Uma adolescente, de idade
indefinida, 14, 15 anos, moradora de uma cidade minúscula, Santana do Morro
Verde, localizada em lugar impreciso, resolve contar uma história estranha, que
parece não ter pé nem cabeça, mas que, de uma forma ou de outra, anuncia –
lentamente – uma constelação de questões, e que, em algum
momento, se tornarão fundamentais. Essa é a espinha dorsal de Aqui, no Coração
do Inferno, novela escrita por Micheliny Verunschk. A menina, inominada no
princípio, enfrenta as diferenças entre a realidade e a ficção criando um
espaço narrativo particular, onde encaixa personagens complicados como o seu
pai, o delegado, e o prisioneiro, um menino de uns 14 anos, algemado na cozinha,
acusado de matar várias pessoas. Também informa que pesa sobre o réu a acusação
de canibalismo. Durante quatro dias de chuva, que interdita a estrada que liga o
vilarejo com a civilização, o tempo cronológico desaparece, quer dizer, ele continua
a escorrer como a areia dentro da ampulheta, mas institui uma desconexão, cria
uma redoma, isolando o centro dos acontecimentos do mundo exterior. Nesse
interstício, que parece natural, mas que não o é, pois, apesar do isolamento,
nada se mantém em suspensão, ocorre o desenrolar do fio narrativo, começo, meio
e fim, nesta ordem, embora o desfecho seja dissonante ou desafinado,
discordante do andamento de todo o resto, pois conjuga a surpresa, a última peça
do quebra-cabeça mostrando o que não havia sido antevisto. É como se fosse
deflagrado um tiro, onde o que assombra não é o barulho do disparo, mas o
clarão, o relâmpago artificial, o momento em que o espaço-tempo se modifica, revelando que alguém foi atingido. Enquanto a tempestade não se
esgota, o texto se esparrama por 121 páginas e 21 capítulos e centenas de
parágrafos. Com a limpidez coloquial da prosa que se confunde com a poesia, a
linguagem se impondo sobre o enredo, muitas vezes desviando o olhar do leitor,
mostrando alguns dos elementos menos importantes e que estão em cena, a
narrativa avança vorazmente. Eu acho que nem tudo precisa ser explicado numa
história. Se precisasse, não faria sentido existir a imaginação, afirma a
narradora, criando novas expectativas ou realçando velhas certezas. A união entre
o antes e o depois completa a narrativa circular – e nesse traçado, que tinha
tudo para ser parábola ou elipse, a inteligibilidade aparece de tocaia,
surpreendendo o leitor: são as páginas finais que garantem a sustentação para
um texto que simulava estar escorado na areia movediça. Mas, antes, bem antes
das cenas finais, a educação sentimental da narradora oscila entre o abismo
sedutor projetado pelo rapaz algemado na cozinha e a transparência sexual
oferecida por Luís, um colega de escola. Entre este e aquele, não há como dizer
não para a oportunidade, ninguém desperdiça ou nega o sabor agridoce da vida,
clausura de freira não rima com a curiosidade. Então, o que tinha que acontecer
aconteceu (e não importa se aconteceu mesmo ou não, nessa tessitura somente é
verdade o que é narrado ficcionalmente). Mas, também sucedem outras coisas,
muitas outras, a existência humana não se modifica porque uma garota resolveu
tomar uma atitude diante dos fatos da vida ou gosta de se levantar no meio da
noite para vasculhar os inquéritos que o pai traz para casa. Somando tudo, a
união das pontas soltas da linha, quando encontram o resto da tapeçaria
narrativa, revela um desenho cruel, a maldade acompanhando todas as histórias.
Dizem que o destino nunca chega atrasado aos seus compromissos. Aqui, no
Coração do Inferno (novela e novelo que simulam uma espécie de faroeste
caboclo) aborda as profundezas da História do Brasil com coragem e
sensibilidade.
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