A história das mulheres sempre foi a
história de quem se submete ao poder masculino. Essa afirmativa, atualmente,
não pode (nem deve) ser considerada como exata. Mas,... Houve um tempo (que não
está distante, nem desaparecido) em que as mulheres, por diversos motivos
(sobrevivência financeira, emocional, social,...), precisavam abdicar de seus
sonhos em favor de uma vida insípida, recatada e voltada ao mundo doméstico e
domesticado.
Um desses casos está retratado na figura da protagonista de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, romance de Martha
Batalha. Na década de 40 do século passado, momento histórico em que o
mundo feminino estava atrelado aos grilhões do casamento, quase todos os sonhos
de liberdade de Eurídice Gusmão foram sufocados. Casada com Antenor, um
funcionário do Banco do Brasil, mãe de dois filhos, Afonso e Cecília, em determinado
momento Eurídice assume uma persona que destoa da mulher forte e inventiva que
ela era: Aquela era a mulher comportada, do jeito que Antenor queria. Uma
mulher dedicada à casa e às crianças, e que agora se deitava na mesma hora que
ele, e não se levantava mais cedo para se entreter com a máquina de costura.
Uma mulher que permanecia calada ao seu lado enquanto ele assistia à TV, e que
lhe oferecia a testa olhando ligeiramente para baixo, quando ele saía ou
chegava do trabalho. Era tudo o que Antenor sempre quis.
Quer dizer, o que ele sempre quis foi esquecer que na
noite de núpcias houve um incidente – mas que repercutiu por toda a vida do
casal. Eurídice não sangrou. Antenor, nas Noites de Choro e Uísque, costumava
reclamar da vagabunda que não se manteve pura para o marido na noite de
núpcias. Eurídice precisou carregar por toda a vida essa culpa por algo que, embora lhe fosse atribuído, não constituía a verdade, pois nunca havia se deitado com homem antes do casamento.
No universo familiar, Havia a convicção
de que Eurídice só podia ser levada a sério quando dizia que o jantar estava na
mesa ou que era hora de acordar para a escola. Nos poucos momentos em que ela tentou
romper com a posição passiva que lhe foi determinada pela estrutura familiar as
reações antagônicas foram tão intensas que nada lhe restou senão a apatia, o
embotamento mental e o cansaço.
Inicialmente, na juventude, quis estudar flauta.
O pai impediu que os estudos musicais fossem adiante. Depois de casada, tentou ser
uma grande cozinheira. Copiou as receitas que elaborou em um caderno, talvez
pudesse publicar um livro. O marido ao ver tamanho esforço, riu das pretensões
da esposa: Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma
dona de casa? Em determinado momento, comprou uma máquina de costuras. Ao
perceber que tinha facilidade para costurar, montou um ateliê em casa. O
marido, ao tomar conhecimento do empreendimento, vociferou: Então eu me mato
de trabalhar naquele banco pra você ter do bom e do melhor e descubro essa
feira livre aqui em casa? E, para deixar bem claro a sua visão do mundo,
arrematou: Uma boa esposa não arranja projetos paralelos. Uma boa esposa só
tem olhos para o marido e os filhos. Eu tenho que ter tranquilidade pra
trabalhar, você tem que cuidar das crianças.
Largo do Estácio, Rio de Janeiro, anos 40 |
Guida apostou no amor. Fugiu de casa com
o namorado. Viveu um conto de fadas – nos primeiros meses de casamento.
Depois, foi abandonada pelo marido. Grávida, sem dinheiro ou qualificação
profissional, precisou superar muitos obstáculos. Foi Filomena, prostituta
aposentada, que se sustentava cuidando dos filhos de outras mulheres, quem a
salvou da miséria. Guida organizou a creche e criou, apesar das dificuldades, o
filho. A derrocada final ocorreu vários anos depois, quando Filomena adoeceu. A
sífilis cobrou, com juros, os excessos do passado.
Cinelândia, Rio de Janeiro, anos 40 |
As histórias desencontradas das duas
irmãs, Eurídice e Guida, e que se passa entre os anos 40 e 60 do século XX, poderiam ser descritas como um conjunto de tragédias ficcionais
da pequena burguesia carioca. Exceto por um detalhe. Há um componente
de veracidade em todos esses episódios que não pode ser desprezado. Como alerta
a narradora, no capítulo introdutório: Muitas das histórias descritas neste
livro de fato aconteceram e, para que não restem dúvidas, um esclarecimento
final: (...) Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas
avós. Com um pé na realidade e outro na ficção, o livro mostra o que há de monstruoso quando a criatividade é podada pelo autoritarismo.
Somente mais tarde, muito mais tarde, Guida e Eurídice conseguem construir algum espaço próprio e, assim, respirar um pouco de ar puro. Ou melhor, conseguem fornecer um pouco de visibilidade à vida invisível das mulheres.
Somente mais tarde, muito mais tarde, Guida e Eurídice conseguem construir algum espaço próprio e, assim, respirar um pouco de ar puro. Ou melhor, conseguem fornecer um pouco de visibilidade à vida invisível das mulheres.
Em tempo:
1) há um personagem secundário muito
interessante, Zélia – e que poderia ser aproveitada em outra narrativa. Rainha da fofoca e da maledicência, ela vive na vida dos
outros a vida que nunca teve.
2) embora não seja exatamente uma narrativa feminista, e sim um romance de costumes, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão revela que a violência simbólica, instituída pelo phallus, torna fracos todos os homens. Ou seja, eles não dispõem de uma couraça contra as adversidades. Todos aqueles que entram em cena, no romance, estão desprotegidos contra as adversidades da vida. O machismo de Antenor se desmancha no homem patético, que, de pijama e chinelo, se prepara para dormir cedo. Marcos, o primeiro marido de Guida, típico “filhinho de papai”, pode ser resumido em um único adjetivo: covarde. João, o farmacêutico, não passa de um miserável que se aproveita da desgraça alheia. A personalidade de Antônio, o segundo marido de Guida, é frouxa – ele é um dependente emocional da mãe. O orgulho de Manuel, pai de Guida e Eurídice, o impede de perdoar Guida. Os meninos (Francisco, Afonso) não possuem voz. Enfim, não há salvação para os homens.
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