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quarta-feira, 31 de agosto de 2016

AQUI, NO CORAÇÃO DO INFERNO


Uma adolescente, de idade indefinida, 14, 15 anos, moradora de uma cidade minúscula, Santana do Morro Verde, localizada em lugar impreciso, resolve contar uma história estranha, que parece não ter pé nem cabeça, mas que, de uma forma ou de outra, anuncia – lentamente – uma constelação de questões, e que, em algum momento, se tornarão fundamentais. Essa é a espinha dorsal de Aqui, no Coração do Inferno, novela escrita por Micheliny Verunschk. A menina, inominada no princípio, enfrenta as diferenças entre a realidade e a ficção criando um espaço narrativo particular, onde encaixa personagens complicados como o seu pai, o delegado, e o prisioneiro, um menino de uns 14 anos, algemado na cozinha, acusado de matar várias pessoas. Também informa que pesa sobre o réu a acusação de canibalismo. Durante quatro dias de chuva, que interdita a estrada que liga o vilarejo com a civilização, o tempo cronológico desaparece, quer dizer, ele continua a escorrer como a areia dentro da ampulheta, mas institui uma desconexão, cria uma redoma, isolando o centro dos acontecimentos do mundo exterior. Nesse interstício, que parece natural, mas que não o é, pois, apesar do isolamento, nada se mantém em suspensão, ocorre o desenrolar do fio narrativo, começo, meio e fim, nesta ordem, embora o desfecho seja dissonante ou desafinado, discordante do andamento de todo o resto, pois conjuga a surpresa, a última peça do quebra-cabeça mostrando o que não havia sido antevisto. É como se fosse deflagrado um tiro, onde o que assombra não é o barulho do disparo, mas o clarão, o relâmpago artificial, o momento em que o espaço-tempo se modifica, revelando que alguém foi atingido. Enquanto a tempestade não se esgota, o texto se esparrama por 121 páginas e 21 capítulos e centenas de parágrafos. Com a limpidez coloquial da prosa que se confunde com a poesia, a linguagem se impondo sobre o enredo, muitas vezes desviando o olhar do leitor, mostrando alguns dos elementos menos importantes e que estão em cena, a narrativa avança vorazmente. Eu acho que nem tudo precisa ser explicado numa história. Se precisasse, não faria sentido existir a imaginação, afirma a narradora, criando novas expectativas ou realçando velhas certezas. A união entre o antes e o depois completa a narrativa circular – e nesse traçado, que tinha tudo para ser parábola ou elipse, a inteligibilidade aparece de tocaia, surpreendendo o leitor: são as páginas finais que garantem a sustentação para um texto que simulava estar escorado na areia movediça. Mas, antes, bem antes das cenas finais, a educação sentimental da narradora oscila entre o abismo sedutor projetado pelo rapaz algemado na cozinha e a transparência sexual oferecida por Luís, um colega de escola. Entre este e aquele, não há como dizer não para a oportunidade, ninguém desperdiça ou nega o sabor agridoce da vida, clausura de freira não rima com a curiosidade. Então, o que tinha que acontecer aconteceu (e não importa se aconteceu mesmo ou não, nessa tessitura somente é verdade o que é narrado ficcionalmente). Mas, também sucedem outras coisas, muitas outras, a existência humana não se modifica porque uma garota resolveu tomar uma atitude diante dos fatos da vida ou gosta de se levantar no meio da noite para vasculhar os inquéritos que o pai traz para casa. Somando tudo, a união das pontas soltas da linha, quando encontram o resto da tapeçaria narrativa, revela um desenho cruel, a maldade acompanhando todas as histórias. Dizem que o destino nunca chega atrasado aos seus compromissos. Aqui, no Coração do Inferno (novela e novelo que simulam uma espécie de faroeste caboclo) aborda as profundezas da História do Brasil com coragem e sensibilidade.



TRECHO ESCOLHIDO 


Papai quer dizer que ele tá fodido. Mas não diz. Ou que a gente tá ferrado. Todo mundo. O Brasil inteiro, o país do futuro. Acho engraçado. Quando eu era mais nova, eu achava que o Brasil era um lugar bem longe, um lugar que eu não alcançava nunca, era uma palavra repetida várias vezes na TV, uma palavra repetida várias vezes por papai. Coisas como a carestia no Brasil, a censura no Brasil, o governo do Brasil, um lugar longe demais, que exigia amor ou abandono. Então eu comecei a entender que o Brasil é aqui, no coração do inferno, com as aulas do professor de português e do professor de história. E foram eles que disseram pra gente na sala de aula, vocês precisam ler para aprender o Brasil. E precisam sair de casa, ir pra rua, pra feira, ouvir as pessoas, pra aprender o Brasil. Os dois disseram, numa aula que deram juntos. Eu presto muita atenção. O problema é que papai traz trabalho pra casa e isso embaralha muita coisa, eu acho. As gavetas dele são muito misturadas e isso é uma merda porque, por mais cuidadosa que eu seja, o que tenho mesmo que fazer é reproduzir o caos dele pra que tudo continue no lugar mesmo que, no intimo, nada esteja mais.

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