Será que estou no mundo da ficção?, perguntou Tengo. Será que, de alguma forma, deixei o mundo real e entrei no mundo de Crisálida de ar, como Alice após cair na toca do coelho? Ou será que o mundo real é que se transformou no mundo de Crisálida de ar? Será que o mundo original – onde só existe a nossa única e habitual lua – não existe mais?
São muitas as perguntas e quase nenhuma resposta no segundo volume da trilogia 1Q84, de Haruki Murakami (o mais importante escritor japonês da atualidade). Evidentemente, esse tipo de estratégia narrativa contribui para aumentar a curiosidade do leitor. O pouco que o romance revela parece indicar que o livro apresentará um grand finale. Mas, talvez essa seja uma tese difícil de sustentar, pois a história está muito distante do que poderia ser considerado um texto “normal” (independente do parâmetro utilizado para estabelecer o conceito de normalidade).
O desencontro entre Aomane e Tengo (que perderam o contato quando tinham dez anos de idade e frequentavam a mesma turma escolar) continua a incomodar o casal vinte anos depois. Ele ganha o sustento como professor de matemática. Nos momentos livres, escreve. Ela, professora de educação física, trabalha em uma academia com musculação e artes marciais. Nas horas vagas, assassina homens que maltratam mulheres. Contingencialmente, habitam mundos paralelos – e que, pelos princípios que norteiam a lógica, nunca deveriam se encontrar. Exceto se houver alguma ajuda externa do destino, que é o nome que a ficção utiliza para justificar o injustificável e, simultaneamente, esconder diversos defeitos do(s) narrador(es) – a onipresença, a onipotência e a onisciência são os principais, mas não são os únicos, visto que, seguindo a tradição grega (que inventou a Teoria da Literatura), para não perder a verossimilhança, nunca se deve dispensar os elementos comuns ao padrão antropomórfico.
Esse determinismo (que se alimenta de algumas ideias religiosas) está presente em cada frase de 1Q84 – texto que flerta com a paranoia política proposta por George Orwell, as situações kafkanianas, a ficção científica e diversos estilos musicais (clássico, pop, jazz). Enfim, se assemelha a uma salada duvidosa, onde os ingredientes não combinam, o molho deveria ser outro, o gosto não agrada. Pelo menos, em teoria. Na prática, o estranhamento se mostra interessante. E, para surpresa geral, encaixa com alguma facilidade.
No primeiro volume, Aomame (ao som da Sinfonietta de Janáček) atravessa o portal que liga mundos especulares. O real se dissolve – para que o simulacro adquira consistência. A imagem, resíduo suficiente para preencher o imaginário, assume o proscênio e elimina outras possibilidades. Essa experiência se repete no segundo volume. Tengo, ao visitar a Cidade dos Gatos, também migra para o outro lado. Mas, ao contrário da mulher, está protegido por uma espécie de redoma de vidro. As crueldades que o afetam estão em outro nível.
Na segunda parte da trilogia, são as minucias que contam. Peças do quebra-cabeça que se juntam lentamente, sem permitir que o desenho final seja esboçado. Sem esse trabalho intermediário, não será possível prosseguir na leitura, não será possível descobrir – como sempre – que por trás de toda violência há sempre uma fantasia romântica.
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