Uma adolescente, de idade
indefinida, 14, 15 anos, moradora de uma cidade minúscula, Santana do Morro
Verde, localizada em lugar impreciso, resolve contar uma história estranha, que
parece não ter pé nem cabeça, mas que, de uma forma ou de outra, anuncia –
lentamente – uma constelação de questões, e que, em algum
momento, se tornarão fundamentais. Essa é a espinha dorsal de Aqui, no Coração
do Inferno, novela escrita por Micheliny Verunschk. A menina, inominada no
princípio, enfrenta as diferenças entre a realidade e a ficção criando um
espaço narrativo particular, onde encaixa personagens complicados como o seu
pai, o delegado, e o prisioneiro, um menino de uns 14 anos, algemado na cozinha,
acusado de matar várias pessoas. Também informa que pesa sobre o réu a acusação
de canibalismo. Durante quatro dias de chuva, que interdita a estrada que liga o
vilarejo com a civilização, o tempo cronológico desaparece, quer dizer, ele continua
a escorrer como a areia dentro da ampulheta, mas institui uma desconexão, cria
uma redoma, isolando o centro dos acontecimentos do mundo exterior. Nesse
interstício, que parece natural, mas que não o é, pois, apesar do isolamento,
nada se mantém em suspensão, ocorre o desenrolar do fio narrativo, começo, meio
e fim, nesta ordem, embora o desfecho seja dissonante ou desafinado,
discordante do andamento de todo o resto, pois conjuga a surpresa, a última peça
do quebra-cabeça mostrando o que não havia sido antevisto. É como se fosse
deflagrado um tiro, onde o que assombra não é o barulho do disparo, mas o
clarão, o relâmpago artificial, o momento em que o espaço-tempo se modifica, revelando que alguém foi atingido. Enquanto a tempestade não se
esgota, o texto se esparrama por 121 páginas e 21 capítulos e centenas de
parágrafos. Com a limpidez coloquial da prosa que se confunde com a poesia, a
linguagem se impondo sobre o enredo, muitas vezes desviando o olhar do leitor,
mostrando alguns dos elementos menos importantes e que estão em cena, a
narrativa avança vorazmente. Eu acho que nem tudo precisa ser explicado numa
história. Se precisasse, não faria sentido existir a imaginação, afirma a
narradora, criando novas expectativas ou realçando velhas certezas. A união entre
o antes e o depois completa a narrativa circular – e nesse traçado, que tinha
tudo para ser parábola ou elipse, a inteligibilidade aparece de tocaia,
surpreendendo o leitor: são as páginas finais que garantem a sustentação para
um texto que simulava estar escorado na areia movediça. Mas, antes, bem antes
das cenas finais, a educação sentimental da narradora oscila entre o abismo
sedutor projetado pelo rapaz algemado na cozinha e a transparência sexual
oferecida por Luís, um colega de escola. Entre este e aquele, não há como dizer
não para a oportunidade, ninguém desperdiça ou nega o sabor agridoce da vida,
clausura de freira não rima com a curiosidade. Então, o que tinha que acontecer
aconteceu (e não importa se aconteceu mesmo ou não, nessa tessitura somente é
verdade o que é narrado ficcionalmente). Mas, também sucedem outras coisas,
muitas outras, a existência humana não se modifica porque uma garota resolveu
tomar uma atitude diante dos fatos da vida ou gosta de se levantar no meio da
noite para vasculhar os inquéritos que o pai traz para casa. Somando tudo, a
união das pontas soltas da linha, quando encontram o resto da tapeçaria
narrativa, revela um desenho cruel, a maldade acompanhando todas as histórias.
Dizem que o destino nunca chega atrasado aos seus compromissos. Aqui, no
Coração do Inferno (novela e novelo que simulam uma espécie de faroeste
caboclo) aborda as profundezas da História do Brasil com coragem e
sensibilidade.
quarta-feira, 31 de agosto de 2016
quinta-feira, 25 de agosto de 2016
CINQUENTA E CINCO MÁXIMAS, PENSAMENTOS E REFLEXÕES DO MARQUÊS DE MARICÁ
– Há tolos malignos que fazem mais dano
e males que velhacos consumados.
– Há muitos homens que, para escaparem
de si mesmos, importunam aos outros com visitas.
