Desculpe o auê / Eu não queria magoar
você, canta a paulistana com descendência estadunidense, imaginando que o
triângulo escaleno “sexo, drogas e rock-and-roll” (em alguns momentos mais
drogas do que sexo ou róquinrol) pode definir uma ou várias vidas –
principalmente se a(s) vida(s) em questão for(em) de alguma(s) personalidade(s)
do mundo musical.
Evidentemente, quando decidiu escrever
(?!?!) a sua Autobiografia, Rita Lee Jones deve ter imaginado que alguém (quem?)
ficaria ressentido, porque a impunidade não rima com a verdade (ou a mentira).
E, em um mundo onde todos têm algum tipo de culpa no cartório, aquele que decide
brincar de “verdade ou consequência” costuma cometer o pecado da inconfidência,
e inevitavelmente deixa escapar, aqui e ali, alguma historia suja, daquelas que
deveriam estar mortas e enterradas. Ressuscitada do esquecimento, essa deslealdade mancha de forma definitiva a reputação
que nunca foi imaculada – mas que confiava na pouca memória dos sobreviventes
daqueles tempos em que a loucura adolescente se misturava com a
irresponsabilidade artística. Pois,...
Para
quem não dispõe do necessário conhecimento sobre a cena musical brasileira nos
anos 70, 80 e 90 do século passado, a Autobiografia de Rita Lee oferece a oportunidade da leitura como se fosse um texto de ficção. E isso não pode (nem deve) ser considerado um problema. Muito
pelo contrário. Ela conseguiu utilizar uma linguagem bastante fluída, costurada
por milhares de referências da cultura pop, e entrecortada pela
autocomiseração, pela confissão pública de seus excessos com drogas (LSD,
maconha, álcool). Os versos Foi quando me pai me disse / “Filha, você é a
ovelha negra / da família” compõem a trilha sonora de uma vida agitada,
repleta de altos e baixos, provavelmente mais baixos do que altos. Infelizmente,
esse truque literário também serve para esconder muitas histórias escabrosas.
Principalmente aquelas que se referem à vida familiar. Elogios são distribuídos
a granel para o marido, Roberto de Carvalho. O caso dos três filhos (que,
acredite se quiser, jamais cometeram quaisquer deslizes) também não apresenta nenhuma novidade: com a mãe e o pai vivendo na estrada, um show atrás do outro, provavelmente o casal nunca conheceu os herdeiros (que foram criados por "agregados" e empregadas). De qualquer forma, salvo um ou dois
momentos em que o filho do meio reclama do modo de vida autodestrutivo da mãe, uma breve separação física do marido e as dezenas de entradas e saídas de clínicas de reabilitação, a ideia geral do texto é a de transmitir
a imagem de que a vida doméstica estava domesticada. Só os ingênuos (e os fãs)
acreditam nisso.
Por
outro lado, as farpas mais perigosas são disparadas contra o grupo Os Mutantes,
as cantoras “viciadas no vício” e Ezequiel Neves.
Os Mutantes, 1968 (?) |
Sobre os ex-companheiros de bagunça musical, Arnaldo Baptista e Sergio Dias, Rita Lee prefere atacar no varejo. Nas picuinhas. Não perdoa a falta de higiene do grupo (ela tem “nojinhos”!).
Também critica (mas não muito!) o desbunde geral, as festas, o excesso. E, casualmente, deixa escapar alguns
comentários sobre a vida sexual de Arnaldo (com quem foi casada): Os Mutas ensaiavam na sala da sua
casa por ser a mais espaçosa, sempre lotada de instrumentálias e groupies. Nas
pausas para “descanso”, Loki comia todas elas, enquanto eu dava umas voltas com
Danny e fingia não saber, pois a tática arnaldense de sedução era justamente
dar a entender que me corneava escondido. Hum,... O que será que o Sigmundinho
diria sobre isso?
No geral, quando o assunto é o início da
vida musical do grupo, há um visível pisar no freio. Rita Lee não quer atropelar ninguém.
