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terça-feira, 23 de agosto de 2016

A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO

A história das mulheres sempre foi a história de quem se submete ao poder masculino. Essa afirmativa, atualmente, não pode (nem deve) ser considerada como exata. Mas,... Houve um tempo (que não está distante, nem desaparecido) em que as mulheres, por diversos motivos (sobrevivência financeira, emocional, social,...), precisavam abdicar de seus sonhos em favor de uma vida insípida, recatada e voltada ao mundo doméstico e domesticado.

Um desses casos está retratado na figura da protagonista de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, romance de Martha Batalha. Na década de 40 do século passado, momento histórico em que o mundo feminino estava atrelado aos grilhões do casamento, quase todos os sonhos de liberdade de Eurídice Gusmão foram sufocados. Casada com Antenor, um funcionário do Banco do Brasil, mãe de dois filhos, Afonso e Cecília, em determinado momento Eurídice assume uma persona que destoa da mulher forte e inventiva que ela era: Aquela era a mulher comportada, do jeito que Antenor queria. Uma mulher dedicada à casa e às crianças, e que agora se deitava na mesma hora que ele, e não se levantava mais cedo para se entreter com a máquina de costura. Uma mulher que permanecia calada ao seu lado enquanto ele assistia à TV, e que lhe oferecia a testa olhando ligeiramente para baixo, quando ele saía ou chegava do trabalho. Era tudo o que Antenor sempre quis.

Quer dizer, o que ele sempre quis foi esquecer que na noite de núpcias houve um incidente – mas que repercutiu por toda a vida do casal. Eurídice não sangrou. Antenor, nas Noites de Choro e Uísque, costumava reclamar da vagabunda que não se manteve pura para o marido na noite de núpcias. Eurídice precisou carregar por toda a vida essa culpa por algo que, embora lhe fosse atribuído, não constituía a verdade, pois nunca havia se deitado com homem antes do casamento.
 
No universo familiar, Havia a convicção de que Eurídice só podia ser levada a sério quando dizia que o jantar estava na mesa ou que era hora de acordar para a escola. Nos poucos momentos em que ela tentou romper com a posição passiva que lhe foi determinada pela estrutura familiar as reações antagônicas foram tão intensas que nada lhe restou senão a apatia, o embotamento mental e o cansaço.  

Inicialmente, na juventude, quis estudar flauta. O pai impediu que os estudos musicais fossem adiante. Depois de casada, tentou ser uma grande cozinheira. Copiou as receitas que elaborou em um caderno, talvez pudesse publicar um livro. O marido ao ver tamanho esforço, riu das pretensões da esposa: Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma dona de casa? Em determinado momento, comprou uma máquina de costuras. Ao perceber que tinha facilidade para costurar, montou um ateliê em casa. O marido, ao tomar conhecimento do empreendimento, vociferou: Então eu me mato de trabalhar naquele banco pra você ter do bom e do melhor e descubro essa feira livre aqui em casa? E, para deixar bem claro a sua visão do mundo, arrematou: Uma boa esposa não arranja projetos paralelos. Uma boa esposa só tem olhos para o marido e os filhos. Eu tenho que ter tranquilidade pra trabalhar, você tem que cuidar das crianças.

Largo do Estácio, Rio de Janeiro, anos 40
Imolada todas as vezes que tentou romper com o casulo, Eurídice acabou murchando. A Parte De Eurídice Que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice prevaleceu. A lucidez somente foi readquirida quando reencontrou a irmã mais velha, Guida – que carregava pela mão um filho quase adolescente.

Guida apostou no amor. Fugiu de casa com o namorado. Viveu um conto de fadas – nos primeiros meses de casamento. Depois, foi abandonada pelo marido. Grávida, sem dinheiro ou qualificação profissional, precisou superar muitos obstáculos. Foi Filomena, prostituta aposentada, que se sustentava cuidando dos filhos de outras mulheres, quem a salvou da miséria. Guida organizou a creche e criou, apesar das dificuldades, o filho. A derrocada final ocorreu vários anos depois, quando Filomena adoeceu. A sífilis cobrou, com juros, os excessos do passado.

Cinelândia, Rio de Janeiro, anos 40
Ao ver a irmã, Eurídice recuperou parte do prazer de viver. Em seguida, (...) a adição de Guida e Chico ao resto da família foi feita de forma natural. Era como se aqueles convidados fossem esperados há tempos, como se fossem aquilo que faltava para a família Gusmão Campelo ficar completa.

