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sexta-feira, 4 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLV)

 


Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, retifica, diariamente, alguns dados oficiais. Em todas as publicações que usaram esses números, ele os substitui pelo último informe do Ministério da Pujança. Em seguida, descarta as informações anteriores, impedindo que a nova versão seja contestada.

Os discursos também são adaptados para se enquadrarem na nova situação. Ao eliminar os erros, os equívocos, as imprecisões e toda e qualquer distorção que possa existir no pensamento do Grande Irmão, garante para a posteridade a expressão absoluta da verdade – ou daquilo que se pretende que seja a verdade.     

Esse tipo de emenda também incide em relação aos nomes daqueles que – citados no texto que foi expurgado – caíram em desgraça. Infelizmente, por diversos motivos, algumas pessoas são incapazes de corresponderem aos anseios do partido. Nada mais resta ao Estado senão “vaporizá-las”.   

O horror está presente em diversos momentos do romance 1984, de George Orwell, publicado em 1949. Mas, no trecho descrito acima, e que foi inspirado no revisionismo stalinista, percebe-se a antecipação dos conceitos contemporâneos de pós-verdade e fake news. Para o Estado (e para aqueles que utilizam o governo para se manterem no poder), os fatos (verdadeiros ou não) perderam a relevância. Não servem sequer como curiosidade histórica. E, por isso, precisam ser eliminados administrativamente. Nenhum traço do passado que deixou de interessar deve ser conservado. Cabe abastecer a população com documentos constantemente atualizados – e que autenticam os interesses do agora.

Uma das principais características de uma significativa camada da população consiste no cultivar da amnésia. A ignorância é uma benção divina (quanto menos se souber sobre qualquer assunto ou tema, maior a probabilidade de atingir a felicidade – dizem os estudos sobre comportamento social). Com o passar do tempo, os indivíduos vão abrindo buracos da memória, esquecendo o passado e aceitando como expressão do real aquilo que é endossado pelo Estado.  

Mesmo assim, apesar da repressão e de muitas ameaças (veladas ou explícitas), ocorrem algumas dissidências e, consequentemente, a contestação das comunicações governamentais. Independente da correção desse proceder, algum tipo de punição sempre ocorre. A Lei (que é um dos tentáculos do governo) não admite ser contrariada.  

Qualquer analogia com o atual governo federal não será mera coincidência. Os sistemas totalitários nunca desaparecem, confirmando o axioma hegeliano de que a História se repete no mínimo duas vezes; ao que Karl Marx acrescentou: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Estamos na era do farsesco. Ou do simulacro. A ideia de usar uma régua particular para negar as experiências do passado significa construir alternativas sem identidade e sem estrutura. Provavelmente desabará em pouco tempo. O exemplo mais trivial dessa tese está no esforço que fazem para “cancelar” Paulo Freire – o educador mais importante da História brasileira.

Em síntese: querem obter a tabula rasa instituindo o palimpsesto.





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