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segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A ÉPOCA DA INOCÊNCIA: UMA RELEITURA

Sempre pensei que pessoas como a condessa, que viveram em sociedades aristocráticas, deviam nos ajudar a manter nossas distinções sociais, e não ignorá-las, diz a mãe de Newland Archer, efetuando uma espécie de síntese dos elementos narrativos que norteiam o enredo de A Época da Inocência, romance de Edith Wharton, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1921.  

Crônica da decadência da nobreza e, consequentemente, da “civilização”? Imagem literária da guerra social e econômica e que é travada toda vez que um ciclo histórico se aproxima do fim? Registro dos riscos causados pelas inconsequências amorosas? É difícil determinar qual dessas perguntas adquire significativa importância em um texto que foi estruturado no escrutínio da delicadeza – recurso prático utilizado pelas “sociedades educadas” para varrer as “sujeiras familiares” para debaixo do tapete. Como comenta o quase distante narrador do romance, Era a maneira como a velha Nova York tirava a vida “sem derramamento de sangue”: a maneira das pessoas que temiam um escândalo mais que uma doença, colocavam a decência acima da coragem e achavam que não havia nada mais grosseiro que uma “cena”, exceto a conduta de quem a provocava.

Edith (Newbold Jones) Wharton , 1862-1937
Nesse sentido, no contexto social da cidade de Nova York, na década de 70 do século XIX, o adultério constituia uma falta grave, um atentado indesculpável contra o decoro familiar. Quando “essas coisas aconteciam”, tratava-se, sem dúvida, de uma loucura por parte dos homens, mas sempre um erro por parte das mulheres. Independente de ser real ou imaginária, a traição conjugal atrai diversos tipos de interesses. Na prática a teoria é outra, como dizem os cínicos. Os homens se congratulam reciprocamente por acrescentarem mais um troféu na caçada que empreendem diariamente. As mulheres – preocupadas com os filhos, com o status quo e com o comportamento social – olham para o outro lado, fingindo ignorar o óbvio. Nas duas circunstâncias, os relacionamentos extraconjugais constituem uma oportunidade coletiva de conjugar o exercício da hipocrisia. Todas essas pessoas amáveis e inexoráveis se empenhavam resolutamente em fingir umas para as outras que nunca ouviram falar, suspeitaram ou sequer imaginaram qualquer coisa que pudesse sugerir o contrário.

O triângulo amoroso (envolvendo Newland Archer e as primas May Welland e Ellen Olenska) está marcado pela violência simbólica, pela agressão psicológica. Ou melhor, por uma série de filigranas, subentendidos, não ditos e regras comportamentais – movimentos emocionais que ficam na borda do precipício e que, por algum motivo, não se completam. Sempre que surge possibilidade de resolução dos empecilhos, algo inesperado acontece  impedindo que o gozo se concretize.

Casado com May, Newland se descobre apaixonado pela condessa Olenska (que havia deixado o marido na Europa e se refugiado em Nova York). Em diversos momentos, mesmo sabendo que está agindo errado, ele pronuncia as palavras proibidas. Ou seja, ambiciona abandonar a esposa e fugir para a Europa – com Ellen. Em todas as oportunidades – e são várias – ela consegue suspender o império do desejo, seja procrastinando uma resposta afirmativa, seja indicando – de diversas maneiras – ao arqueiro (Archer) que a “semeadura” deve ser feita em terreno fértil (Welland). Evidentemente, esse não é o propósito de quem sonha com o exotismo e a excentricidade que o corpo aristocrático da condessa projeta. Newland quer cultivar novas terras, embora todo o seu refinamento intelectual esteja amparado na cornucópia de delícias que somente é possível encontrar no velho continente (Europa). Nova York, guardadas as devidas proporções, é o fim do mundo.

Por maiores que sejam os esforços de Newland (e, de acordo com o razoabilidade aristocrática, ele não os economiza), não há como encontrar uma maneira de contornar o impasse. Mesmo se conseguisse prever o futuro, ele não conseguiria mudar os acontecimentos. Ironicamente, para quem se julga inteligente e esclarecido, Newland está (sempre!) um passo atrás das ações conduzidas por sua “insípida” esposa. Quando May conta para a prima que está grávida, o anticlímax se desenha de maneira grandiosa. O destino de Newland está selado. A derrota se tornou inevitável.

Muitos anos depois, viúvo, na companhia do filho mais velho, Newland está em Paris. Surge a oportunidade de visitar a condessa, de reviver o que era, até então, interdito. No último momento, ele recua. Prefere ficar sentado em um banco de praça, em frente ao edifício onde mora Ellen Olenska.

"É mais real para mim aqui do que se eu subisse”, ouviu-se dizendo; e o temor de que essa última sombra de realidade perdesse a força manteve-o preso ao banco, enquanto os minutos se sucediam.
Ali ficou ele durante muito tempo, na penumbra que ia se tornando escuridão, sem desviar os olhos do terraço. Por fim, uma luz brilhou nas janelas, e, um instante depois, um criado saiu para o terraço e fechou os toldos e as venezianas.
Como se fosse o sinal que esperava, Newland Archer levantou-se lentamente e tomou o caminho do hotel.


P. S. 1.) Alguns leitores contemporâneos, ao ler ou reler um clássico como A Época da Inocência, provavelmente não conseguirão evitar a reclamação sobre o excesso de informações que caracteriza esse tipo de romanção. As descrições detalhadas resultam em congestionamento visual e em lentidão narrativa. Em alguns momentos, nada acontece – um sinônimo óbvio para o que a modernidade chama de chatice. Provavelmente dirão que o mundo suspenso não está em acordo com o tempo que estamos vivendo – e que exige rapidez, ação e sexo.

P.S.2.) As classes subalternas estão em cena, mas são invisíveis. Criados domésticos, cocheiros, cavalariços, Chefs de cuisine, camareiras, damas de companhia – uma multidão de serviçais aparece transversalmente na narrativa como se fossem sombras que somem na indeterminação toda vez que a luz muda de direção.

P.S.3.) Embora seja um romance que está estruturado no mundo feminino, surpreende que muitas das personagens sejam tratadas como objetos decorativos. Por exemplo, Mrs. Beaufort, que sempre preferia limitar-se a ser bonita e não ter que falar.


P.S.4.) Por diversos motivos, inclusive curiosidade, cabe contrastar o texto literário com a versão cinematográfica – que foi dirigida por Martin Scorsese, em 1993.

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