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terça-feira, 16 de agosto de 2016

MORTE SÚBITA

O texto literário de ficção não possui compromisso com a distinção entre a verdade e a mentira (conceitos fluídos e de difícil comprovação). Sob esse dístico, o mexicano Álvaro Enrique escreveu um romance que desafia as classificações acadêmicas – embora, muitos críticos não tenham o mínimo escrúpulo para sacar do coldre uma daquelas palavras mágicas com que costumam rotular tudo o que foge da normalidade: pós-moderno. De qualquer forma, através de capítulos curtos (encadeados em ritmo de contraponto), Morte Súbita mistura em um liquidificador ficcional parte das histórias políticas, religiosas e artísticas de Espanha, Inglaterra, Vaticano e México. Ao mesmo tempo, envereda por um caminho literário pouco trilhado, desses que se recusam a se tornarem nítidos – o desejo mais significativo dessa proposta não é explicar, é complicar. Não bastasse, o texto está repleto de um humor fino, pouco convencional, onde nada está a salvo da ironia e da crítica. 

Álvaro Enrique
Através de uma partida de pallacorda (um esporte ancestral do tênis) entre o artista plástico italiano Michelangelo Merisi de Caravaggio, (1571-1610) e o poeta e ensaísta espanhol Francisco Gómez de Quevedo y Santibañez (1580-1645), o romance mapeia uma serie de temas paralelos, todos imprescindíveis para o adequado entendimento do inicio da modernidade: o autoritarismo político e social, a reforma protestante e a contrarreforma católica, o mecenato artístico, o surgimento da burguesia e, não menos importante, a ascensão e queda da honra cavalheiresca. Além disso, abusando da fluidez narrativa, o narrador (onisciente, em terceira pessoa, esbanjando erudição) contrapõe os atos “civilizatórios”, praticados pelos europeus, com a colonização do México.

Caravaggio (autorretrato)
Em outro plano narrativo, o chiaroscuro, que caracteriza a pintura de Caravaggio, fornece visibilidade às nuances decorrentes da luta política e econômica que é travada nos bastidores do Vaticano. A contraproposta, expressa no maneirismo reacionário da poesia e da prosa de Quevedo, procura esconder as diferenças essenciais que separam a nobreza e a população sem propriedades ou títulos nobiliárquicos. 

No meio desse turbilhão, os dois artistas em muitas coisas são semelhantes. Talvez a maior aproximação ocorra em torno da questão sexual. Em todas as páginas do romance, considerando as diferentes preferências e oportunidades, Caravaggio e Quevedo estabelecem como meta fundamental da existência levar alguém para a cama. Ou para algum canto escuro. Lugares onde possam praticar (sem interrupção) quaisquer transgressões que considerem excitantes. Evidentemente, essas ações estão conectadas com incontáveis perigos. Ou prazeres. Ou as duas coisas. E que estão representadas no duelo entre visões antagônicas de mundo que ocorre na quadra de pallacorda. Confirmando que os jogos não devem ser reduzidos a uma guerra por outros meios, a tensão sexual (Eros e Thanatos) entre os dois homens não diminui com a troca de golpes e contragolpes. Talvez, através de uma metáfora incomum, queiram expressar a ideia de que a morte e o esporte são apenas faces da mesma moeda.

Francisco de Quevedo
Enquanto os jogadores se movimentam para lá e para cá, cabeças rolam – literalmente. Os cabelos de Ana Bolena, logo após a sua decapitação, serviram de enchimento para quatro bolas de pallacorda. Outras peças capilares também se transformaram em equipamento esportivo – comprovando que a vida dos homens e das mulheres está à mercê da vontade dos reis. Ou das apostas que se multiplicam entre aqueles que estão assistindo o embate. O valor da vida (ou da honra) de um indivíduo somente pode ser aquilatado pela quantidade de dinheiro que movimenta.

Por fim, há o horror construído pelos espanhóis. Os rios de sangue produzidos pelos sofrimentos de Moctezuma II, Cuauhtémoc, Tletlepanquetza e Malitzin (além de milhares de outros corpos astecas) estabelecem uma nova hidrografia em terras mexicanas. Ao longe, a Espanha e a Igreja Católica aplaudiram a violência praticada por Hérnan Cortés de Monroy y Pizarro Altamirano, primeiro Marquês do Vale de Oaxaca (1485-1547), que, como um monstro ávido por destruição, não teve escrúpulos para extinguir uma civilização (em muitos aspectos mais avançada do que a Europa). Naquele momento histórico, nenhuma selvageria foi considerada excessiva, pois tinha como objetivo conseguir um bem maior    alguns quilos de ouro.

Hérnan Cortés
Morte Súbita, romance com raízes históricas, construído como ficção, consegue, com habilidade narrativa, embaralhar a grandiosidade da tragédia e a banalidade da comédia de costumes. 

Procurando romper com alguns paradigmas formais do discurso clássico do romance, Álvaro Enrique consegue elevar a arte literária e, em consequência, produzir um texto importante para a discussão travada pela teoria sobre o entrecruzamento entre a História e a ficção.


TRECHO ESCOLHIDO


O duque perdeu a compostura que vinha conservando a duras penas desde o início da partida ao ver como o lombardo havia encaçapada a bola no ponto anterior. Caralho, disse. Barral murmurou ao seu ouvido: Estamos bem arrumados, chefe. Nenhum dos dois jamais tinha visto uma paralela como aquela, tão veloz que era quase invisível, tão precisa que parecia, mais que ter entrado no buraco matador, ter sido tragada pelo muro.


O duque pediu tempo e chamou seu valido. O poeta continuava a sentir a vitória ao alcance da mão e estava convencido de que a fuzilada de seu oponente fora apenas fruto do acaso. Vimos como ele passou a partida inteira tentando acertar, disse ao duque, e só agora conseguiu, sem dúvida foi sorte. O duque balançou a cabeça. Barral ergueu um dedo, pedindo licença para intervir. Que é?, perguntou o chefe. Também pode ter sido encenação para nos fazer apostar tudo. Uma sombra de dúvida atravessou o rosto do poeta. O homem está morrendo de ressaca, disse; duvido que ele tenha sido capaz de aguentar a partida inteira só para ganhar uns trocados. Bah, disse o duque. Por ora, esquece o efeito no saque e manda a bola para o fundo da galeria, para que o cadoz não fique tão perto dele e tenha que lançá-la em curva.


O poeta voltou ao seu campo. Tenez! Mandou uma bola lenta e sem efeito que deveria cair como uma bexiga no canto do fundo da cobertura. Acompanhou sua ascensão e notou, desde que começou a descer, que a colocara exatamente onde queria. Ia quicar estranho, ia cair num lugar incômodo, o italiano ia ter que pegá-la num ponto distante e, com sorte, de revés.


O duque chegou a gritar: Cobre o cadoz, ao ver um brilho nos olhos o artista, que só estava esperando sua hora. Recuou sorrindo até atrás da linha de base e cruzou o braço para receber a bola de revés. O espanhol correu para o fundo. Quando viu a pedrada que vinha em sua direção, baixou a cabeça. Caccia per il milanese, disse o matemático. Ter-due

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