– Somos muito generosos em oferecer por
civilidade o que bem sabemos que por civilidade se não há de aceitar.
– A companhia dos livros dispensa com
grande vantagem a dos homens.
– Não há inimigos desprezíveis, nem
amigo totalmente inútil.
– A força sem inteligência é como o
movimento sem direção.
– Somos benfazentes mais vezes por
vaidade que por virtude.
– Os homens afetam desinteresse para
melhor promoverem os seus interesses.
– Muitos homens são louvados porque são
mal conhecidos.
– Uma grande qualidade ou talento
desculpa pequenos defeitos.
– O interesse adota e defende opiniões
que a consciência reprova.
– Os nossos maiores inimigos existem
dentro de nós mesmos: são os nossos erros, vícios e paixões.
– A vida humana seria incomportável sem
as ilusões e prestígios que a circundam.
– O medo faz mais tiranos que a ambição.
![]() |
Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), Marquês de Maricá |
– Nada incomoda tanto aos homens maus
como a luz, a consciência e a razão.
– A maior prova da insignificância ou
santidade de um sujeito é não ter um só inimigo ou invejoso.
– Os patriotas dizem em voz alta que é
doce morrer pela pátria, mas em segredo reconhecem que é mais doce viver para
ela e à custa dela.
– Sempre haverá mais ignorantes que
sabedores enquanto a ignorância for gratuita e a ciência dispendiosa.
– Os bens que a ambição promete são como
os do amor, melhor imaginados do que conseguidos.
– Não é a fortuna, mas juízo somente, o
que falta a muita gente.
– Querendo parecer originais, nos
tornamos ridículos ou extravagantes.
– As opiniões de um século causam risos
ou lástimas em outros séculos.
– Mudai um homem de classe, condição e
circunstâncias, vós o vereis mudar imediatamente de opiniões e de costumes.
– A sinceridade é muitas vezes louvada,
mas nunca invejada.
– Há crimes felizes que são reputados
heroicos e gloriosos.
– Os homens mais respeitados não são
sempre os mais respeitáveis.
– Os homens, por não desagradar aos maus
de quem se temem, abandonam muitas vezes os bons a quem respeitam.
– Quando a cólera ou o amor nos visita,
a razão se despede.
– O invejoso é tirano e verdugo de si
próprio: ele sofre porque os outros gozam.
– O silencio é o melhor salvo-conduto da
mais crassa ignorância, como da sabedoria mais profunda.
– Os bens que a virtude não dá ou não
preserva são de pouca duração.
– Não é dado ao saber humano conhecer
toda a extensão da sua ignorância.
– Ninguém mente tanto nem mais do que a
História.
– A imaginação é o paraíso dos
afortunados e o inferno dos desgraçados.
– É mais útil algumas vezes a extirpação
de um erro que a descoberta de muitas verdades.
– O pródigo pode ser lastimado, mas o
avarento é quase sempre aborrecido.
– Mudamos de paixões, mas não vivemos
sem elas.
– A velhice reflexiva é um grande
armazém de desenganos.
– Nas revoluções políticas, os povos
ordinariamente mudam de senhores sem mudarem de condições.
– Os benefícios mal empregados se
convertem em malefícios.
– Os elogios de maior crédito são os que
os nossos inimigos nos tributam.
– Os vícios nos velhos são inimigos
acastelados que a morte pode somente expurgar.
– Fingimo-nos esquecidos quando nos não
convém parecer lembrados.
– Queixam-se os ricos de poucos cômodos
nas suas casas; nas dos pobres, ainda que pequenas, sempre sobeja muito espaço.
– Há muita gente que procura apadrinhar
com a opinião pública as suas opiniões e disparates pessoais.
– Não se pode formar bom conceito de
quem não tem boa opinião de pessoa alguma.
– Em certas circunstâncias o silêncio de
poucos é culpa ou delito de muitos.
– A riqueza dos tolos é o patrimônio dos
velhacos.
– Dói mais ao nosso amor-próprio sermos
desprezados, do que aborrecidos.
– Os velhos ruminam o pretérito, os
moços antecipam e devoram o futuro.
– A ambição é um enredo que nos enreda
por toda a vida.
– O órgão que mais abusamos na mocidade
é ordinariamente a sede de nossos males na velhice.
