O português Miguel Sousa Tavares colheu
os seus merecidos quinze minutos de fama com um romance de incontornável
qualidade: Equador. O trabalho seguinte, Rio das Flores, também é bom e
visivelmente superior a No Teu Deserto – uma narrativa frouxa.
Madrugada Suja, o quarto romance, mistura humor e melancolia em poções desmedidas, um pouco desta, menos daquilo, sem se importar muito com o andamento narrativo desigual – que flerta descaradamente com uma das significativas contradições dos romances realistas do século XIX, isto é, o conflito entre o bucolismo da área rural e os mecanismos de sedução do mundo urbano. Em todas as páginas da narrativa também há uma discussão (quixotesca) em torno das diferenças morais entre o certo e o errado.
O enredo gira em torno da
vida de Filipe Madruga, arquiteto paisagista, e que só tem o avô como parente
vivo (que reside nas lonjuras portuguesas de Medronhais da Serra). Funcionário público menor, aos poucos vai
descobrindo elementos da própria história: (...) aos trinta anos, a vida ainda mal começara a doer! A mais significativa revelação está
contida na carta que sua mãe, Maria da Graça, endereçou a Francisco, o marido,
pouco tempo antes de morrer. Depois de jurar amor eterno ao marido, confessou adultério
e que Filipe é filho do comborço. A carta jamais chegou ao conhecimento do
destinatário, pois foi retida por Filomena, mãe de Francisco – que no interesse
da harmonia familiar acreditou que não cabia promover a segunda morte da esposa
de seu filho.
A isso se acrescenta incidente próximo
da tragédia, ocorrido nos tempos em que Filipe frequentava a Universidade de
Évora. Por razões que estão fora de seu controle e dos valores que defende, não
consegue evitar que o fantasma do passado o visite – e de forma brutal. Ao
emitir parecer desfavorável à construção de um resort de luxo, acaba arrastado
por uma serie de acontecimentos vertiginosos – que multiplicam a sensação de
impotência. Por isso, movido pela racionalidade ou pelo desespero, adota o
procedimento mais radical possível. Um náufrago agarrando uma bóia encontrada
à deriva e mesmo antes de se afogar, Filipe, ao procurar pelo pai biológico,
interfere na vida política de Portugal. A conversa entre os dois é tensa,
repleta de arestas:
– Sabes de uma coisa? – Luis Morais
debatia-se ainda com a sua derrota. – Tu tiveste a sorte de nascer meu filho e
o azar de não teres sido educado por mim.
– Não, está enganado – respondeu Filipe,
calmamente. – É exactamente ao contrário: tive o azar de nascer teu filho e a
sorte de não ter sido educado por si.
Rompido o cordão umbilical que os une,
restam destroços, desentendimentos, complicações. Tanto que, ao se despedir,
Filipe determina o que está em jogo: Não sei qual é o seu limite. O meu é o de
não deixar que a tristeza de fazer isso seja mais forte do que o remorso de não
o ter feito. Peço desculpas, mas não vi outra saída.
Para o pecado cometido na juventude
também não há saída. Entretanto, no último momento, uma porta se abre
inesperadamente, mostrando o caminho da salvação.
Repleto de diálogos ágeis e cortantes, Madruga
Suja reafirma a lição de que a literatura não perde a qualidade quando faz
a defesa intransigente de valores éticos e morais.
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