A escritora italiana Elena Ferrante,
cujo nome verdadeiro ninguém sabe qual é, escreveu um livro assustador: Dias
de Abandono. A célebre autora da tetralogia Série Napolitana (somente foram
publicados no Brasil os dois primeiros volumes, A Amiga Genial e História do
Novo Sobrenome) mergulhou – com a perícia de um cirurgião – nas trevas
produzidas pela desestruturação emocional. Em apenas 183 páginas, Olga (que
acumula a dupla função de protagonista e narradora) descreve – com cores fortes
e realistas – o instante em que ela, a personagem, atinge o grau máximo da
alienação. A causa? Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me
comunicou que queria me deixar. A simplicidade da informação contida na frase
inicial do romance contrasta com a intensidade com que Olga transmite (através
da narração) o seu sofrimento – imagem especular de outra história, ocorrida
trinta anos antes, quando uma vizinha de Olga enlouqueceu, depois de ser
abandonada pelo marido: (...) quando você não sabe segurar um homem perde
tudo, (...), o que acontece quando, plena de amor, você não é mais amada, é
deixada sem nada. A mulher perdeu tudo, até o nome (talvez se chamasse Emilia),
se tornou para todos “a pobre coitada”, começamos a falar dela chamando-a desse
jeito. A pobre coitada chorava, a pobre coitada gritava, a pobre coitada
sofria, dilacerada pela ausência do homem vermelho suado, com olhos verdes de
perfídia.
Dias de Abandono foi construído como um
exercício prático das sutilezas que envolvem a tessitura da linguagem. O uso
exagerado da emoção consegue vedar o artificialismo do discurso literário. Os
lamentos de Olga são, na medida do possível, os lamentos do leitor – que, em
muitos momentos, está impedido de escolher entre a empatia e a irritação. Parte
dessa sensação está expressa sob a forma de monólogo interior – que se
assemelha a uma conversa entre amigos, dessas em que há trocas de confidências,
em que há o lastimar do amargor da vida.
Sem o marido, Olga precisa tomar conta
dos dois filhos (Gianni e Ilaria) e de um pastor alemão (Otto). Não consegue. A
mágoa, o rancor e as lembranças de um passado que ela julga ter sido feliz não permitem
– principalmente depois que descobriu que Mário, o marido, a trocou por Carla (dezoito
anos mais nova). Esse conjunto de sentimentos ruins é macerado – lentamente –
ao longo dos dias. Movida pelo fel da loucura, Olga perde o controle. Passa a
viver em um mundo particular, catatônico, onde a tristeza é a única companhia
permitida. A apatia se torna uma constante.
Esses momentos estão repletos de cenas agressivas.
Olga imagina que o marido está realizando com a amante todas as variantes
sexuais que nunca praticou com ela. E comenta essa desgraça com detalhes. Obviamente, o desvario somente serve para ampliar a depressão. A realidade (a
realidade que ela pode perceber) se transforma em névoa, lugar onde todos os
indivíduos se transformam em figuras pastosas, sem identidade. E isso também
vale para os filhos e o cachorro.
Como sair dessa situação? Difícil propor
algum antídoto. Mesmo quando Olga resolve dar um basta, (...) tentei voltar
aos gestos de sempre, como um doente que esteve por muito tempo no hospital e,
também para superar o medo de adoecer novamente, deseja ancorar-se novamente à
vida dos sadios, isso não parece ser suficiente. Algumas feridas jamais cicatrizam.
Dias de Abandono não é um romance
fácil de ler. Talvez seja um romance fácil de arremessar contra a parede –
embora me pareça inevitável retomar a leitura, dez minutos depois. Afinal, gostar de
literatura significa não ter medo do que é incômodo.
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