A literatura brasileira morre de medo da
ficção política. Aliás, evita – sempre que possível – se comprometer. Prefere
trabalhar com temas mais amenos. Nos últimos dez anos foram publicados centenas
de romancezinhos fúteis sobre a eterna crise que envolve o ser e o estar no
mundo cor-de-rosa dos conflitos amorosos burgueses. Em compensação, dá para contar
nos dedos (de uma mão) as narrativas centralizadas na época da ditadura militar
(1964-1985).
Vidas Provisórias, de Edney Silvestre,
navega na contramão. Sem temor de colocar em primeiro plano as sessões de
torturas físicas e psicológicas promovidas pelos órgãos de repressão política,
conta – simultaneamente – duas histórias de exílio. Aproveitando personagens que
já haviam aparecido em seus dois romances anteriores, Paulo (um dos meninos que
protagonizam Se Eu Fechar os Olhos Agora) e Bárbara (filha de Major, o motorista
do publicitário em A Felicidade é Fácil), Edney Silvestre escava fundo em cerca de
trinta anos da história recente do Brasil.
Em 1970, Paulo Roberto Antunes,
estudante de direito, confundido com um participante de grupo armado contrário
ao governo, consegue sobreviver às atrocidades promovidas pelos militares brasileiros,
nos porões dos órgãos da repressão política. Um dos torturadores é o irmão, Capitão Antonio Molina – que, seguindo a mais nobre e honrosa tradição
fraterna, odeia com fervor o outro filho de seu pai.
Em 1991, Bárbara Costa, no mesmo instante em que aceitou um passaporte falso argentino, trocou o
sobrenome por Jannuzzi. Deixando para trás a história da morte de seu pai, a mãe, o padrasto
e as dificuldades financeiras, viaja para Estados Unidos, na vã esperança de
dias melhores. Sem falar o idioma, eternamente com medo do Departamento de
Migração, aceita trabalhar como faxineira.
Como um farrapo humano, doente, sem
perspectivas de voltar ao Brasil, Paulo segue o roteiro geográfico comum a
diversos sobreviventes da ditadura (Paraguai, Chile, Argentina, Suécia). As
cicatrizes físicas desapareceram com o tempo, mas as lembranças se eternizam na
memória.
Em Nova Iorque, Bárbara encontra Silvio
– outro brasileiro, mas que possui um motivo específico para não voltar para o
Brasil, AIDS, o corpo corroído com voracidade pela morte. Além das relações
trabalhistas, que separam patrão e empregada, eles desenvolvem uma relação de
amizade bastante estreita. Em alguns momentos, Silvio, como se tivesse fazendo
um balanço de sua vida, revela detalhes da história da vida privada. Não são
histórias edificantes. A luxúria sexual, a ganancia econômica e a futilidade tomam
conta da parte que lhe cabe no relato.
Em Estocolmo, Paulo, aos poucos, vai
reconstruindo a própria identidade. Com a ajuda de Anna consegue cidadania sueca,
um trabalho na Unesco e um filho, Edward – uma homenagem ao amigo de infância,
Eduardo, que o acompanhou na aventura relatada em Se Eu Fechar os Olhos
Agora. Mas, infelizmente, essa tranquilidade não se mantém. O passado costuma
reaparecer nas horas mais impróprias. A visita do irmão, em 1976, reabre as feridas
emocionais, colocando em suspensão a estabilidade.
Bárbara, depois da morte de Silvio,
sobrevive como pode. A comunidade brasileira reflete o inimaginável
(prostituição, violências físicas, descaso com quem precisa de ajuda). O 11 de
setembro de 2001 torna muito pior a situação dos imigrantes ilegais. Todo
cuidado é pouco. A vida provisória se torna ainda mais provisória.
A história de Paulo escorre com rapidez.
O nascimento do segundo filho, Joseph (Jo-Jo), a mudança para o continente,
muitas viagens em função do trabalho, o crescimento dos filhos. Tudo é descrito
de forma acelerada, sem muitos detalhes, como se houvesse urgência em deixar
para trás o passado.
Em dezembro de 2001, Edward (nascido em
1975) está em Nova Iorque. Por um desses acasos que somente a literatura
consegue explicar, ocorre aquilo que Goethe chamou de afinidades eletivas. Ele se
encontra com Bárbara (nascida em 1974). O circulo se fecha. De forma
complicada, a história de Paulo se une com a história de Bárbara.
Vidas Provisórias é um romance ágil, embora aposte
– em alguns momentos – na velocidade excessiva. Através da invenção ficcional, Edney
Silvestre reinventa o horror, a tortura e a história de uma geração que
precisou sobreviver à ditadura militar. Enfim, resgata parte do corpo brasileiro
que foi amputada pela força das armas.
Estocolmo, capital da Suécia |
P.S.: O projeto gráfico de Vidas
Provisórias flerta com o extravagante. O desenvolvimento das duas histórias não
precisava ser demarcado por páginas coloridas.
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