– As virtudes são econômicas; mas os
vícios, dispendiosos.
– A impunidade é segura, quando a
cumplicidade é geral.
– Os maus não podem viver em solidão:
têm medo e horror de si mesmos.
terça-feira, 23 de agosto de 2016
A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO
A história das mulheres sempre foi a
história de quem se submete ao poder masculino. Essa afirmativa, atualmente,
não pode (nem deve) ser considerada como exata. Mas,... Houve um tempo (que não
está distante, nem desaparecido) em que as mulheres, por diversos motivos
(sobrevivência financeira, emocional, social,...), precisavam abdicar de seus
sonhos em favor de uma vida insípida, recatada e voltada ao mundo doméstico e
domesticado.
Um desses casos está retratado na figura da protagonista de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, romance de Martha
Batalha. Na década de 40 do século passado, momento histórico em que o
mundo feminino estava atrelado aos grilhões do casamento, quase todos os sonhos
de liberdade de Eurídice Gusmão foram sufocados. Casada com Antenor, um
funcionário do Banco do Brasil, mãe de dois filhos, Afonso e Cecília, em determinado
momento Eurídice assume uma persona que destoa da mulher forte e inventiva que
ela era: Aquela era a mulher comportada, do jeito que Antenor queria. Uma
mulher dedicada à casa e às crianças, e que agora se deitava na mesma hora que
ele, e não se levantava mais cedo para se entreter com a máquina de costura.
Uma mulher que permanecia calada ao seu lado enquanto ele assistia à TV, e que
lhe oferecia a testa olhando ligeiramente para baixo, quando ele saía ou
chegava do trabalho. Era tudo o que Antenor sempre quis.
Quer dizer, o que ele sempre quis foi esquecer que na
noite de núpcias houve um incidente – mas que repercutiu por toda a vida do
casal. Eurídice não sangrou. Antenor, nas Noites de Choro e Uísque, costumava
reclamar da vagabunda que não se manteve pura para o marido na noite de
núpcias. Eurídice precisou carregar por toda a vida essa culpa por algo que, embora lhe fosse atribuído, não constituía a verdade, pois nunca havia se deitado com homem antes do casamento.
No universo familiar, Havia a convicção
de que Eurídice só podia ser levada a sério quando dizia que o jantar estava na
mesa ou que era hora de acordar para a escola. Nos poucos momentos em que ela tentou
romper com a posição passiva que lhe foi determinada pela estrutura familiar as
reações antagônicas foram tão intensas que nada lhe restou senão a apatia, o
embotamento mental e o cansaço.
Inicialmente, na juventude, quis estudar flauta.
O pai impediu que os estudos musicais fossem adiante. Depois de casada, tentou ser
uma grande cozinheira. Copiou as receitas que elaborou em um caderno, talvez
pudesse publicar um livro. O marido ao ver tamanho esforço, riu das pretensões
da esposa: Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma
dona de casa? Em determinado momento, comprou uma máquina de costuras. Ao
perceber que tinha facilidade para costurar, montou um ateliê em casa. O
marido, ao tomar conhecimento do empreendimento, vociferou: Então eu me mato
de trabalhar naquele banco pra você ter do bom e do melhor e descubro essa
feira livre aqui em casa? E, para deixar bem claro a sua visão do mundo,
arrematou: Uma boa esposa não arranja projetos paralelos. Uma boa esposa só
tem olhos para o marido e os filhos. Eu tenho que ter tranquilidade pra
trabalhar, você tem que cuidar das crianças.
![]() |
Largo do Estácio, Rio de Janeiro, anos 40 |
Guida apostou no amor. Fugiu de casa com
o namorado. Viveu um conto de fadas – nos primeiros meses de casamento.
Depois, foi abandonada pelo marido. Grávida, sem dinheiro ou qualificação
profissional, precisou superar muitos obstáculos. Foi Filomena, prostituta
aposentada, que se sustentava cuidando dos filhos de outras mulheres, quem a
salvou da miséria. Guida organizou a creche e criou, apesar das dificuldades, o
filho. A derrocada final ocorreu vários anos depois, quando Filomena adoeceu. A
sífilis cobrou, com juros, os excessos do passado.
