No ano de 1868, durante o tumultuado
reinado de Sua Majestade Católica Isabel II de Bourbon, rainha de España, as
conspirações políticas e os desencontros amorosos se misturam nas ruas de
Madrid de tal forma que – mesmo para aqueles que conseguem manter a sensatez em
tempos de crise – torna-se difícil distinguir o correto do errado, os maridos
mansos dos furiosos, a ingenuidade do oportunismo político.
Nesse momento, a encruzilhada que a
História costuma chamar de progresso devora os últimos traços de humanidade. A
honra, a coragem e a ética foram substituídas por modas do momento, situações
fugazes e mutáveis. Ou seja, por vilania, traição e egoísmo – artigos com maior
demanda econômica na vida social. Para utilizar as palavras de Luis de
Ayala-Velate y Vallespin, marquês de los Alumbres, a nobreza autêntica, a
antiga, não se fez contrabandeando tecidos ingleses, e sim pelo valor da
espada.
– O senhor nasceu tarde, dom Jaime –
disse por fim, com voz neutra. – ... Ou não morreu no momento oportuno.
Fitou-a sem ocultar surpresa.
– É curioso que diga isso.
– O quê?
– Morrer no momento oportuno. – O mestre
de esgrima fez um gesto evasivo, como se se desculpasse por continuar vivo. O
rumo da conversa parecia diverti-lo, mas era evidente que não brincava. – Neste
século e a partir de certa idade, morrer como se deve está cada vez mais
difícil.
– Gostaria muito de saber o que o senhor
chama, mestre, de morrer como se deve.
– Creio que a senhora não entenderia.
Sempre há uma história a contar. Em
algumas delas (principalmente nas que destoam das fábulas morais), percebe-se
que há matizes muito sutis na violência e que a neutralidade é uma abstração
epistemológica. Quem não toma partido, corre o risco de ser agredido por todos
os contendores.
Alheio ao tumulto que ocorre fora da
sala de armas, Jaime Astarloa, protagonista do romance O Mestre de Esgrima,
escrito por Arturo Pérez-Reverte, procura sobreviver. Não é tarefa de fácil
execução – principalmente para um homem que apresenta Sempre esse ar de eterno
estrangeiro, como ausente, como se fosse partícipe de outro mundo. Aos 56
anos, dos quais 30 foram utilizados como professor de esgrima, ele quer viver
os últimos dias de sua vida sem grandes incômodos. Quer esquecer O silencio de
todos os fantasmas que a gente foi deixando para trás. Como Enéias ao fugir de
Tróia.
São os versos de Lord Byron, The devil
speaks truth much oftener than he’s deemed / He has an ignorant audience... (O
Diabo diz a verdade com maior frequência do que se pensa / Mas tem uma plateia
ignorante...), recitados por Adela de Otero, que estabelecem um novo paradigma
para o mestre-de-armas. No início, seduzido pela beleza da dama, seja por inocência,
seja por escrúpulos intelectuais, não entende que a ponta do florete (ou do
sabre) coloca em jogo questões mais amplas do que a ameaça de acertar o corpo
do adversário. Somente quando está completamente atolado é que pressente que
está pisando em areia movediça.
Intrigas políticas assumem o
proscênio. Interesses diversos são revelados por trás das aparências sociais. A narrativa,
que parecia uma crítica de costumes, se transforma em arremedo de romance
policial. O passado heroico, em que a consistência moral dos homens possuía a
mesma qualidade da têmpera do aço com que são forjadas as espadas, foi
substituído pela crueldade e pelo distanciamento emocional.
Assassinatos, documentos
comprometedores, chantagens, golpes de Estado – um conjunto de situações inesperadas
quebra a tranquilidade – proporcionando um grande dinamismo narrativo para esse romance de entretenimento que é O
Mestre de Esgrima.
A primeira vítima, o marquês de los
Alumbres, seduzido pelo perigo, não consegue colocar em prática um de seus mais
interessantes aforismos: Há que temperar a salada com todos os molhos,
principalmente em matéria de política e de mulheres, sem deixar que nem aquela
nem estas nos causem indigestão. Infelizmente, talvez por acreditar que controla
o jogo, não consegue apreender a lição proposta por Jaime Astarloa: Em esgrima,
o simples é inspiração. O complexo é técnica.
Ao final de O Mestre de Esgrima, um
duelo recupera uma cena somente possível nos melhores folhetins de
capa-e-espada do século XVIII. No momento em que as lâminas dos floretes decidem
o destino dos personagens, os valores propostos pelo código de ética romântico entram
em choque com o mundo realista – fraturado, incapaz de entender a tradição.
Arturo Perez-Reverte nasceu em Cartagena, España, em 1951.
Alguns de seus livros foram traduzidos para 30 idiomas. Entre outros, As
Aventuras do Capitão Alatriste foi adaptado para o cinema.
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