a vítima. No momento adequado, um instante antes do colapso geral, introduz em cena um novo elemento. Imediatamente, como compete a quem tem “bom coração”, faz um novo acordo – suavizando momentaneamente a crise.  Quem está envolvido nessa situação, imaginando ter sido salvo, não percebe que, mais uma vez, foi induzido à escravidão.

Quando compra uma mansão, decide chamá-la de Wormwood Scrubs, o mesmo nome da prisão onde esteve preso diversas vezes. Isso não é nenhuma surpresa, pois A prisão não é um lugar tão ruim assim, disse muitas vezes. Na prisão, a gente sabe onde está pisando.

Fábula sobre a maldade e sobre pessoas por quem a gente não podia deixar de ter sentimentos, como sintetiza Dawn, o romance de Martin Amis provoca interessante discussão sobre a possibilidade de algum dinheiro modificar o comportamento dos indivíduos. O horror descrito nas últimas páginas não responde a questão, mas possibilita formular hipóteses plausíveis. De uma forma ou de outra, a infelicidade não é consequência de uma maldição divina – é o estado constante de perversidade que caracteriza o humano.

P.S.: Como se fosse um tributo fraterno, Lionel Asbo é dedicado a Christopher Hitchens (1949-2011).

Os amigos se encontram: Christopher Hitchens e Martin Amis,
em Cape Cod, Massachusetts, EUA, 1985.

TRECHO ESCOLHIDO

 

Des levantou o Mac e ficou de pé com agilidade. “Pois é. Estou mesmo de saída.”

“Ah, é? Aonde você vai? Ver aquela Alektra?

“Não. Encontrar uns amigos.”

“Bom, então faça alguma coisa útil. Roube um carro. Eh, sabe de uma coisa? Seu tio Ringo ganhou na loteria.”

“Puxa, não sabia. Quanto ele ganhou?”

“Doze libras e cinquenta. É um jogo de otários, a loteria, se quer saber a minha opinião. Ah. Eu queria pedir uma coisa para você. quando você sai por aí rodando de noite...”

Des estava parado segurando o Mac com as duas mãos, feito um garçom com uma bandeja. Lionel estava parado com as cervejas Cobra nas duas mãos, feito um caminhoneiro com sua carga.

“Quando você sai por aí, rodando de noite, você leva uma faca?”

“Tio Li! Você me conhece.”

“Pois é, mas devia. Para sua própria segurança. Vai acabar depenado. Ou coisa pior. Não existem mais brigas de socos, não em Diston. Só tem briga de faca. Para matar. Ou com revólveres. Bem”, diminuiu o ritmo, “acho que não vão nem enxergar você no meio da escuridão.”

E Des apenas sorriu com seus dentes brancos e limpos.

“Pegue uma faca na gaveta quando sair. Uma daquelas de cabo preto.”

segunda-feira, 3 de março de 2014

O LOBO DE WALL STREET

Fui ver O Lobo de Wall Street (The Wolff of Wall Street. Dir. Martin Scorcese, 2013). Versão legendada. Filmes dublados me aborrecem. São, no mínimo, atestados de ignorância bilíngue. Não há lógica em pagar ingresso para compactuar com o analfabetismo funcional e a opressão cultural. Simultaneamente, também precisamos dizer não à censura moralista, que transforma expressões bastante especificas como holy shit! e fuck you! em bobagens como ai, meu deus! e maldição! Cerca de 30% do que conheço da língua inglesa, além de algumas palavras e expressões em francês, italiano, alemão e russo, aprendi nas salas de cinema. Na língua materna, aceito apenas as produções nacionais e portuguesas. Evidentemente, isso também significa repudio as exibições em tela pequena (televisão, computador, home theater), momentos de entretenimento que pouco ou nada significam para quem “realmente” gosta da “sétima arte”. Na minha concepção – talvez um pouco radical para a modernidade, que multiplica exponencialmente os mecanismos de reprodução técnica –, o cinema somente se torna possível com tela grande e som original!


O que me incomodou em O Lobo de Wall Street não foi a glorificação erótica do dinheiro – que se tornou, na contemporaneidade, a porta de entrada para o Paraíso, o substituto natural de deus. Controlei a vontade de vomitar com a exaltação obscena do capitalismo. Também resisti à falta de escrúpulos com que os personagens do filme cometem crimes do colarinho branco. Tampouco me aborreci com o uso intensivo de drogas (álcool, cocaína, maconha, crack, anfetaminas, compostos sintéticos). Não fiquei chateado com o final torpe, comprovação inequívoca de que delação premiada e advogados pagos a peso de ouro produzem milagres jurídicos. A proposta cínica de redenção religiosa, o criminoso que se torna palestrante motivacional, não me angustiou. A interpretação quase histérica do Leonardo DiCaprio ou o Jonah Hill representando a si mesmo (outra vez!) não foram itens capazes de me impacientar. As três horas de duração do filme quase estouraram minha bexiga – aguentei firme, imaginando que uns bons cortes, aqui e ali, provavelmente contribuiriam com um maior dinamismo para o enredo frouxo. O que realmente me deixou furioso foi ouvir, na trilha sonora desse filme vagabundo, Mercy, Mercy, Mercy (composta por Williams/Watson/Zawinul), uma das minhas músicas favoritas (na interpretação magistral de Cannonball Adderley). Pior do que isso somente a inclusão de alguma das sonatas de Giuseppe Domenico Scarlatti para ilustrar cenas de filme pornográfico de baixo orçamento. Qualquer pessoa com um mínimo de discernimento cultural jamais vai perdoar esse tipo de crime hediondo. 

Cinema ostentação, o filme retrata o grau máximo da ganância e da depravação moral. Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), um self-made-man que acredita que não existem distâncias éticas e semânticas entre as palavras vendedor e vencedor, vandaliza o mundo financeiro. Concentrando a Bolsa de Valores como seu campo de atuação, aplica – sempre que possível – uma forma sofisticada de Conto do Vigário. Como possui o dom da eloquência – que utiliza em proveito próprio – não se inibe em ultrapassar as mais elementares fronteiras da decência. Quer saquear os bolsos de qualquer trouxa que estiver ao seu alcance.

Ao mesmo tempo, como se fosse uma criança mimada, gasta fortunas no parque de diversões. Adquire bens luxuosos (mansão, iate, helicóptero), promove a amante à esposa, contrata prostitutas, organiza concursos de arremesso de anões – a loucura em doses industriais. Ao saber que está sendo alvo de uma investigação federal, encontra uma maneira peculiar de esconder parte do dinheiro em um banco suíço. Inconsequente, sem noção do perigo, tudo lhe parece uma grande piada, como na cena em que tenta subornar um agente do Federal Bureau of Investigacion (FBI).

Um dia... um dia, a realidade se impõe e ele precisa pagar por seus crimes. A burrice costuma ser premiada com vários anos de prisão. Foi o que entendeu no momento em que precisou entregar os amigos para obter a redução penal. Sintomaticamente, essa parte do filme recebe um tratamento rápido, quase superficial. Não há glamour na decadência.

Ao ver os créditos finais rolarem pela tela, o espectador percebe que perdeu o seu tempo assistindo uma história que o cinema já repetiu diversas vezes e de maneira muito mais competente: Wall Street  poder e cobiça (Wall Street. Dir. Oliver Stone, 1987), Jogador de Alto Risco (Rogue Trader. Dir. James Dearden, 1999) e Wall Street – O dinheiro nunca dorme (Wall Street: money never sleeps. Dir. Oliver Stone, 2010).