![]() |
Cinelândia, Rio de Janeiro, anos 40 |
As histórias desencontradas das duas
irmãs, Eurídice e Guida, e que se passa entre os anos 40 e 60 do século XX, poderiam ser descritas como um conjunto de tragédias ficcionais
da pequena burguesia carioca. Exceto por um detalhe. Há um componente
de veracidade em todos esses episódios que não pode ser desprezado. Como alerta
a narradora, no capítulo introdutório: Muitas das histórias descritas neste
livro de fato aconteceram e, para que não restem dúvidas, um esclarecimento
final: (...) Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas
avós. Com um pé na realidade e outro na ficção, o livro mostra o que há de monstruoso quando a criatividade é podada pelo autoritarismo.
Somente mais tarde, muito mais tarde, Guida e Eurídice conseguem construir algum espaço próprio e, assim, respirar um pouco de ar puro. Ou melhor, conseguem fornecer um pouco de visibilidade à vida invisível das mulheres.
Somente mais tarde, muito mais tarde, Guida e Eurídice conseguem construir algum espaço próprio e, assim, respirar um pouco de ar puro. Ou melhor, conseguem fornecer um pouco de visibilidade à vida invisível das mulheres.
Em tempo:
1) há um personagem secundário muito
interessante, Zélia – e que poderia ser aproveitada em outra narrativa. Rainha da fofoca e da maledicência, ela vive na vida dos
outros a vida que nunca teve.
2) embora não seja exatamente uma narrativa feminista, e sim um romance de costumes, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão revela que a violência simbólica, instituída pelo phallus, torna fracos todos os homens. Ou seja, eles não dispõem de uma couraça contra as adversidades. Todos aqueles que entram em cena, no romance, estão desprotegidos contra as adversidades da vida. O machismo de Antenor se desmancha no homem patético, que, de pijama e chinelo, se prepara para dormir cedo. Marcos, o primeiro marido de Guida, típico “filhinho de papai”, pode ser resumido em um único adjetivo: covarde. João, o farmacêutico, não passa de um miserável que se aproveita da desgraça alheia. A personalidade de Antônio, o segundo marido de Guida, é frouxa – ele é um dependente emocional da mãe. O orgulho de Manuel, pai de Guida e Eurídice, o impede de perdoar Guida. Os meninos (Francisco, Afonso) não possuem voz. Enfim, não há salvação para os homens.
TRECHO ESCOLHIDO
As tardes na sala de estar, encarando a
estante de livros. De vez em quando Das Dores saía da cozinha para olhar a
patroa, os pés esparramados nos chinelos, os braços apoiados na barriga, um
deles segurando a colher de pau. Eurídice nem notava, ou fingia não notar. A
empregada voltava um pouco triste para a cozinha, balançando a cabeça em
negativo. Quando Cecília e Afonso chegavam Eurídice disfarçava e olhava para
outros lugares, e quando Antenor chegava ela disfarçava ainda mais, que não
queria dar satisfações ao marido.
Talvez tenha sido a constância. Anos e anos sentando-se no mesmo lugar, encarando o vazio na forma de estante. Ou talvez tenha sido porque tinha que ser. O fato é que nessa nova temporada de olhares perdidos Eurídice começou a se sentir diferente. Era uma sensação bastante leve no começo, quase como uma cosquinha. Percebeu que a sensação só aparecia quando ela estava sentada no mesmo lugar, olhando para o mesmo ponto.
Eurídice passou a sentar-se em seu posto menos para olhar o nada e mais para esperar a sensação chegar. A sensação chegava, e encontrava no silencio o espaço para crescer. E foi assim que a sensação aumentou até ser vista por Eurídice, e Eurídice viu que a sensação era isso. A sensação era o dom de ver.
Eurídice viu a estante de livros na estante de livros.
Ela viu a estante de livros.
Levantou-se e passeou a mão direita pelas lombadas. Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Candido. Virginia Wolff e George Eliot, Simone de Beauvoir e Jane Austen. Machado e Lima Barreto, Hemingway e Steinbeck. Alguns livros ela tinha lido e esquecido, outros tinha comprado e esquecido de ler. Alguns foram acrescentados por Antenor, que comprava livros como quem compra lanternas: é bom ter em casa os maiores pensadores do mundo, para se um dia precisarmos deles.
