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terça-feira, 5 de novembro de 2013

NO CORAÇÃO DA COXILHA RICA

O inferno é uma coleção de buracos – foi o que descobri em recente viagem pela Coxilha Rica. Por alguma razão incompreensível, talvez um erro de logística, o caminhão, cabine dupla, tomou o rumo da estrada de Morrinhos. Considerando que a alternativa, embora mais longa, é composta por asfalto e terra batida, poucos motivos são capazes de explicar esse desatino. De qualquer forma, o que importa é que lá fomos. Mais de 80 quilômetros e três horas de pedregulhos e atoleiros. Coisa pouca para quem imagina que o espírito de Indiana Jones está vivo dentro de cada ser humano. Para que não restem dúvidas, não é o meu caso.

Acostumado, vá lá, mal acostumado pelos confortos da cidade, encontrei motivos para acumular algumas toneladas de mau humor. O incomodo causado pelo cinto de segurança e os solavancos do carro – que projetavam o corpo no espaço – impediram qualquer tentativa de leitura. Obviamente, eu havia colocado na pasta uns dois romances, medida preventiva contra o tédio. Obviamente, esqueci a garrafa de água mineral, o chocolate, alguns sanduíches.  Resultado, não li sequer uma única linha. E passei fome e sede. Além disso, uma dor indefinida começou a latejar na região lombar. Somente o estoicismo zen-budista (que não possuo) explica porque não soltei trezentos palavrões, amaldiçoando a circunstância.

A estrada deserta reflete a imensidão da planície, silêncio recortado por pequenos morros, taipas e algumas casas (que parecem abandonadas). Por algum tipo de casualidade inexplicável conseguimos não ficar encalhados em alguns dos muitos lamaçais que faziam parte da estrada. O canto das aves, o mugido das vacas e o ronco do motor do carro desmanchavam a tranquilidade da região. Olhando pela janela, vi um animal estranho se movendo na beira da estrada. Talvez tenha sido um tatu, mas não tenho certeza. Faltam-me conhecimentos de zoologia e óculos melhores.

A Coxilha Rica está se transformando em um imenso reflorestamento. Os milhões de pinheiros (Araucaria angustifolia), abatidos entre as décadas de 30 e 60 do século XX, foram substituídos por pinheiro americano (Pinus elliottii) – uma árvore de quinta categoria. Entre o campo e a cidade, como ensina Raymond Williams, o capitalismo não estabelece fronteiras para a ambição.

Quando o carro parou por alguns minutos, aproveitei a oportunidade para caminhar sobre a ponte do Rio Pelotinhas. Encantado com a beleza da vegetação, com os pássaros, com a força da água, imaginei que a felicidade deve morar naquela região – que fica distante de todos os problemas, de todas as chateações.

Solicitei uma nova parada alguns quilômetros depois. Diante da Igreja de São Sebastião, em Morrinhos, voltei no tempo. O menino que ia à missa nos domingos, conduzido pela mão de sua avó, reapareceu diante do adulto que me tornei. No mesmo instante em que recordei alguns acontecimentos ocorridos na metade dos anos 60, um pouco antes de regressar à cidade e à casa de meus pais, percebi que o passado está repleto de armadilhas. Há sempre o perigo de transformar em estátua de sal – assim como a esposa de Lot – aqueles que ignoram os avisos do destino e olham para trás.

Recusei rever o local onde estava situada a propriedade de meus avós. É mais divertido recriar ficcionalmente o mundo telúrico em que parte de minha família viveu. Mesmo que impreciso, composto por enganos e equívocos, ele sempre existirá como o lugar onde foram possíveis algumas das histórias que eu gosto de relembrar nas cada vez mais raras refeições familiares. Foi lá que minha mãe viveu, foi lá que meu pai a conheceu, foi lá que eu (por pouco tempo) e uma de minhas irmãs (por muito mais tempo) moramos.

A viagem prosseguiu. Perto de São Jorge, furou um pneu. Mais uma vez a sorte se manifestou. Fomos resgatados. Pareceu cena de filme de faroeste, a carroça em chamas, cercada por índios enfurecidos. Quando tudo parecia perdido, ouviu-se o clarim anunciando a Cavalaria. Divertido.

No final da tarde, depois que o compromisso que nos levou para tão longe da cidade se cumpriu, voltamos. Desta vez, por outro caminho, muito mais rápido, mais tranquilo. Quase um passeio.

Somando tudo, foram oito horas de viagem. Entrei no apartamento onde moro quase morto de cansaço. Meio quilo do pó (imagino) estava impregnado nas roupas, no sapato, na barba e no pouco cabelo que me resta. O banho demorado não diminuiu a fadiga. Bastou deitar na cama e, literalmente, desmaiar. No dia seguinte, como um lembrete de que a idade costuma cobrar um preço elevado por esse tipo de aventura, precisei ir à farmácia. Dois comprimidos de relaxante muscular possibilitaram uma sobrevida ao corpo dolorido.

Tenho pensado em voltar à Coxilha Rica. Talvez no próximo mês.   

3 comentários:

  1. O por do sol da Coxilha é um dos cenários mais lindos que já tive a oportunidade de ver, e aquele frio cortante, que dói nos lábios,nos olhos, nas mãos e nos ossos, ironicamente dá saudade.

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  2. Terra de encantos, principalmente descendo a serra em direção a estação Sargento Queiroz

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  3. Belíssimo relato. Também fiquei surpreso com a Coxilha, estive lá cumprindo um de meus ofícios (músico) e me diverti muito com o local e as pessoas. Lugar magnífico.

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