Um dos aspectos mais surpreendente dos
estudos literários é a falta de conexão entre a literatura e a geografia.
Claro, existem os livros do Franco Moretti (Atlas do Romance Europeu,
1800-1900 e A Literatura Vista de Longe), Gaston Bachelard (A Poética do
Espaço) e Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (Dicionário de Lugares
Imaginários), entre outras tantas tentativas de estabelecer olhares sobre o
tema. Mas, sem desprezar isto ou aquilo, há outras dimensões – e que ainda não foram
desvendadas ou estudadas com a devida atenção que o tema requer. Por exemplo, a
questão das estruturas geo-espaciais que assumem no interior da narrativa a
importância de um personagem requer uma análise mais detalhada. Em alguns textos, mais
do que um mero suporte para que o enredo possa se situar e se desenvolver, a
geografia identifica (ou revela) elementos que contribuem de forma decisiva
para que a verossimilhança esconda, na medida do possível, o artificialismo
narrativo. O incremento ficcional (para quem escreve, para quem lê) adquire um
valor inestimável.
China Tom Miéville (nascido em 1972) |
O inglês China Tom Miéville, um dos nomes
mais importantes da new weird (um subgênero da literatura de fantasia, de
cunho realista, que orbita em torno da ficção científica e das narrativas de
horror), forneceu significativa contribuição para o tema com o romance A
Cidade & A Cidade.
As cidades gêmeas de Besźel e Ul Qoma,
situadas em lugar impreciso na Europa Oriental, estão sobrepostas. Embora
constituam nações independentes, com línguas (besź e illitano), sistemas
políticos e econômicos diferentes, há uma zona (in)comum, um espaço físico em
que a área urbana de uma se confunde com a de outra. A simetria siamesa se
sustenta em um conjunto de regras (procedimentos, comportamentos) que precisam
ser obedecidos para que cada uma delas conserve a identidade e as
características que lhe são peculiares – embora os componentes especulares
mostrem que cada uma das cidades é similar à outra (mesmo nos momentos em que
são diferentes).
Os habitantes de cada uma das cidades (não
importa qual) precisam “desver” os habitantes da outra cidade. A sobrevivência
dos indivíduos está ligada ao conceito de não-existência do Outro. Reconhecer a
presença daquele que está (sem estar) ao lado implica em severa punição. Qualquer
relação com o paradoxo de Schrödinger não deve ser entendida como mera
coincidência.
Somente aqueles que possuem algum tipo
de interesse (comercial, político, acadêmico) no outro lado recebem permissão
para, através de Copula Hall, única conexão legal entre as duas cidades,
atravessar a fronteira – passaportes e vistos são exigidos.
O fio narrativo de ”A Cidade & A Cidade está alicerçado em uma morte – Mahalia Geary, uma estudante de
arqueologia, foi assassinada em Ul Qoma e o seu cadáver foi encontrado em Besźel. A
possibilidade de ter ocorrido uma “brecha” (uma transgressão) não pode ser
omitida. Cabe ao Inspetor do Esquadrão de Crimes Hediondos Tyador Borlú
(protagonista e narrador do romance) desvendar esse mistério. Ao longo da investigação,
que transcorre nas duas cidades, há um desfile de personagens dos mais variados
matizes ideológicos. A política (seja de unificação das duas cidades, seja de
distanciamento físico e geográfico) se mostra onipresente. Com o passar do tempo,
Borlú descobre que, diante do que está em jogo, a morte de Mahalia não têm a
mínima importância.
A aplicação implacável de um sistema
jurídico recíproco garante relativo equilíbrio na história de rivalidades e
agressões mútuas entre as duas cidades. Dependendo da gravidade da brecha, cabe
invocar a Brecha (assim, com letra maiúscula), ou seja, torna-se necessário
delegar autoridade para que um dispositivo militar resolva, sumariamente, a
questão. Inexplicavelmente, com a morte de Mahalia Geary, que constitui uma evidente
infração do código social, o uso desse mecanismo não é permitido pela Comissão
de Supervisão. Resta a Borlú prosseguir na investigação ou encerrar o caso, considerando-o
como insolúvel.
Com fortes tons kafkanianos, A Cidade
& A Cidade evoca a metáfora mitológica do labirinto – “topos” de caráter
artificial, construído para que o indivíduo se confunda em sua jornada e tenha
dificuldade para encontrar a saída da situação opressiva em que se encontra. Entre
Besźel e Ul Qoma, a localização indeterminada contamina a existência daqueles que precisam
transitar pelas ruas, praças e edifícios que instituem o território urbano das
duas cidades. Em cada um dos lados da fronteira, em ambiente pouco amistoso, o espaço físico (via de
deslocamento de personagens como Tyador Borlú, Lizbyet Corwi, Qussim Dhatt,
David Bowden e Yolanda Rodriguez) se mostra decisivo para que a narrativa tenha
fluência e desenvolvimento.
Ao final da leitura das 289 páginas que
constituem A Cidade & A Cidade talvez seja necessário concluir, por
diversos motivos, principalmente os políticos, que não há nada mais próximo da
realidade do que a ficção.
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