Era uma biblioteca sólida. Voltou para o sofá na companhia de um livro, e pela primeira vez em muito tempo dedicou às páginas sua total atenção. Depois pegou outro, e mais outro, e foi ligando os pontos imaginários que faziam de todos aqueles textos apenas um.
Dessa vez Eurídice colocou um de seus vestidos de sair para ir ao Centro comprar uma máquina de escrever. De volta à casa ela abriu espaço na mesa do escritório que até então tinha sido de Antenor. Mandou Das Dores encontrar outro lugar para as apostilas de contabilidade que ele teimava em guardar desde os dezoito anos. Colocou sobre a mesa a máquina de escrever Olivetti e ficou procurando as letras pelo resto da tarde. Tec tec tec era um barulho bom de se ouvir, Das Dores pensou. Enquanto o barulho existisse ninguém na casa estaria olhando para a estante de livros.
Tec tec tec foi o som daqueles tempos. No começo eles eram um pouco lentos, tipo um tec aqui e outro ali. Depois se transformaram num único e constante som, um tectectectectectec que preenchia a tarde inteira, e era tão intenso que deixou de ser percebido como ruído.
terça-feira, 16 de agosto de 2016
MORTE SÚBITA
O texto literário de ficção não possui
compromisso com a distinção entre a verdade e a mentira (conceitos fluídos e de
difícil comprovação). Sob esse dístico, o mexicano Álvaro Enrique escreveu um romance que desafia as classificações acadêmicas – embora, muitos críticos não tenham o mínimo
escrúpulo para sacar do coldre uma daquelas palavras mágicas com que costumam rotular
tudo o que foge da normalidade: pós-moderno. De qualquer forma, através de
capítulos curtos (encadeados em ritmo de contraponto), Morte Súbita mistura
em um liquidificador ficcional parte das histórias políticas, religiosas e
artísticas de Espanha, Inglaterra, Vaticano e México. Ao mesmo tempo, envereda
por um caminho literário pouco trilhado, desses que se recusam a se tornarem nítidos – o desejo mais significativo dessa proposta não é explicar, é complicar. Não bastasse, o
texto está repleto de um humor fino, pouco convencional, onde nada está a salvo
da ironia e da crítica.
![]() |
Álvaro Enrique |
Através de uma partida de pallacorda (um
esporte ancestral do tênis) entre o artista plástico italiano Michelangelo
Merisi de Caravaggio, (1571-1610) e o poeta e ensaísta espanhol Francisco Gómez de
Quevedo y Santibañez (1580-1645), o romance mapeia uma serie de temas paralelos,
todos imprescindíveis para o adequado entendimento do inicio da modernidade: o
autoritarismo político e social, a reforma protestante e a contrarreforma
católica, o mecenato artístico, o surgimento da burguesia e, não menos importante, a ascensão e queda
da honra cavalheiresca. Além disso, abusando da fluidez
narrativa, o narrador (onisciente, em terceira pessoa, esbanjando erudição)
contrapõe os atos “civilizatórios”, praticados pelos europeus, com a
colonização do México.
![]() |
Caravaggio (autorretrato) |
Em outro plano narrativo, o chiaroscuro,
que caracteriza a pintura de Caravaggio, fornece visibilidade às nuances
decorrentes da luta política e econômica que é travada nos bastidores do
Vaticano. A contraproposta, expressa no maneirismo reacionário da poesia e da prosa de Quevedo, procura esconder as diferenças essenciais que separam a nobreza e a população
sem propriedades ou títulos nobiliárquicos.
No meio desse turbilhão, os dois artistas em muitas coisas são semelhantes. Talvez a maior aproximação ocorra em torno da questão sexual. Em todas as páginas do romance, considerando as diferentes preferências e oportunidades, Caravaggio e Quevedo estabelecem como meta fundamental da existência levar alguém para a cama. Ou para algum canto escuro. Lugares onde possam praticar (sem interrupção) quaisquer transgressões que considerem excitantes. Evidentemente, essas ações estão conectadas com incontáveis perigos. Ou prazeres. Ou as duas coisas. E que estão representadas no duelo entre visões antagônicas de mundo que ocorre na quadra de pallacorda. Confirmando que os jogos não devem ser reduzidos a uma guerra por outros meios, a tensão sexual (Eros e Thanatos) entre os dois homens não diminui com a troca de golpes e contragolpes. Talvez, através de uma metáfora incomum, queiram expressar a ideia de que a morte e o esporte são apenas faces da mesma moeda.
