Em um universo literário, onde se
misturam dezenas de questões relacionadas com os afetos familiares (principalmente as que envolvem mães, pais e filhos), os dez contos
que integram A Teta Racional, de Giovana Madalosso, conseguem quebrar a
espinha dorsal dos sentimentos e, simultaneamente, derrubar o muro que separa a
hipocrisia de algumas das questões mais perturbadoras. Em cada uma das narrativas,
com uma sinceridade que assusta os leitores despreparados para enfrentar as
catástrofes, a(s) narradora(s) abre(m) a caixa de ferramentas e produz(em) um
estrago considerável.
Contemplando a volatilidade dos afetos,
a maternidade em primeiro plano, não há a mínima preocupação com o endeusamento
do que está sendo descrito. A vida como ela é exige doses maciças de
honestidade. Sem desculpas esfarrapadas, sem condescendências, sem
estereótipos. Algo similar ao dizer que Mater Dolorosa é a puta que o pariu.
Sem cuspe. Sem elegância. Da forma mais crua possível. Postura de lutador de
boxe. Ignorando o sossego. Ou o anestésico. No máximo, revelando as benesses
terapêuticas do distribuir uma meia dúzia de bons socos na acomodação.
A maternidade coloca em xeque a
organização do mundo. Ou melhor, coloca em dúvida a importância dos homens. Essa
é ideia que movimenta XX + XY, conto que apresenta a perspectiva da mulher
que, depois da gravidez, recusando a ajuda do pai da criança, precisa cuidar do
filho. Ela escolhe esse percurso – sem emitir lamentos. Ao mesmo tempo, ao
narrar a aventura, não esconde as dificuldades – que surgem a todo instante. Precisando enfrentar um mundo antagônico, onde trocar fraldas e, no meio da noite, tentar
fazer a criança parar de chorar são questões diárias, a mulher consegue
sobreviver. Apesar do cansaço. Ela descobre, da pior maneira possível, que na vida não há trégua. Nada é mais complicado do
que ser autossuficiente e bem-sucedida ao mesmo tempo.
Às vezes eu ficava olhando para o meu filho e pensando o que ia dizer quando ele me perguntasse como conheci o pai dele. Ou, pior ainda, o que ia dizer se ele me perguntasse em que situação foi concebido. Porque a verdade, claro, não envolve flores nem serenatas. Tampouco amizade ou o singelo desejo de maternidade por trás de uma inseminação. A verdade, eu teria que dizer para ele, é que a mamãe andava tão a fim de dar que abriu as pernas para um cara de quem ela nem sabia o nome.
No conto homônimo ao título do livro, essa
mesma mulher (ou outra) se supera diante dos problemas que surgem na segunda
frente de batalha: o trabalho. Para demonstrar que é uma profissional
competente, por alguns instantes precisa esquecer que do outro lado do espelho
está a maternidade.
Estou trancada no banheiro da agência ordenhando. Ajeito a peça plástica em volta do mamilo, aperto a válvula com força, vejo o leite esguichar pela cânula e cair dentro da mamadeira. Eu poderia fazer isso de olhos fechados. Poderia fazer isso de olhos fechados assobiando o hino do Brasil. Faço isso quatro vezes por dia, cinco vezes por semana. Depois guardo a mamadeira na geladeira da copa e, à noite, volto para casa carregando os frascos a tiracolo, como um entregador de leite. No dia seguinte, a babá serve tudo para o meu bebê.
Por que será que até amar tem que ser
tão difícil?, pergunta a narradora, em um desses momentos em que tudo parece
ser crise, tumulto, incerteza. Enquanto tenta entender esse impasse, surge em
cena – como um doppelgänger – o enfrentamento com a própria mãe. Que,
obviamente, conjuga outra cartilha. Quer dizer, mesmo naquilo em que são
semelhantes, as duas mulheres possuem valores opostos. Em Suíte das Sobras, o
conflito torna-se uma constante. Somente o improvável consegue reaproximar duas
pessoas tão diferentes.
Sentamos debaixo de um desses balanços. Eu sei por que ficamos o almoço todo em silencio, só ouvindo o balanço ranger, cansadas demais para puxar algum assunto que forjasse o nosso desconforto. Desde que acordamos, o clima entre nós estava estranho, uma espécie de ressaca do que dissemos e, principalmente, do que não chegamos a dizer uma para outra no farol. Além disso, não dava mais para esconder: havia dezesseis anos de afastamento entre nós. Era impressionante o quanto eu podia ser tão intima e tão distante de uma pessoa ao mesmo tempo. Enquanto comia, fiquei pensando sobre o que ela e minha irmã deviam conversar: roupas, negócios, amigos em comum, e que é a partir de estruturas assim, corriqueiras, que se constrói o amor.
Mesmo percebendo que a intolerância
precisa ser afastada para que a intimidade surja, ainda há grandes dificuldades,
muitas feridas abertas. Inexplicavelmente, o mesmo não acontece quando se trata
do relacionamento da filha com o pai. Em Jardim, a cumplicidade aparece em
tom menor, quase inadvertida, com a delicadeza de um bonsai.
A amizade – um tipo de afeto que não precisa
se restringir às obrigações familiares –, ou melhor, a celebração da amizade
está espelhada em A Paraguaia. Trafegado entre o logos (razão) e o pathos
(paixão, sofrimento, dor), as duas amigas, colegas no curso de jornalismo, percebem
que Eros tem as melhores cartas na mão (e na manga). Ou seja, elas procuram
viver, enquanto podem, la loca vida loca dos bares, das festas, dos namoros
inconsequentes.
Entramos no carro e abrimos o embrulho. A taca era enorme, valia pelo menos o dobro do que pagamos. A paraguaia se olhou no retrovisor. Perguntei se ela estava pensando em sair com o Cadão. Quem sabe, ela disse. Contei para ela sobre a maconha dentro da caixa de som. Ela riu. Se for sair com ele, vai ser só uma vez, apenas para dizer que tenho um traficante sem dedo no currículo. E aumentou o som.
São tantos equívocos, são tantas as
complicações, que o desfecho desse conto – muitos anos depois – parece um
clichê. Obviamente, há sutilezas. Nem tudo pode ser definido pela primeira
impressão.
O estranhamento (momento de perplexidade)
surge em Roleta-Russa” e Idiota Outra Vez, duas narrativas que colocam em
discussão a homossexualidade masculina. Na primeira, uma travesti, HIV
positivo, é convidada para participar de uma orgia. Na segunda, situada na
Turquia, a identidade religiosa contrasta com a identidade de gênero. Nos dois
casos, falta felicidade para esses personagens – eles não pertencem ao espaço em
que se movimentam.
Embora o enredo de cada um dos dez
contos de A Teta Racional não possa ser classificado como inovador, a grande
qualidade do livro está no não-conformismo de seus personagens que (unindo
raiva e afeto) em nenhum momento desistem de fracassar socialmente – e da
maneira mais esplendorosa possível.
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