Que os vendilhões do templo
a-pós-o-moderno (embriagados pelas doces ilusões e alusões fornecidas pela
voracidade do capitalismo) perdoem aos românticos, entre os quais me incluo, mas
o livro físico – assim como a beleza – ainda é fundamental. Ainda. Não se sabe
por quanto tempo será possível resistir ao canto da sereia. Com uma voz
melíflua e persuasiva, a revolução digital se apossou da reprodutibilidade
técnica. Inventou quimeras, blefes e engôdos. E, em qualquer situação que se
apresente, apregoa a derrubada das bibliotecas, meros depósitos inúteis de
toneladas de papel pintado com tinta preta (na maior parte das vezes). Por que
cansar o corpo, carregando centenas de volumes, quando o mercado está vendendo
diversos modelos de dispositivos eletrônicos para leitura? Basta escolher o que
mais se adapta às necessidades. Leitores eletrônicos para 500 livros? Temos. 1000 livros?
Moleza. Cada um deles está repleto de surpresas. Novidades inesquecíveis. Preços
irresistíveis. Alguns, inclusive, permitem acesso à Internet. Quem poderia recusar
tamanha facilidade? Quem poderia manifestar obstáculos ao futuro? Ou ao progresso?
Ninguém - embora assuste a velocidade com que o descartável, sem descanso, descarta o que
não deveria descartar. De posse da maquininha fantástica, o indivíduo perde a
noção de que o ato físico da leitura é uma experiência sensorial intensa. Desconhece
o valor do contato de pele com pele, a mão naquilo e aquilo na mão. Gadgets se
multiplicam através de algum método de reprodução assexuada, provavelmente imitando
a experiência exponencial dos automóveis (os novos veículos, lançados a cada
ano, muitas vezes diferem do modelo anterior por um parafuso cromado na lateral
inferior do pára-choque). Basta conectar o fio na tomada. O mundo
tecnológico não eletrocutará ninguém, afirmam. Pode ser. Inclusive porque
faltará luz. Apesar das baterias. Ou similares. O combustível fóssil é finito,
mas quem quer discutir essas bobagens nos novos tempos?
Ou tempos novos? O que importa é oportunizar (oportunizar? chibata em quem usar esse tipo de expressão!), oportunizar a leitura de qualquer texto em
qualquer lugar. Quem vai discordar desse tipo de argumento? Ora, quem conhece a História lembra que – se os defensores da modernidade tecnológica descerem do salto alto
onde estão encastelados e dedicarem uns dois minutos para acessar a Wikipédia
(ou sítio similar) –, o mesmo ponto de vista foi defendido por
Johannes Gensfleischzur Laden zum Gutemberg, em algum momento entre 1440 e
1450, quando elaborou o sistema de tipos móveis e a impressão em série. Avanço tecno-mecânico que
permitiu que o códice evoluísse para o formato livro. Isso pouco importa,
dizem. O passado deve ficar no passado, as comparações não importam, estamos vivendo uma época de novidades e de esplendor.
O que querem dizer é que, depois de quase 600 anos, chegou o momento de substituir o suporte que consagrou o livro físico como a mais importante
ferramenta de transmissão do conhecimento. É o que proclamam. Sem remorsos, sem
noção de que queimar a História equivale destruir a humanidade, flertar com a frivolidade, negar que a vida é um continuum de aprendizagem. Nenhum
problema, gritam. Ler um romance de 500 páginas na forma física ou na tela exige tempo
e reflexão crítica. Elementos opostos ao time is money que corrói o
conhecimento, transformando-o em sinônimo de comercio. Ou outdoor da propaganda
ideológica. Ou qualquer outra porcaria. Que aqueles que não são adeptos da
leitura perderam o olfato, não conseguem distinguir entre uma coisa e outra.
Jamais saberão o quanto é bom o cheiro de livro novo. Nunca admitirão que o
conhecimento não é asséptico e, entre outras surpresas, carrega quilos de
poeira em suas páginas. Ignoram que cada livro possui peso e que é bom
carregá-lo debaixo do braço ou nas mãos. Não percebem que o som de folhear um
volume equivale a uma sinfonia. E que livro exposto na vitrine de livraria se
assemelha às tentações mais irresistíveis. Tão irresistíveis como algumas
palavras que, a cada dia, se tornam estranhas. Iluminuras, incunábulos,
brochuras, alfarrábios. Palavras que perderam os sentidos. Desmaiaram diante da
avassaladora presença da linguagem utilizada pelos dominadores. E-book, E-reader, E-bullshit. Parte da poesia que emana do viver está desaparecendo diante do ocaso do livro físico – que é o mesmo da cultura e da civilização.
Que belo texto, Raul! Partilhamos da mesma opinião, e me considero sua amiga de alma. Foi um prazer inaudito lê-lo e me emocionar com tudo o que postou. Somos dois, fiquemos com os nossos, deixe as discussões supérfluas para os inventores de moda.
ResponderExcluirUm abraço carinhoso.
Monique
Obrigado, Mônica. Parte de nosso esforço, como seres humanos, se comprova no resistir à mediocridade e à barbárie. Enquanto pudermos.
ExcluirUM BELO TEXTO POR UMA EXPERIÊNCIA NÃO APENAS SENSORIAL MAS SENSUAL DOS LIVROS, VEJO NOS TABLETS UMA EXPERIÊNCIA METAFÍSICA DO TEXTO, MAS PREFIRO A EXPERIÊNCIA PESADA, SUJA, ÚNICA E SEXUADA DO LIVRO DE PAPEL, E NÃO APENAS DOS QUE SE LEEM COM UMA SÓ MÃO, É CLARO.
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