No meio desse turbilhão, os dois artistas em muitas coisas são semelhantes. Talvez a maior aproximação ocorra em torno da questão sexual. Em todas as páginas do romance, considerando as diferentes preferências e oportunidades, Caravaggio e Quevedo estabelecem como meta fundamental da existência levar alguém para a cama. Ou para algum canto escuro. Lugares onde possam praticar (sem interrupção) quaisquer transgressões que considerem excitantes. Evidentemente, essas ações estão conectadas com incontáveis perigos. Ou prazeres. Ou as duas coisas. E que estão representadas no duelo entre visões antagônicas de mundo que ocorre na quadra de pallacorda. Confirmando que os jogos não devem ser reduzidos a uma guerra por outros meios, a tensão sexual (Eros e Thanatos) entre os dois homens não diminui com a troca de golpes e contragolpes. Talvez, através de uma metáfora incomum, queiram expressar a ideia de que a morte e o esporte são apenas faces da mesma moeda.
![]() |
Francisco de Quevedo |
Enquanto os jogadores se movimentam para
lá e para cá, cabeças rolam – literalmente. Os cabelos de Ana Bolena, logo após
a sua decapitação, serviram de enchimento para quatro bolas de pallacorda.
Outras peças capilares também se transformaram em equipamento esportivo – comprovando que
a vida dos homens e das mulheres está à mercê da vontade dos reis. Ou das
apostas que se multiplicam entre aqueles que estão assistindo o embate. O valor
da vida (ou da honra) de um indivíduo somente pode ser aquilatado pela
quantidade de dinheiro que movimenta.
Por fim, há o horror construído pelos
espanhóis. Os rios de sangue produzidos pelos sofrimentos de Moctezuma II,
Cuauhtémoc, Tletlepanquetza e Malitzin (além de milhares de outros corpos
astecas) estabelecem uma nova hidrografia em terras mexicanas. Ao longe, a Espanha
e a Igreja Católica aplaudiram a violência praticada por Hérnan Cortés de Monroy
y Pizarro Altamirano, primeiro Marquês do Vale de Oaxaca (1485-1547), que, como um
monstro ávido por destruição, não teve escrúpulos para extinguir uma
civilização (em muitos aspectos mais avançada do que a Europa). Naquele momento histórico, nenhuma
selvageria foi considerada excessiva, pois tinha como objetivo conseguir um bem maior – alguns
quilos de ouro.
![]() |
Hérnan Cortés |
Morte Súbita, romance com raízes
históricas, construído como ficção, consegue, com habilidade narrativa,
embaralhar a grandiosidade da tragédia e a banalidade da comédia de costumes.
Procurando romper com alguns paradigmas formais do discurso clássico do romance, Álvaro Enrique consegue elevar a arte literária e, em consequência, produzir um texto importante para a discussão travada pela teoria sobre o entrecruzamento entre a História e a ficção.
Procurando romper com alguns paradigmas formais do discurso clássico do romance, Álvaro Enrique consegue elevar a arte literária e, em consequência, produzir um texto importante para a discussão travada pela teoria sobre o entrecruzamento entre a História e a ficção.
TRECHO ESCOLHIDO
O duque perdeu a compostura que vinha conservando a duras penas desde o início da partida ao ver como o lombardo havia encaçapada a bola no ponto anterior. Caralho, disse. Barral murmurou ao seu ouvido: Estamos bem arrumados, chefe. Nenhum dos dois jamais tinha visto uma paralela como aquela, tão veloz que era quase invisível, tão precisa que parecia, mais que ter entrado no buraco matador, ter sido tragada pelo muro.
