A maturidade literária é um estágio
difícil de ser alcançado. Somente os “eleitos” (seja o que isso possa
significar) conseguem chegar lá. São muitas as barreiras, são muitas as
promessas – que não se cumprem. Muita gente fica pela beira do caminho. Nenhuma
novidade.
Não levei a sério o texto da Carol
Bensimon, Faíscas, publicado naquela edição pouco séria da revista Granta (que perdeu o rumo e a sensatez tentando nomear os melhores escritores brasileiros abaixo dos 40 anos). Pareceu-me uma bobagem. Duas meninas em um road book, preenchendo os espaços
vazios com diálogos sobre a cor ideal para pintar os cabelos? Nonsense. Além
disso, há um visível ar de drama besta, típico dessas historinhas
pequeno-burguesas, em que os personagens descobrem a Europa antes do que o
próprio país. A isso se acresce o fato de que perdi meu tempo lendo o romance
anterior da Carol, Sinuca Embaixo d`Água (aqueles narradores múltiplos, todos
iguaizinhos, aquela tristeza exagerada, depressiva). Tô fora!, disse para mim
mesmo.
Tô dentro!, disse para mim mesmo, aceitando
o fato de que o primeiro capítulo de um romance está longe de representar o conteúdo
todo. De qualquer forma, a vida está repleta desse tipo de tropeção, faz parte
do show. Como exercício cristão, essas coisas de mea culpa e tolices
correlatas, só me sobra contar que comprei um exemplar de Todos Nós Adorávamos
Caubóis. Comprei desconfiando. Será que o terceiro livro (os contos do primeiro, Pó de Parede, são sensacionais) acerta na mosca ou é
mais um caso de mosca na sopa? Então, antes de adquirir o livro, pensei: vai
que a guria melhorou e eu estou patinando no pré-conceito? Mais ou menos uns dez
dias depois o livro estava em mãos. Li, de um fôlego só, absolutamente
surpreso, as primeiras cem páginas. Narrativa esteticamente encorpada, repleta
de nuances e revelações, Todos Nós Adorávamos Caubóis é um texto límpido,
bonito, que flui mansamente pelo olhar do leitor. Contra fatos não há
argumentos ou remendos, dizia minha avó. Então, nada mais me restou senão
entregar os pontos. Está cada vez mais difícil encontrar na literatura
brasileira contemporânea alguém que escreve assim, como estivesse
bebendo água. E que consegue misturar à qualidade o insuperável gostinho de
quero mais.
A história que une Cora (personagem e
narradora) e Julia Ceratti não é muito diferente de outras narrativas em que o
afeto dá as cartas (marcadas) em um jogo que nenhum dos participantes conhece
as regras. Alguma coisa parecida com erro e acerto, cada uma das duas mulheres tateando
no corpo da outra os elementos que compõem a liberdade. Comprovação elementar
de que não é fácil criar uma receita fashion wear que combine Penélope
Charmosa com botas Doc Martens.
Bastava olhar para mim com alguma
atenção. Aos dezesseis anos, eu ainda era o que os falantes de inglês chamariam
de tomboy. Em outras palavras,
digamos que as tias e as tias-avós adoravam me puxar em um canto a fim de
sugerir mudanças drásticas na minha aparência, afinal eu ficaria tão bem com um
vestidinho estampado e uma sandalinha, e por que eu não soltava o cabelo?,
cabelos soltos valorizariam muito os traços delicados do meu rosto.
Outra coisa bacana no texto da Carol é o
uso do dialeto regional. Embora não seja algo inovador, constitui uma forma de
dizer não à tese de que o Brasil foi unificado pela língua portuguesa. Eu sou
trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, como escreveu o Mário de Andrade, alertando para os perigos do reducionismo cultural. De qualquer
forma, seria um despropósito narrar uma longa viagem pelo interior do Rio
Grande do Sul (uma espécie de dívida moral do tempo da faculdade) e, no meio
de um diálogo, alguém pronunciar alguma(s) das palavras que caracterizam
o insonso linguajar que corrói o eixo Rio-São Paulo das telenovelas, conforme
determina o Padrão Globo de achatamento linguístico.
Julia me esperava ao lado de uma dessas
palmeiras. Usava uma jaqueta jeans com os botões fechados até em cima e uma
calça skinny bordô. Tinha mudado o
cabelo de forma radical; levemente ondulado, ele caía até os ombros, e sobre a
testa havia uma franja considerável, que chegava quase a cobrir suas
sobrancelhas. Nem com um milhão de chances seria possível adivinhar que essa
garota tinha crescido no interior do Rio Grande do Sul.
O homossexualismo feminino é um tema
delicado. Não faltarão piadinhas a respeito do amor que não diz o nome,
versão Lesbos. Nenhuma graça ou desgraça. Todos Nós Adorávamos Caubóis,
definitivamente, não é uma narrativa que defende bandeiras ou comportamentos. Não
quer discutir o outro lado da lua. A transgressão está em contar uma história
de amor enviesada, ligeiramente diferente dessas que estão amontoadas nas
prateleiras das livrarias. Nada mais. É o que basta.
Acompanhei a viagem das duas mulheres (Porto
Alegre, Antônio Prado, São Marcos, São Francisco de Paula, Cambará do Sul,
Caçapava do Sul, Minas do Camaquã, Bagé, Soledade) com o mapa do Rio Grande do Sul aberto,
imaginando caminhos, desenhando rotas, descobrindo uma parte do Brasil. Foi
bom. Foi muito bom.
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P. S.) Carol cultiva o estranho (e
delicioso) hábito de escrever frases inesperadas, dessas que modificam o olhar
do leitor, impondo um novo ritmo narrativo ou permitindo um breve instante de
interrupção na leitura – um ou dois segundos de intervalo em que o mundo adquire
novas cores:
Estou louca para ler algo dela, esses sulistas são incríveis...adorei sua resenha, só fez aumentar minha vontade ;)
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