A sala de aula é uma das primeiras batalhas que
a literatura precisa vencer. Essa façanha só se torna possível em
circunstâncias especiais. Por exemplo, quando professores e alunos se unem em torno de uma causa comum: os desdobramentos do mundo
ficcional. De uma maneira muito peculiar, esse é o tema do filme Dentro da Casa (Dans la Maison. Dir. François Ozon, 2012).
Germain (Fabrice Luchini), professor de
francês no Lycee Gustave Flaubert, assume uma nova turma, a 8ª C. Uma das
primeiras tarefas que solicita aos alunos, uma redação sobre os acontecimentos
do final de semana, confirma a sua frustração com a qualidade do ensino. Em tom
indignado, com a voz alterada, diz à esposa, Jeanne (Kristin Scott Thomas): O
pior não é a ignorância deles. É imaginar o amanhã, pois eles são o futuro. Os
filósofos reacionários predizem a invasão dos bárbaros. Mas eles já chegaram.
Estão nas salas de aula.
Esse juízo de valor mostra-se equivocado
quando constata que um dos alunos difere dos demais. Encantado pelo texto escrito
por Claude Garcia (Ernest Umhauer), Germain projeta no aluno o escritor que
nunca conseguiu ser. Imediatamente, sem perceber a extensão do que está fazendo,
começa a ministrar aulas extracurriculares de teoria da literatura para o rapaz.
A história pessoal de Claude evoca os
romances de Charles Dickens: filho único, precisando cuidar
de um pai tetraplégico, abandonado pela mãe, tímido, 16 anos, costuma se sentar na última fila da sala
de aula, lá onde você vê a todos e ninguém te vê.
Solitário, imagina um folhetim como tarefa
escolar. Para poder frequentar a casa de um colega, Rafael Artois (Bastien Ughetto), se oferece para lhe ensinar
matemática. A história do amigo,
em tudo diferente da vida suburbana e insipida que leva ao lado do pai,
delineia os elementos primordiais de uma narrativa de sedução amorosa. Como objeto do desejo, surge em
cena Esther (Emmanuelle Seigner), a mãe de Rafael. No texto escolar que entrega
a Germain, Claude escreve: Olho Esther e sua pele parece macia. Como uma maçã
a ser comida. A adolescência, território sagrado da perversidade, se alimenta
de fantasias sexuais.
Ao se apropriar literariamente de um
modo de vida que não lhe pertence, Claude, como compete a um escritor de
talento, posterga o desfecho ao máximo. Ciente de que o prazer de olhar pelo
buraco da fechadura é um dos grandes segredos da ficção, termina cada um dos
seus textos com a palavra “continua” entre parênteses.
O professor não resiste, fica curioso.
Quer saber o que acontece no capítulo seguinte. Sem poder distinguir se o que o
aluno está narrando está escorado na realidade ou na ficção, acaba enredado na
teia literária que está sendo construída ao seu redor. O envolvimento se acentua a cada sequência da narrativa. Coincidentemente, essa
estratégia está de acordo com uma das lições que – mais tarde – vai ministrar
ao aluno: Nada de chance para o leitor. Ele precisa estar sob pressão. O
leitor é como o sultão de Sheherazade: Se você me aborrecer, corto sua
cabeça. Mas, conte uma boa história e o sultão entrega seu coração. O sultão é
como todos nós. Precisamos de alguém contando histórias”. Inflamado pelo
discurso, Germain arremata: A vida sem histórias não vale nada.
Em compensação, em uma das narrativas
paralelas que constituem Dentro da Casa, contrasta o cinema e a literatura
com as artes plásticas contemporâneas. Jeanne (Kristin Scott Thomas), a esposa
de Germain, trabalha em uma galeria chamada Le Labyrinthe du
Minotaure. Como uma Ariadne a-pós-o-moderno, dessas que dispensam a ajuda de Teseu, movida pelo desespero de salvar a própria pele, ou seja, o emprego, procura por obras que – apesar das sutilezas das proposições teóricas – se mostram incapazes de construir
uma narrativa artística com um mínimo de coerência. Em efeito especular,
Germain explica para Claude que a péssima literatura se assemelha aos textos que acompanham os catálogos das exposições.
François Ozon, em livre adaptação de El
Chico de la ultima fila, texto teatral de Juan Mayorga, consegue realizar – sem
grandes estardalhaços feéricos – uma instigante brincadeira. Dentro da Casa,
ao misturar vários planos narrativos (as conversas conjugais entre Germain e
Jeanne, o vacuidade do mercado de artes plásticas, a vida burguesa da família
de Rafael e as histórias que Claude escreve ou inventa), multiplica ao infinito,
de forma lúcida e lúdica, o dialogo com os livros, com a tradição literária. Ou
seja, consegue integrar os enredos de Madame Bovary (Gustave Flaubert), O
Jovem Törless (Robert Musil), Teorema (Pier-Paolo Pasolini), Viagem ao
Centro da Noite (Louis-Ferdinand Celine), As Mil e uma Noites, e muitos
outros clássicos, na estrutura narrativa de um filme magnífico.
A cena final, que homenageia Alfred
Hitchcock, sintetiza o que está em jogo. O adolescente, maliciosamente satisfeito com os acontecimentos que ajudou a
desencadear (em alguns casos, de forma inconsciente), anuncia ao espectador do filme: O
Sr. Germain havia perdido tudo, sua esposa, seu trabalho, mas eu estava ali, ao
seu lado, pronto para contar-lhe uma nova história.
François Ozon, um dos mais brilhantes
diretores do cinema francês, dirigiu diversos filmes importantes: Sob a Areia (2000), Oito Mulheres (2002), Swimming Pool - À Beira da Piscina (2003), O Tempo que Resta (2005), Ricky (2009) e Potiche (2010)
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