Quando Oswald de Andrade escreveu, entre tantos outros poemas geniais,
Amor
Humor
provavelmente não imaginou que estava
desbravando o sertão em que o romantismo e o parnasianismo haviam escondido a
poesia brasileira. Como ares de bandeirante, o paulista mostrou aos
embasbacados leitores da época que era possível se distanciar da seriedade e,
ao mesmo tempo, se aproximar da essência poética. Mais do que isso, revelou –
de maneira surpreendentemente lúcida e lúdica – que é possível rejeitar essa futilidade
que é o rimar flor e dor. Disse, com todas as letras que, na melhor das hipóteses, esse tipo de desacerto deve ser
aceito apenas como pirraça ou o efeito de várias doses de cachaça.
Como o Brasil sempre está uns dez anos
atrasado com qualquer coisa que signifique modificar o conservadorismo, demorou
um pouco para que a circunspecção e a prudência fossem abatidas em pleno voo
por versos espirituosos, estrofes inteligentes, gags que se somam umas às outras.
E foi na esteira dessa explosão de inventividade que – algum tempo depois – surgiram
diversos poetas magistrais, em diversos momentos denominados marginais. Ao
mandar a seriedade para a puta-que-a-pariu sem o menor constrangimento,
convidam o leitor para contemplar a vida como se fosse algo engraçado.
Felizmente. A poesia brasileira não precisa de gente besta.
As situações divertidas que estão escondidas
em Ligue os Pontos, de Gregório Duvivier, constituem uma lâmina especular
para o lirismo subversivo que não se contenta em – apenas – expor emoções ou
algumas ideias. Inclusive porque o poeta tem dicção própria – docemente embriagada pela tradição pouco comportada de uma poesia que quer mais,
muito mais. Quer agrupar afeto, tesão, cotidiano e vida.
se o leite desnatado por acaso caísse
da sua mão no chão da seção de laticínios
bastava eu perguntar seu nome e fazer
alguma piada envolvendo a expressão chorar
pelo leite derramado e nós dois teríamos
uma longa-vida eu e você mas você já está
no setor de limpeza e eu penso que se a água
sanitária espirrasse no seu vestido eu poderia
dizer sou advogado e isso vale um processo
ou se você tivesse dúvidas quanto à validade
de um queijo minas eu sei tudo sobre queijo
minas ou à madureza de um abacaxi basta
puxar uma folha da coroa mas agora
é tarde você já está no caixa passando produtos
que apitam como um eletrocardiograma.
Nas urgências propostas pelo
a-pós-a-moderna-idade, o desencontro amoroso passa lotado como se fosse um
ônibus urbano no final de tarde. O poeta não pensa assim. Ciente que a
trivialidade diária está composta por inúmeras histórias, quer encontrar o
invisível aos olhos e, como se fosse uma brincadeira de criança, vincular uma
narrativa com outra. Um exemplo dessa tese está presente na imagem
surpreendente, ou melhor, extraordinária, que aparece no poema Ligue os
Pontos:
enquanto você dormia liguei
os pontos sardentos das suas
costas na esperança de que
a caneta esferográfica revelasse
a imagem de algum ser mitológico
de nome proparoxítono o mapa
detalhado de algum tesouro
submerso formasse quem sabe
alguma constelação ruiva oculta
na epiderme e me deparei
com o contorno de um polígono
arbitrário que não me fornecia
metáforas que não apontavam direções
simplesmente dizia: você está aqui.
Gregório imagina, em Gênese II, uma
versão personalíssima da criação humana, mistura de piada e verdade gramatical.
Tomando como base a linguagem coloquial, recusa os excessos mentais. E se
aproxima do leitor, com a mão estendida, oferecendo amizade e poesia de
excelente qualidade.
no princípio era o verbo
uma vaga voz sem dono
vagando pela via láctea.
depois veio o sujeito
e junto com ele todos
os erros de concordância.
Infelizmente, nem tudo é festa, alegria ou deslumbramento. Atrás
das gargalhadas, a vida costuma se apresentar com os trajes da melancolia, como Gregório anota ao escrever que todos / seguem carregando suas
tristezas / dentro de sacolas de plástico. No único poema com dedicatória (p/
rafael mascarenhas), a ausência recebe um tratamento especial, forma criativa
de exorcizar o luto.
quando se perde um braço ou uma perna
o membro perdido continua a coçar, reza
a lenda e a revista superinteressante, e eu
que nunca amputei um braço ou uma perna
sinto dia sim dia não a gangrena dos amigos
que eu perdi de vista porque foram morar longe
cansaram-se de mim ou morreram de desastre
Ligue os Pontos une engenhosidade e
humor, lirismo e alguns achados de excelente qualidade. Enfim, como compete
aos livros de poesia, um exercício de paixão.
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