Sempre pensei que pessoas como a
condessa, que viveram em sociedades aristocráticas, deviam nos ajudar a manter
nossas distinções sociais, e não ignorá-las, diz a mãe de Newland Archer, efetuando
uma espécie de síntese dos elementos narrativos que norteiam o enredo de A
Época da Inocência, romance de Edith Wharton, vencedor do Prêmio Pulitzer de
1921.
Crônica da decadência da nobreza e,
consequentemente, da “civilização”? Imagem literária da guerra social e
econômica e que é travada toda vez que um ciclo histórico se aproxima do fim? Registro
dos riscos causados pelas inconsequências amorosas? É difícil determinar qual
dessas perguntas adquire significativa importância em um texto que foi
estruturado no escrutínio da delicadeza – recurso prático utilizado pelas “sociedades educadas” para varrer as “sujeiras familiares” para debaixo do tapete. Como
comenta o quase distante narrador do romance, Era a maneira como a velha Nova
York tirava a vida “sem derramamento de sangue”: a maneira das pessoas que
temiam um escândalo mais que uma doença, colocavam a decência acima da coragem
e achavam que não havia nada mais grosseiro que uma “cena”, exceto a conduta de
quem a provocava.
Edith (Newbold Jones) Wharton , 1862-1937 |
Nesse sentido, no contexto social da
cidade de Nova York, na década de 70 do século XIX, o adultério constituia uma
falta grave, um atentado indesculpável contra o decoro familiar. Quando “essas
coisas aconteciam”, tratava-se, sem dúvida, de uma loucura por parte dos
homens, mas sempre um erro por parte das mulheres. Independente de ser real ou
imaginária, a traição conjugal atrai diversos tipos de interesses. Na prática a
teoria é outra, como dizem os cínicos. Os homens se congratulam reciprocamente
por acrescentarem mais um troféu na caçada que empreendem diariamente. As
mulheres – preocupadas com os filhos, com o status quo e com o comportamento
social – olham para o outro lado, fingindo ignorar o óbvio. Nas duas circunstâncias,
os relacionamentos extraconjugais constituem uma oportunidade coletiva de conjugar
o exercício da hipocrisia. Todas essas pessoas amáveis e inexoráveis se
empenhavam resolutamente em fingir umas para as outras que nunca ouviram falar,
suspeitaram ou sequer imaginaram qualquer coisa que pudesse sugerir o
contrário.
O triângulo amoroso (envolvendo Newland
Archer e as primas May Welland e Ellen Olenska) está marcado pela violência
simbólica, pela agressão psicológica. Ou melhor, por uma série de filigranas, subentendidos, não ditos e regras comportamentais – movimentos emocionais que ficam na borda do
precipício e que, por algum motivo, não se completam. Sempre que surge possibilidade de resolução dos empecilhos, algo inesperado acontece – impedindo
que o gozo se concretize.
Casado com May, Newland se descobre
apaixonado pela condessa Olenska (que havia deixado o marido na Europa e se
refugiado em Nova York). Em diversos momentos, mesmo sabendo que está agindo
errado, ele pronuncia as palavras proibidas. Ou seja, ambiciona abandonar a
esposa e fugir para a Europa – com Ellen. Em todas as oportunidades – e são
várias – ela consegue suspender o império do desejo, seja procrastinando uma
resposta afirmativa, seja indicando – de diversas maneiras – ao arqueiro (Archer) que a “semeadura” deve ser feita em terreno fértil (Welland). Evidentemente,
esse não é o propósito de quem sonha com o exotismo e a excentricidade que o
corpo aristocrático da condessa projeta. Newland quer cultivar novas terras,
embora todo o seu refinamento intelectual esteja amparado na cornucópia de
delícias que somente é possível encontrar no velho continente (Europa). Nova
York, guardadas as devidas proporções, é o fim do mundo.
Por maiores que sejam os esforços de Newland (e, de
acordo com o razoabilidade aristocrática, ele não os economiza), não há como encontrar uma maneira de contornar o impasse. Mesmo se conseguisse prever o futuro, ele não
conseguiria mudar os acontecimentos. Ironicamente, para quem se julga
inteligente e esclarecido, Newland está (sempre!) um passo atrás das ações conduzidas
por sua “insípida” esposa. Quando May conta para a prima que está grávida, o
anticlímax se desenha de maneira grandiosa. O destino de Newland está selado. A
derrota se tornou inevitável.
Muitos anos depois, viúvo, na companhia
do filho mais velho, Newland está em Paris. Surge a oportunidade de visitar a
condessa, de reviver o que era, até então, interdito. No último momento, ele
recua. Prefere ficar sentado em um banco de praça, em frente ao edifício onde
mora Ellen Olenska.
"É mais real para mim aqui do que se eu
subisse”, ouviu-se dizendo; e o temor de que essa última sombra de realidade perdesse
a força manteve-o preso ao banco, enquanto os minutos se sucediam.
Ali ficou ele durante muito tempo, na
penumbra que ia se tornando escuridão, sem desviar os olhos do terraço. Por
fim, uma luz brilhou nas janelas, e, um instante depois, um criado saiu para o
terraço e fechou os toldos e as venezianas.
Como se fosse o sinal que esperava,
Newland Archer levantou-se lentamente e tomou o caminho do hotel.
P. S. 1.) Alguns leitores contemporâneos,
ao ler ou reler um clássico como A Época da Inocência, provavelmente não
conseguirão evitar a reclamação sobre o excesso de informações que caracteriza esse
tipo de romanção. As descrições detalhadas resultam em congestionamento
visual e em lentidão narrativa. Em alguns momentos, nada acontece – um
sinônimo óbvio para o que a modernidade chama de chatice. Provavelmente dirão
que o mundo suspenso não está em acordo com o tempo que estamos vivendo – e que
exige rapidez, ação e sexo.
P.S.2.) As classes subalternas estão em
cena, mas são invisíveis. Criados domésticos, cocheiros, cavalariços, Chefs de
cuisine, camareiras, damas de companhia – uma multidão de serviçais aparece
transversalmente na narrativa como se fossem sombras que somem na
indeterminação toda vez que a luz muda de direção.
P.S.3.) Embora seja um romance que está
estruturado no mundo feminino, surpreende que muitas das personagens sejam tratadas
como objetos decorativos. Por exemplo, Mrs. Beaufort, que sempre preferia
limitar-se a ser bonita e não ter que falar.
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