Quem tem medo de Henry James? Perguntas
retóricas não exigem respostas. Embora, neste caso, como é de conhecimento
público, poucos são os leitores da ficção de língua inglesa capazes de esboçar
algum argumento coerente, que possa justificar o afastamento que existe entre o
público contemporâneo e um dos maiores escritores da história da literatura.
A desculpa utilizada pelos leitores mais
pragmáticos consiste em repetir ad nauseam que “nada acontece” nas narrativas
de Henry James. São páginas e páginas repletas de parágrafos longos e centenas
de palavras – que ficam rodopiando dentro das frases como uma espécie de
redemoinho posto lá, de propósito, para confundir o leitor. O desenvolvimento
arrastado do enredo (conjugado com monólogos interiores, reflexões filosóficas,
flash-backs e descrições detalhadas) multiplica de forma exponencial os pormenores
e as minúcias. Cada um dos romances, novelas, contos, peças de teatro e ensaios
se parece com uma daquelas tias antigas que, ao visitar os parentes, não se dá
por satisfeita senão quando nada mais resta para ser esmiuçado. E isso demora.
Muito.
Os leitores com alguma visão política
costumam lembrar que Henry James recortou o mundo de tal forma que as classes
subalternas se tornaram invisíveis. Parte dessa situação se explica por uma
intensa mobilidade geográfica dos ricos, que estão sempre chegando ou partindo
para terras distantes. De acordo com os textos de Henry James, os estadunidenses (leia-se: nouveaux riches) adoram
atravessar o Atlântico e beber na fonte civilizatória de Londres. Os ingleses –
que sempre tiveram imensa curiosidade pelo exótico – visitam lugares distantes como Nova York ou a
Europa continental (Itália, França, Grécia) e lá vivem as aventuras que o
dinheiro pode comprar. Como o mundo é pequeno e todos aqueles que integram o grand monde frequentam os mesmos ambientes, há – inevitavelmente, em algum
momento dessa azáfama nômade – muitos reencontros.
Henry James possuía uma técnica narrativa
refinada – e que se caracteriza pelo poder de aproximar o leitor da cena, como
se estivesse observando os acontecimentos pelo buraco da fechadura. Mesmo que
seja apenas em ficção, a sensação de participar da vida alheia é um poderoso
afrodisíaco.
Henry James e seu irmão, o filósofo William James |
Essa sensação está presente nas
histórias que integram o volume Vida de Artista – quatro contos sobre pintores.
Escritos em diferentes momentos, abordando aspectos diversificados da vida
amorosa dos personagens, esse conjunto temático disseca com vigorosa crueldade as
afinidades que (não) existem entre a literatura e as artes plásticas. Interessado
em pintura, assim como seu irmão William James, Henry foi aluno de William Morris
Hunt. Foi no atelier do professor que descobriu o mundo que envolve as tintas,
as telas, os modelos, a atmosfera intelectual. Henry, ao perceber que o irmão possuía
mais talento do que ele, abandonou o pincel. Foi um amigo, John La Farge,
que, ao visualizar o seu talento literário, o estimulou a pintar com palavras.
Ao longo do tempo, Henry James se tornou
amigo de outros pintores, principalmente James Whistler e John Singer Sargent,
acumulando conhecimento para, mais tarde, nos romances Roderick Hudson (1876)
e The Tragic Muse (1889), desenvolver com maior eficiência o tema.
Os quatro contos que integram Vida de
Artista possibilitam uma interessante perspectiva das sutilezas que estão em
jogo na vida social do século XIX. O aparente nunca corresponde ao real e o real
oscila entre o tragicômico e o patético.
A história de uma obra-prima (The
story of a masterpiece, 1868) abraça um sentimento perigoso: o ciúme. John
Lennox, viúvo, rico, 35 anos, ficou noivo da senhorita Marian Everett. John a viu, sentiu amor por ela e pediu a
sua mão. Ela, que não tinha um centavo, segurou com as duas mãos esse presente
dos deuses. John, em um momento de taedium vitae resolveu visitar o pintor Gilbert.
No estúdio, em lugar do amigo, encontrou um artista desconhecido. Depois das
apresentações formais, John descobre que Stephen Baxter, em um passado não
muito remoto, foi apaixonado por Marian. Se esse tema estivesse nas mãos de
outro escritor provavelmente haveria alguma complicação, talvez um round de
boxe ou, para manter acesa a chama da paixão, um duelo ao amanhecer.
Civilizadamente, John contorna todas as dificuldades e contrata o artista para
pintar a futura esposa. Então tá, agora vai ter confusão, antecipa o leitor
moderno, imaginando cenas de sexo selvagem e mais sangue. Nada disso. Acompanhada
pela tia, Marian posou para a pintura sem fornecer o mínimo espaço para alguma
travessura. Quando o retrato está quase pronto, John vai até o atelier e vê a
tela. Era Marian, de verdade, e Marian medida e observada pacientemente. Sua
beleza estava lá, bem como sua ternura e seu encanto jovial e sua graça etérea,
capturados para sempre, tornados invioláveis e perpétuos. Infelizmente, John
esperava ver algo diferente. O quê? Difícil precisar. A pintura não corresponde
à imagem da mulher com quem ele vai se casar.