As histórias desencontradas das duas irmãs, Eurídice e Guida, e que se passa entre os anos 40 e 60 do século XX, poderiam ser descritas como um conjunto de tragédias ficcionais da pequena burguesia carioca. Exceto por um detalhe. Há um componente de veracidade em todos esses episódios que não pode ser desprezado. Como alerta a narradora, no capítulo introdutório: Muitas das histórias descritas neste livro de fato aconteceram e, para que não restem dúvidas, um esclarecimento final: (...) Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós. Com um pé na realidade e outro na ficção, o livro mostra o que há de monstruoso quando a criatividade é podada pelo autoritarismo.

Somente mais tarde, muito mais tarde, Guida e Eurídice conseguem construir algum espaço próprio e, assim, respirar um pouco de ar puro. Ou melhor, conseguem fornecer um pouco de visibilidade à vida invisível das mulheres.     

 Em tempo: 
1) há um personagem secundário muito interessante, Zélia  e que poderia ser aproveitada em outra narrativa. Rainha da fofoca e da maledicência, ela vive na vida dos outros a vida que nunca teve.

2) embora não seja exatamente uma narrativa feminista, e sim um romance de costumes, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão revela que a  violência simbólica, instituída pelo phallus, torna fracos todos os homens. Ou seja, eles não dispõem de uma couraça contra as adversidades. Todos aqueles que entram em cena, no romance, estão desprotegidos contra as adversidades da vida. O machismo de Antenor se desmancha no homem patético, que, de pijama e chinelo, se prepara para dormir cedo. Marcos, o primeiro marido de Guida, típico “filhinho de papai”, pode ser resumido em um único adjetivo: covarde. João, o farmacêutico, não passa de um miserável que se aproveita da desgraça alheia. A personalidade de Antônio, o segundo marido de Guida, é frouxa – ele é um dependente emocional da mãe. O orgulho de Manuel, pai de Guida e Eurídice, o impede de perdoar Guida. Os meninos (Francisco, Afonso) não possuem voz. Enfim, não há salvação para os homens.


TRECHO ESCOLHIDO


As tardes na sala de estar, encarando a estante de livros. De vez em quando Das Dores saía da cozinha para olhar a patroa, os pés esparramados nos chinelos, os braços apoiados na barriga, um deles segurando a colher de pau. Eurídice nem notava, ou fingia não notar. A empregada voltava um pouco triste para a cozinha, balançando a cabeça em negativo. Quando Cecília e Afonso chegavam Eurídice disfarçava e olhava para outros lugares, e quando Antenor chegava ela disfarçava ainda mais, que não queria dar satisfações ao marido.


Talvez tenha sido a constância. Anos e anos sentando-se no mesmo lugar, encarando o vazio na forma de estante. Ou talvez tenha sido porque tinha que ser. O fato é que nessa nova temporada de olhares perdidos Eurídice começou a se sentir diferente. Era uma sensação bastante leve no começo, quase como uma cosquinha. Percebeu que a sensação só aparecia quando ela estava sentada no mesmo lugar, olhando para o mesmo ponto.


Eurídice passou a sentar-se em seu posto menos para olhar o nada e mais para esperar a sensação chegar. A sensação chegava, e encontrava no silencio o espaço para crescer. E foi assim que a sensação aumentou até ser vista por Eurídice, e Eurídice viu que a sensação era isso. A sensação era o dom de ver.


Eurídice viu a estante de livros na estante de livros.


Ela viu a estante de livros.


Levantou-se e passeou a mão direita pelas lombadas. Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Candido. Virginia Wolff e George Eliot, Simone de Beauvoir e Jane Austen. Machado e Lima Barreto, Hemingway e Steinbeck. Alguns livros ela tinha lido e esquecido, outros tinha comprado e esquecido de ler. Alguns foram acrescentados por Antenor, que comprava livros como quem compra lanternas: é bom ter em casa os maiores pensadores do mundo, para se um dia precisarmos deles.


Era uma biblioteca sólida. Voltou para o sofá na companhia de um livro, e pela primeira vez em muito tempo dedicou às páginas sua total atenção. Depois pegou outro, e mais outro, e foi ligando os pontos imaginários que faziam de todos aqueles textos apenas um.


Dessa vez Eurídice colocou um de seus vestidos de sair para ir ao Centro comprar uma máquina de escrever. De volta à casa ela abriu espaço na mesa do escritório que até então tinha sido de Antenor. Mandou Das Dores encontrar outro lugar para as apostilas de contabilidade que ele teimava em guardar desde os dezoito anos. Colocou sobre a mesa a máquina de escrever Olivetti e ficou procurando as letras pelo resto da tarde. Tec tec tec era um barulho bom de se ouvir, Das Dores pensou. Enquanto o barulho existisse ninguém na casa estaria olhando para a estante de livros.


Tec tec tec foi o som daqueles tempos. No começo eles eram um pouco lentos, tipo um tec aqui e outro ali. Depois se transformaram num único e constante som, um tectectectectectec que preenchia a tarde inteira, e era tão intenso que deixou de ser percebido como ruído. 

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