No máximo (!!) dar um susto naqueles que caminham despreocupados pela calçada. E isso ninguém (nem ela) pode negar.
A expressão “viciadas no vício” foi invenção de Elis Regina. Imediatamente adotada por sua “melhor amiga”, permite adjetivar – sem
designar nominalmente – as cantoras lésbicas. O divertido desse drible está na
iconografia que acompanha o livro. Entre as páginas 224 e 225 há um dos quatro
encartes fotográficos que ilustram o volume. Qualquer um pode somar dois mais
dois e ver quem foi “humilhada e ofendida” pelas duas “certinhas” (do Lalau?).
Ezequiel Neves e Nelson Mota, 1979 |
Ezequiel Neves, diversas vezes citado
pelos dois apelidos, Abominável das Neves e Rasputinho (trocadilho que
mistura Grigoriy Yefimovich Rasputin [1869-1916] e a opção sexual do famoso produtor
e crítico musical), é, definitivamente, o alvo mais visado, caso clássico de
ódio à primeira vista. Mútuo. Foi ele que espalhou o boato que Rita estava com
leucemia. E que o seu filho mais velho tinha pai desconhecido. Além disso, ele
foi o responsável por várias outras maldades. Umas bastante apimentadas; outras,
menos palatáveis. Como compete aos ressentidos, a vingança é um prato que se
serve frio: Só pra constar: entrei na vaquinha quando o Abominável estava
terminal num hospital e precisou da caridade de quem ele detestava, a minha. A
gente “somos” ruins, mas a gente “temos” bom coração.
No setor de agrados, carinhos e
festinhas, há o endeusamento das figurinhas carimbadas: Elis Regina, João
Gilberto, Chacrinha, Rogério Duprat, Chico Buarque, Caetano Veloso e, os mais agraciados de
todos, Gilberto Gil e Hebe Camargo. Não há uma linha sobre eles que os desabone
ou permita uma leitura mais crítica. Também são criaturas perfeitas as duas
irmãs, o pai e a mãe. Na categoria dos seres imprescindíveis estão os inúmeros
animais (cães, gatos, onças, tartarugas) que foram adotados pela cantora, com
destaque para a cadela Danny.
Jorge Ben, Caetano, Gil, Gal e Os Mutantes |
No geral, Rita Lee: Uma Autobiografia é um livro careta. Falta molho. Falta conteúdo. O leitor termina as 269 páginas de texto
imaginando quantas centenas de histórias interessantes foram omitidas. O caso
da primeira prisão de Rita, por exemplo, está contado de maneira tão suave, tão
história da carochinha, que parece que a cantora passou cerca de 50 dias em um
spa, mil tratamentos de beleza, o descanso da guerreira. Mesmo se for verdade (e provavelmente o é) que a prisão foi uma armação da polícia, que estava se
vingando por um depoimento que Rita fez contra policiais que haviam assassinado
um menino durante um show, todo esse trecho do livro parece paranoia de
maconheira, pois, nessa época, os índices de consumo da "erva maldita" eram
estratosféricos e dia menos dia a casa iria cair, nem mesmo ela é capaz de
negar essa obviedade. Em relação à segunda prisão, as páginas 263-264 estão
riscadas, a versão da cantora está proibida de vir a publico. Provavelmente, há
um processo criminal em andamento.
Outro fator que incomoda é a ostentação.
As várias músicas que fizeram parte das trilhas sonoras das novelas da Rede Globo
são citadas como se fossem a melhor parte de sua carreira artística. Hum...
Essa submissão aos ditames do mercado capitalista parece ser uma confissão enviesada de que
as discussões sobre a qualidade (seja lá o que isso for!) musical estão
atreladas a um bom padrinho.
E então, terminada a leitura do livro,
sobra o quê? Pouco, muito pouco. Umas duas ou três boas piadas e meia dúzia de
comentários sobre os bastidores da música popular brasileira. O resto se assemelha a uma
plantação de abobrinhas. O leitor merecia mais do que isso.
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