A Madona do futuro (The Madonna of
the future, 1873) conta a história de Theobald, o artista que pintou apenas
uma obra-prima. Ou melhor, que não a pintou, pois, descontados os desacertos da
vida, o que importa é a possibilidade de tê-la pintado. Seguindo o olhar do
narrador, percebe-se uma linha de sombra na direção do desperdício. Ou seja, os
sonhos não conduzem à salvação, não fornecem nenhum tipo de compensação para o
imenso desgaste que acompanha o imobilismo.
O Coronel Clement Capadose, o divertido
protagonista de O mentiroso (The Liar, 1889), representa um quebra nos
padrões aristocráticos ingleses do século XIX. Ao construir uma “verdade”
particular, muito distante da realidade aceita pelos círculos sociais, ele se
torna uma espécie de urso de feira, uma anomalia simpática e inofensiva. Todas
as suas mentiras são perdoadas. O pintor Oliver Lyon, ao perceber essa situação,
fica atônito. Um mentiroso é um mentiroso e como tal deve ser denunciado,
argumenta. E isso significa, na avaliação do narrador do conto, que Para uma
pequena mentira contada sob pressão, um lugar conveniente geralmente pode ser
encontrado, como, por exemplo, uma pessoa que, em uma estreia de uma peça, se
apresenta com um recado do autor. Mas, a mentira exagerada é como o cavalheiro
sem um ingresso que se acomoda com um banquinho no meio da passagem. Talvez
eles (Oliver e o narrador) estejam com a razão, talvez quem possua um pouco mais
de coerência seja Everina Capadose – que apoia o marido em todas as suas
incursões pelo mundo da fantasia.
Retrato de Thomas Morus, pintado por Hans Holbein |
Em O Holbein de Beldonald (The
Beldonald Holbein, 1903), provavelmente a melhor história desta coleção, o
enredo desliza entre ciúme (querer manter o que se tem), cobiça (querer o que
não se tem) e inveja (não querer que o outro tenha). Lady Nina Beldonald,
cunhada da Sra. Munden, está relutante em posar para um retrato. A estadunidense
sempre encontra um motivo para adiar a tarefa. A última desculpa foi a
enfermidade da Sra. Dadd, sua dama de companhia. Enquanto espera pela substituta, a Sra. Louisa Brash, uma prima distante, Lady Beldonald se recusa a participar
de qualquer atividade social. Algum tempo depois, quando o narrador promove uma
pequena recepção à tarde, entre os convidados estão a Sra. Munden, Lady
Beldonald (que está acompanhada da Sra. Brash) e um pintor francês, Outreau. É o
amigo continental que chama a atenção do narrador para uma mulher: – Bonté
divine, mon cher, que cette vieille est donc belle! Quem? Ao descobrir que se
tratava de alguém vindo do outro lado do oceano, imaginou ser Lady Beldonald.
Estava enganado. Outreau aponta para Sra. Brash e, dono de um faro infalível
para o banal, decreta: é um Holbein! Estava se referindo a Hans Holbein (1497/8-1543),
pintor alemão que ficou célebre como retratista. Lady Beldonald, informada
do interesse dos pintores por sua dama de companhia, ficou incomodada. Ou
melhor, ficou indignada. Como era possível que eles estivessem falando da
beleza da outra, quando era ela quem merecia destaque? Tratava-se de um drama
em torno de pequenas coisas suprimidas e intensamente íntimas. A recepção se
dissipou rapidamente. Lady Beldonald, visivelmente ofendida, se recusa, mais
uma vez, a posar para a pintura. A Sra. Brash, que sempre negou a própria beleza,
por um instante apagou o brilho de sua protetora. (...) qualquer corda,
quando esticada demais, acabava por arrebentar – a lição se apresenta aos
alunos relapsos. Lady Beldonald mandou Louisa Brash de volta para Estados
Unidos. E o comentário do narrador sobre o episódio está sintetizado em uma
frase de efeito: A pequena cidade americana não era um mercado para Holbeins,
e o que aconteceu é que a pobre pintura antiga, uma vez banida de seu museu, e
não inspirando qualquer menção de que poderia novamente ser exibida, foi capaz
de operar uma revolução silenciosa, de, em sua hedionda desonra, virar a si
mesma contra a parede.
Henry James foi, antes de tudo, um
escritor que manejava a língua inglesa com maestria. Seus contos, inclusive os que integram Vida de Artista, são aulas
sobre a arte narrativa e o comportamento humano. Ter medo dele é ter medo da vida.
Um caminho possível para quem quiser conhecer um pouco da vida pessoal de Henry James passa pelo romance O Mestre, do irlandês Colm Tóinbín. Não é a única alternativa. Nem a mais difícil. Outra possibilidade é mergulhar na obra, pois há dezenas de traduções – seja dos romances, seja de parte dos contos.
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