O duque pediu tempo e chamou seu valido. O poeta continuava a sentir a vitória ao alcance da mão e estava convencido de que a fuzilada de seu oponente fora apenas fruto do acaso. Vimos como ele passou a partida inteira tentando acertar, disse ao duque, e só agora conseguiu, sem dúvida foi sorte. O duque balançou a cabeça. Barral ergueu um dedo, pedindo licença para intervir. Que é?, perguntou o chefe. Também pode ter sido encenação para nos fazer apostar tudo. Uma sombra de dúvida atravessou o rosto do poeta. O homem está morrendo de ressaca, disse; duvido que ele tenha sido capaz de aguentar a partida inteira só para ganhar uns trocados. Bah, disse o duque. Por ora, esquece o efeito no saque e manda a bola para o fundo da galeria, para que o cadoz não fique tão perto dele e tenha que lançá-la em curva.
O poeta voltou ao seu campo. Tenez! Mandou uma bola lenta e sem efeito que deveria cair como uma bexiga no canto do fundo da cobertura. Acompanhou sua ascensão e notou, desde que começou a descer, que a colocara exatamente onde queria. Ia quicar estranho, ia cair num lugar incômodo, o italiano ia ter que pegá-la num ponto distante e, com sorte, de revés.
O duque chegou a gritar: Cobre o cadoz, ao ver um brilho nos olhos o artista, que só estava esperando sua hora. Recuou sorrindo até atrás da linha de base e cruzou o braço para receber a bola de revés. O espanhol correu para o fundo. Quando viu a pedrada que vinha em sua direção, baixou a cabeça. Caccia per il milanese, disse o matemático. Ter-due.
quarta-feira, 10 de agosto de 2016
A CIDADE & A CIDADE
Um dos aspectos mais surpreendente dos
estudos literários é a falta de conexão entre a literatura e a geografia.
Claro, existem os livros do Franco Moretti (Atlas do Romance Europeu,
1800-1900 e A Literatura Vista de Longe), Gaston Bachelard (A Poética do
Espaço) e Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (Dicionário de Lugares
Imaginários), entre outras tantas tentativas de estabelecer olhares sobre o
tema. Mas, sem desprezar isto ou aquilo, há outras dimensões – e que ainda não foram
desvendadas ou estudadas com a devida atenção que o tema requer. Por exemplo, a
questão das estruturas geo-espaciais que assumem no interior da narrativa a
importância de um personagem requer uma análise mais detalhada. Em alguns textos, mais
do que um mero suporte para que o enredo possa se situar e se desenvolver, a
geografia identifica (ou revela) elementos que contribuem de forma decisiva
para que a verossimilhança esconda, na medida do possível, o artificialismo
narrativo. O incremento ficcional (para quem escreve, para quem lê) adquire um
valor inestimável.
![]() |
China Tom Miéville (nascido em 1972) |
O inglês China Tom Miéville, um dos nomes
mais importantes da new weird (um subgênero da literatura de fantasia, de
cunho realista, que orbita em torno da ficção científica e das narrativas de
horror), forneceu significativa contribuição para o tema com o romance A
Cidade & A Cidade.
As cidades gêmeas de Besźel e Ul Qoma,
situadas em lugar impreciso na Europa Oriental, estão sobrepostas. Embora
constituam nações independentes, com línguas (besź e illitano), sistemas
políticos e econômicos diferentes, há uma zona (in)comum, um espaço físico em
que a área urbana de uma se confunde com a de outra. A simetria siamesa se
sustenta em um conjunto de regras (procedimentos, comportamentos) que precisam
ser obedecidos para que cada uma delas conserve a identidade e as
características que lhe são peculiares – embora os componentes especulares
mostrem que cada uma das cidades é similar à outra (mesmo nos momentos em que
são diferentes).
Os habitantes de cada uma das cidades (não
importa qual) precisam “desver” os habitantes da outra cidade. A sobrevivência
dos indivíduos está ligada ao conceito de não-existência do Outro. Reconhecer a
presença daquele que está (sem estar) ao lado implica em severa punição. Qualquer
relação com o paradoxo de Schrödinger não deve ser entendida como mera
coincidência.
Somente aqueles que possuem algum tipo
de interesse (comercial, político, acadêmico) no outro lado recebem permissão
para, através de Copula Hall, única conexão legal entre as duas cidades,
atravessar a fronteira – passaportes e vistos são exigidos.
