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terça-feira, 3 de setembro de 2013

VIDAS PROVISÓRIAS

A literatura brasileira morre de medo da ficção política. Aliás, evita – sempre que possível – se comprometer. Prefere trabalhar com temas mais amenos. Nos últimos dez anos foram publicados centenas de romancezinhos fúteis sobre a eterna crise que envolve o ser e o estar no mundo cor-de-rosa dos conflitos amorosos burgueses. Em compensação, dá para contar nos dedos (de uma mão) as narrativas centralizadas na época da ditadura militar (1964-1985).

Vidas Provisórias, de Edney Silvestre, navega na contramão. Sem temor de colocar em primeiro plano as sessões de torturas físicas e psicológicas promovidas pelos órgãos de repressão política, conta – simultaneamente – duas histórias de exílio. Aproveitando personagens que já haviam aparecido em seus dois romances anteriores, Paulo (um dos meninos que protagonizam Se Eu Fechar os Olhos Agora) e Bárbara (filha de Major, o motorista do publicitário em A Felicidade é Fácil), Edney Silvestre escava fundo em cerca de trinta anos da história recente do Brasil.

Em 1970, Paulo Roberto Antunes, estudante de direito, confundido com um participante de grupo armado contrário ao governo, consegue sobreviver às atrocidades promovidas pelos militares brasileiros, nos porões dos órgãos da repressão política. Um dos torturadores é o irmão, Capitão Antonio Molina – que, seguindo a mais nobre e honrosa tradição fraterna, odeia com fervor o outro filho de seu pai.

Em 1991, Bárbara Costa, no mesmo instante em que aceitou um passaporte falso argentino, trocou o sobrenome por Jannuzzi. Deixando para trás a história da morte de seu pai, a mãe, o padrasto e as dificuldades financeiras, viaja para Estados Unidos, na vã esperança de dias melhores. Sem falar o idioma, eternamente com medo do Departamento de Migração, aceita trabalhar como faxineira.

Como um farrapo humano, doente, sem perspectivas de voltar ao Brasil, Paulo segue o roteiro geográfico comum a diversos sobreviventes da ditadura (Paraguai, Chile, Argentina, Suécia). As cicatrizes físicas desapareceram com o tempo, mas as lembranças se eternizam na memória.


Em Nova Iorque, Bárbara encontra Silvio – outro brasileiro, mas que possui um motivo específico para não voltar para o Brasil, AIDS, o corpo corroído com voracidade pela morte. Além das relações trabalhistas, que separam patrão e empregada, eles desenvolvem uma relação de amizade bastante estreita. Em alguns momentos, Silvio, como se tivesse fazendo um balanço de sua vida, revela detalhes da história da vida privada. Não são histórias edificantes. A luxúria sexual, a ganancia econômica e a futilidade tomam conta da parte que lhe cabe no relato.

Em Estocolmo, Paulo, aos poucos, vai reconstruindo a própria identidade. Com a ajuda de Anna consegue cidadania sueca, um trabalho na Unesco e um filho, Edward – uma homenagem ao amigo de infância, Eduardo, que o acompanhou na aventura relatada em Se Eu Fechar os Olhos Agora. Mas, infelizmente, essa tranquilidade não se mantém. O passado costuma reaparecer nas horas mais impróprias. A visita do irmão, em 1976, reabre as feridas emocionais, colocando em suspensão a estabilidade.

Bárbara, depois da morte de Silvio, sobrevive como pode. A comunidade brasileira reflete o inimaginável (prostituição, violências físicas, descaso com quem precisa de ajuda). O 11 de setembro de 2001 torna muito pior a situação dos imigrantes ilegais. Todo cuidado é pouco. A vida provisória se torna ainda mais provisória.

A história de Paulo escorre com rapidez. O nascimento do segundo filho, Joseph (Jo-Jo), a mudança para o continente, muitas viagens em função do trabalho, o crescimento dos filhos. Tudo é descrito de forma acelerada, sem muitos detalhes, como se houvesse urgência em deixar para trás o passado.

Em dezembro de 2001, Edward (nascido em 1975) está em Nova Iorque. Por um desses acasos que somente a literatura consegue explicar, ocorre aquilo que Goethe chamou de afinidades eletivas. Ele se encontra com Bárbara (nascida em 1974). O circulo se fecha. De forma complicada, a história de Paulo se une com a história de Bárbara.

Vidas Provisórias é um romance ágil, embora aposte – em alguns momentos – na velocidade excessiva. Através da invenção ficcional, Edney Silvestre reinventa o horror, a tortura e a história de uma geração que precisou sobreviver à ditadura militar. Enfim, resgata parte do corpo brasileiro que foi amputada pela força das armas.

Estocolmo, capital da Suécia
P.S.: O projeto gráfico de Vidas Provisórias flerta com o extravagante. O desenvolvimento das duas histórias não precisava ser demarcado por páginas coloridas. 

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