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sexta-feira, 18 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXII)

 


Há momentos em que o melhor a fazer é não sair de casa, ficar escondido debaixo das cobertas, recusar ver o mundo. Vou contar o que me aconteceu, em desses dias da semana. Precisava passar no supermercado e, depois, levar algumas compras até a casa de minha mãe. Nenhuma novidade, faço isso quase toda semana. Os irmãos estão espalhados pelo mundo e aquele que está mais perto foi presenteado com o que é bom e o que é ruim. 

Coloquei a máscara, desci as escadas e... Na mesa, na entrada do prédio, encontrei vários pacotes com livros. Agradeci o fim da greve dos correios (depois descobri que o fim está longe de acontecer) e subi as escadas. Abri a porta do apartamento, entrei e, no escritório, desembrulhei os volumes. Vi o que havia chegado e fiquei folheando-os, sem a mínima pressa.

Uns trinta minutos depois, percebi que estava atrasado. Recoloquei a máscara, desci as escadas, abri a porta da entrada do prédio e encontrei a rua. Depois de uns dez passos pela calçada percebi que havia algo fora do lugar. A ausência de nitidez do que estava na minha frente revelou o estranhamento: esqueci os óculos.

Voltei. Abri a porta da entrada do prédio, subi as escadas, abri a porta do apartamento, caminhei até o escritório, encontrei os óculos, ajeitei-os no rosto, caminhei para fora do apartamento, fechei a porta, desci as escadas, abri a porta do prédio e caminhei pela calçada. E voltei.

Estava chovendo. Repeti todos os movimentos anteriores, a diferença foi o abrir a porta da área de serviço e escolher um entre os quatro guarda-chuvas. Aproveitei a oportunidade e, no quarto, troquei de sapato. Algum tempo depois estava caminhando pela calçada, guarda-chuva aberto, a garoa molhando o mundo.

Tocou o telefone. Atendi. Instintivamente. Telemarketing. Soltei um palavrão, daqueles que fariam corar anjos barrocos e madonas pudicas. Desliguei. Era só o que me faltava, disse para mim mesmo, como se essa frase fosse suficiente para explicar qualquer coisa.

No supermercado, conferi a lista de mantimentos e fui procurar o suco de laranja, o frango (coxinhas da asa), as frutas. No caixa, paguei com cartão (crédito), porque – mais uma vez – está sobrando mês no fim do meu salário. Levei o carrinho com as compras até o ponto de táxi. Sou freguês assíduo, conheço quase todos os motoristas pelo nome, alguns até fazem desconto, talvez por simpatizarem com esse trapalhão que sequer sabe dirigir.

Ganha um doce quem adivinhar a cena seguinte. Todos os táxis estavam em lugar incerto e não identificado. Outro palavrão – defendo (e pratico) a tese de que não devemos reprimir as emoções.   

Depois de uns trinta minutos, consegui levar a encomenda até o destino. Voltei ao supermercado, comprei o almoço em um dos restaurantes anexos e fui para casa, sem me importar com a chuva – que tinha aumentado. 

A cereja do bolo apareceu quando liguei a televisão para ver o jornal. Tinha som, não tinha imagem. Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Talvez precise comprar uma nova – embora não seja artigo de primeira necessidade. Em todo caso, mais uma despesa.

Era melhor não ter saído de casa.   



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