O fio narrativo de ”A Cidade & A Cidade está alicerçado em uma morte – Mahalia Geary, uma estudante de
arqueologia, foi assassinada em Ul Qoma e o seu cadáver foi encontrado em Besźel. A
possibilidade de ter ocorrido uma “brecha” (uma transgressão) não pode ser
omitida. Cabe ao Inspetor do Esquadrão de Crimes Hediondos Tyador Borlú
(protagonista e narrador do romance) desvendar esse mistério. Ao longo da investigação,
que transcorre nas duas cidades, há um desfile de personagens dos mais variados
matizes ideológicos. A política (seja de unificação das duas cidades, seja de
distanciamento físico e geográfico) se mostra onipresente. Com o passar do tempo,
Borlú descobre que, diante do que está em jogo, a morte de Mahalia não têm a
mínima importância.
A aplicação implacável de um sistema
jurídico recíproco garante relativo equilíbrio na história de rivalidades e
agressões mútuas entre as duas cidades. Dependendo da gravidade da brecha, cabe
invocar a Brecha (assim, com letra maiúscula), ou seja, torna-se necessário
delegar autoridade para que um dispositivo militar resolva, sumariamente, a
questão. Inexplicavelmente, com a morte de Mahalia Geary, que constitui uma evidente
infração do código social, o uso desse mecanismo não é permitido pela Comissão
de Supervisão. Resta a Borlú prosseguir na investigação ou encerrar o caso, considerando-o
como insolúvel.
Com fortes tons kafkanianos, A Cidade
& A Cidade evoca a metáfora mitológica do labirinto – “topos” de caráter
artificial, construído para que o indivíduo se confunda em sua jornada e tenha
dificuldade para encontrar a saída da situação opressiva em que se encontra. Entre
Besźel e Ul Qoma, a localização indeterminada contamina a existência daqueles que precisam
transitar pelas ruas, praças e edifícios que instituem o território urbano das
duas cidades. Em cada um dos lados da fronteira, em ambiente pouco amistoso, o espaço físico (via de
deslocamento de personagens como Tyador Borlú, Lizbyet Corwi, Qussim Dhatt,
David Bowden e Yolanda Rodriguez) se mostra decisivo para que a narrativa tenha
fluência e desenvolvimento.
Ao final da leitura das 289 páginas que
constituem A Cidade & A Cidade talvez seja necessário concluir, por
diversos motivos, principalmente os políticos, que não há nada mais próximo da
realidade do que a ficção.
TRECHO ESCOLHIDO
Aquele fedor de insinuação e mistério – por mais cínico ou desinteressado que você se considerasse, ele impregnava você. eu vi Corwi olhar para cima e para as fachadas pobres dos armazéns quando fomos embora. Talvez vendo um pouco demais na direção de uma loja que ela devia perceber que estava em Ul Qoma. Ela se sentiu vigiada. Nós dois nos sentimos, e estávamos certos, e nervosos.
Quando saímos, levei Corwi – uma provocação, confesso, embora não para ela, mas para o universos, de certo modo – para almoçar na pequena Ul Qomatown de Besźel. Ficava ao sul do parque. Com as cores e escritas particulares das vitrines de suas lojas, a forma de suas fachadas, os visitantes de Besźel que a viam sempre achavam que estavam olhando para Ul Qoma e desviavam o olhar com pressa e ostentação (o mais perto que os estrangeiros chegavam de desver). Mas com um olho mais cuidadoso, experiência, você repara no tipo de kitsch apertado do design dos edifícios, uma autoparódia anã. Você consegue ver os detalhes num tom chamado azul-Besźel, uma das cores ilegais em Ul Qoma. Essas propriedades são locais.
Essas poucas ruas – nomes mestiços, substantivos illitanos e um sufixo besź, YulSainStráz, LiligiStráz e assim por diante – eram o centro do mundo cultural para a pequena comunidade de expatriados ul-qomanos vivendo em Besźel. Eles tinham vindo por diversos motivos: perseguição política, autoaprimoramento econômico (e, como os patriarcas que haviam passado pelas consideráveis dificuldades da emigração, eles deviam estar amargando isso agora), capricho, romance. A maioria dos que têm quarenta anos ou menos é da segunda e agora terceira geração, fala illitano em casa, mas besź sem sotaque nas ruas. Há talvez uma influência ul-qomana em suas roupas. Várias vezes, valentões locais ou coisa pior quebram suas janelas e batem neles nas ruas.
Assinar:
Postagens (Atom)